A autodestruição pelo desespero
The New England Conservatory of Music |
Sempre
recorro a um curioso fato real do passado para compreender certas situações na
vida. Aconteceu assim: ao chegar em Boston, para estudar, morei primeiramente
em uma das cidadezinhas do entorno, chamado Nova Inglaterra, todas com nome de
pequenos burgos ingleses. O local, aprazível, jeito de cidadezinha inglesa, chama-se
Brighton. Porém, como o inquilino que me cedera temporariamente o espaço
retornaria de uma viagem, aproveitei mudar-me para o Centro, mais precisamente
para a rua do New England Conservatory, onde passei a estudar. Longe da
tranquilidade de Brighton, o nada bucólico Centro.
A bela Gainsborough St. |
Como
tinha que viver com ralos dólares por mês e o dinheiro me obrigava a uma vida
franciscana até que pudesse me colocar no mercado de trabalho, aluguei um
apartamento em um prédio central bem antigo, coisa de uns 30 m2.
Típica construção inglesa, bem antiga, tijolos aparentes, janelas protundidas (bay windows), prédio de 4 andares como
todos os demais ao longo dos dois lados da rua Gainsborough, atrás do Symphony
Hall, casa da Sinfônica de Boston.
Graffiti em prédio de NY |
Ratos
e camundongos infestam as grandes cidades americanas, chegam a somar o equivalente a 25% das pessoas
em NY (em Boston a cifra é parecida). Ratos, os temíveis rats, chegam a ser enormes e asquerosos. Já os segundos, os camundongos,
são muito bem tolerados, há que se conviver com eles: os “mice” (plural de
“mouse”), não tão simpáticos quanto o Mickey e a Minnie, são nojentinhos e
ariscos.
Os
muitos meses de frio, as paredes ocas com lã de vidro ou outro material
“aconchegante” e ideal para armar ninhos e colônias, tudo convida os pequenos roedores
a se instalarem em todos os lugares dos prédios e casas, em uma quantidade que
desafiaria qualquer censo do mundo.
Eugene O' Neal |
O
episódio que vou narrar aconteceu logo na primeira noite no apartamento em que,
mal acomodado entre um colchonete sobre caixas de leite, meu instrumento, “meus
discos e livros e nada mais”, como diria o saudoso Zé Rodrix, bom de música e
de papo, vi-me às voltas com um acontecimento realmente inusitado: não
conseguia dormir, por conta de uma interminável sequência de ruídos estranhos,
um allegro ma non troppo percussivo e
cadenciado, um flip-flop-pof, flip-flop-pof, em “longa jornada noite adentro”,
parafraseando o título da peça do dramaturgo O’ Neal (morto na mesma Boston no
ano em que nasci!).
Lá
pelas tantas, o barulho ainda me perseguia, e necas de dormir: flip-flop-pof,
flip-flop-pof, flip-flop-pof, só que agora com um gradual ritardando, mais e mais lento, o movimento cadenciado havia perdido
a dinâmica, o volume e o ritmo. Assim que começou a clarear, já desistido do
sono, levantei-me para fazer café, e aquele flip-flop-pof havia se transformado
em um “largo” musical, andamento ainda bem mais lento: flip...plof...pof, repetido agora
com muito pouco vigor, até esmaecer, smorzando,
diria um compositor, para, enfim, cessar.
De
manhã, após fazer o café, ao jogar o filtro de papel no latão de lixo da
cozinha vi que lá dentro estava um pequeno rato, que havia caído e tentara
escapar da arapuca das paredes altas da lata a noite inteira. Estirado e
mortinho da silva (daí o irritante flip-flop-pof: foram incontáveis saltos no
desespero!). A luta para tentar sair, debater-se em esforço desesperado, saltar
insanamente para, em esforço inútil, galgar a imensa muralha do latão de lixo.
Fiquei
um pouco chocado, e a cena me levou a algumas reflexões: o que realmente se
passara? Não matei o rato, não o envenenei, não tinha ratoeira, sequer sabia
que havia um rato preso na lata de lixo. De fome também não foi, pois havia
alguns restos na lata e ele sobreviveria com facilidade até ser encontrado – ou,
tarefa impossível, fugir. Mas como morreu? Foi mal súbito? Em um jovem roedor? (Com
o bichinho já defunto, referia-me a ele quase como velho amigo da casa) Pois se
não foi de morte matada ou morrida, como disse o poeta João Cabral, o que foi?
Platão e sua Alegoria da Caverna |
Demorou
muito para elaborar essa “teoria”, ou essa “alegoria” à avessas. (A alegoria é
uma narrativa imaginária para lançar a ideia de outro fato, mas a história do
rato era real como nunca, daí esse “às avessas”, do real ao imaginário. Já a
teoria é um princípio básico artístico ou científico já posto à prova). Como
autor sem pretensões literárias, filosóficas e muito menos psicanalíticas, tomo
a palavra teoria emprestada e guardo o acontecimento misterioso como uma
pequena e recorrente reflexão que ressurge, em certas situações. Atualmente, creio
que presenciamos uma delas.
O
rato morreu de desespero, desgosto, o brutal insucesso nas suas tentativas de
escapar de um final longo, mas iminente. A cada salto, o cansaço lhe diminuía chances.
Hoje, diante de situações que evocam certa similaridade com a breve história
bostoniana – desta vez, sim, fazendo dela uma alegoria (“a história se repete,
da segunda vez como farsa”, disse o velho pensador alemão) -, lembro-me do
“rato de Boston”, sem querer que ninguém morra de verdade, claro! Serve para observar
meu autocontrole, fazer correções de rumo e para analisar atitudes desesperadas
e nem sempre explicáveis de pessoas que já encontramos ou haveremos de
encontrar ao longo da vida, na história universal e nas crises de nosso país, tropeçando e caindo nas pedras que
elas próprias jogaram em seu caminho.
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