Parece que
as coisas andavam mal na Terra, bastante mal. Os homens haviam passado os limites
do permitido. Desonestidade, perversão, iniquidade, desavenças, maldade. Como primeira punição, Deus ensaiou de limitar a vida humana a
apenas 120 anos. Os malfeitos do homem na terra tanto incomodaram ao Pai que
ele achou que era hora de uma solução radical: exterminar toda a humanidade, e
com ela os animais, pequenos ou grandes, as aves, répteis (Gênesis, 6:7). Enfim,
toda a vida na terra.
Noé
(Noach, do hebraico), porém, era um
homem correto, andava com Deus no coração (era dele descendente direto, pois
que, conforme o sagrado Pentateuco, era filho de Lameque, este de Matusalém,
filho de Enoque, que viera de Jarede, cujo pai foi Sete, filho de Adão, e este de
Deus). Constituiu família honrada, com mulher e três filhos, Sem, Cam (“Cham”) e
Jafé. De Sem, “pai da raça branca”, descenderam os chamados semitas, que foram
os assírios, aramaicos, fenícios, árabes e hebreus, os principais. De Cam, “pai
da raça negra”, vieram os camitas, que compreendiam os povos e tribos do Saara
setentrional às Ilhas Canárias, do norte da África ao Sudão e Egito, da Líbia
ao Chade. Finalmente, de Jafé, “pai dos persas e indianos”, descenderam os jaféticos,
que alguns chamam jafetistas.
Árvore de gofer |
Porém,
crendo na pureza de Noé, Deus confidenciou-lhe que um dilúvio sem proporções
haveria de cobrir a terra até que todos os seres vivos desaparecessem, e que
ele, Noé, deveria construir uma embarcação, e foi cuidadoso até nas instruções
de como fazê-lo, para suportar tanto tempo durante o monumental castigo: “você,
porém, fará uma arca de madeira de gofer;
divida-a em compartimentos e revista-a de betume por dentro e por fora” (6:14).
Reconstituindo a arca |
O
cuidado divino chegou às dimensões necessárias para a obra: “faça-a com trezentos
côvados (135 m) de comprimento, cinquenta (22,5 m) de largura e trinta (13 m) de
altura” (6:15). Foi criterioso até nos detalhes do que tinha em mente, já que deveriam
suportar a longa a jornada: uma embarcação de dimensões jamais vistas (cerca de
8.900 m²). Detalhou o teto, com as devidas medidas, a rampa e os três andares
da nave (6:16).
Noé prometeu a
Deus total obediência, e seguiu à risca as instruções recebidas. Temendo o fato
de que todos os seres vivos sobre a Terra pereceriam, Noé agradeceu o Senhor e chamou
sua esposa, três filhos e suas mulheres, que com eles começariam o repovoamento
do mundo (6:18). Prosseguiu escolhendo casais de animais, para que com ele sobrevivessem.
“De cada
espécie de animal grande e de cada espécie de animal de pequeno porte que se
arrasta no chão virá a você um casal, para que sobrevivam com você” (6:19). E
foram sete casais de cada espécie. (Na Cabala judaica, sete é o número dos que
gostam de mudanças e viagens. Os números do Gênesis – aliás, como tudo o mais
no Antigo Testamento - têm um
significado, e eles se repetem várias vezes nas escrituras. A Cabala é pródiga
desses códigos).
Noé
tratou de acomodar na arca suprimentos que mantivessem todos vivos, durante o
tempo necessário à sobrevivência ao dilúvio, de acordo com o que Deus lhe havia
determinado (6:22). O Pai ordenou-lhe, também, que cuidasse de todos os
detalhes, pois o dilúvio duraria nada menos do que quarenta dias e quarenta
noites, até que desaparecessem da Terra “todos os seres que eu fiz” (7:4). E
Noé tinha paciência, pois já tinha seiscentos anos de idade, e aquilo seria um
sacrifício passageiro (7:6).
O Ararat |
“No
décimo sétimo dia do sétimo mês - na Cabala, somando seis (1+7+7 = 15 = 6), número
da vitória, da superação e do futuro de prosperidade, a arca repousou sobre o
Monte Ararat” (8:4). Deus então refletiu: "Nunca mais
amaldiçoarei a terra por causa do homem, pois o seu coração é inteiramente
inclinado para o mal desde a infância. E nunca mais destruirei todos os seres
vivos como fiz” (8:22).
Uma vez repovoado o mundo, sem mais ameaças
de destruição, coube aos homens que desembarcaram da arca reedifica-lo, mesmo
que, conforme o texto do Gênesis do Pentateuco, Deus tenha dito que “o coração (do
homem) é inteiramente inclinado para o mal desde a infância”. Cito, outra vez,
meu romance favorito do Machado de Assis, Dom Casmurro, em seu capítulo IX, “A
Ópera”, um raio de lucidez e conhecimento da virtù: Deus escreveu a partitura, mas quem rege é o diabo. (E não é
o que os descendentes de Noé, então, fizeram tudo mais uma vez?).
Se o leitor está se perguntando onde entra
“o futuro do Brasil” do título deste artigo, sinceramente não sei. A quem será
permitido embarcar na Arca? Os escolhidos, os justos, que se preparem para navegar
no dilúvio, até que ao fim do prazo baixe a água. Até porque, mesmo que se lute
pelo melhor, o futuro “adeus” pertence, reinventando o dito popular.
[Textos
do Gênesis extraídos da Bíblia de 1681 de João Ferreira de Almeida, primeira
tradução dos cinco idiomas originais diretamente para o português]
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