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segunda-feira, 24 de outubro de 2016

TRADUTOR, TRAIDOR

Algumas vezes conversei com amigos, artesãos da escrita ou amantes das letras, sobre a questão da tradução. Um mau tradutor pode destruir o significado do texto, corromper o sentido, às vezes já desde o título. O deste artigo, aliás, não é por acaso: segue o provérbio italiano traduttore, traditore. Traduzi literalmente, porque cabe justo em nossa língua, também latina; não haveria outra forma de fazê-lo. Tenho sérias objeções a muitas traduções de títulos de livros no Brasil e, claro, de seus conteúdos, e não haveria de ser diferente no cinema, na música ou em outras artes.

Ben Jelloun
Com o francês, também idioma latino, dá-se o mesmo, é menos difícil traduzir. É célebre a frase “As traduções são como as mulheres. Quando são belas, não são fiéis. Quando são fiéis,  não são belas” - Les traductions sont comme les femmes. Lorsq’elles sont belles, elles ne  sont pás fidèles.  Et lorsqu’elles sont fidèles, elles ne sont pás belles (Ben Jelloun). Tomei ali a liberdade de retirar o excesso do pronome “elas”, comum em francês, mas cuidei de respeitar o sentido da frase, assim como o nosso idioma.

JK e seus escribas: Autran e Schmidt
Recentemente, minha irmã começou a digitalizar importantes documentos dos mais de 2 mil do acervo deixado por meu pai. Todos irão, por vontade expressa dele, para a UFMG, onde se formou, juntamente com 5 mil livros em diversas línguas. Em “notas à margem de uma tradução”, de meu pai, lê-se: “o escritor é livre, conforme as exigências de seu estilo, de aceitar ou rejeitar as prescrições gramáticas que regem a língua, e que as únicas leis às quais é preciso se submeter são as leis da harmonia” (Flaubert, segundo Maxime Du Champ).

Gustave Flaubert
Esta é uma tradução por meu pai - que eu até há pouco desconhecia - do grande mestre da literatura francesa, Gustave Flaubert (1821-1880), que, ao lado do norte-americano William Faulkner (1897-1962), lidos sempre no original, alinhavam-se com Machado de Assis entre suas grandes influências. Ora, se Flaubert se permitia assim usar o idioma, que dirá de um mortal tradutor, tentando não ser traidor? Por isso, quando faço a versão de alguma frase, costumo avisar, entre parênteses: “Trad. Livre do A.”

Cito dois dos inúmeros atentados já cometidos. Darkness Visible (literalmente, ‘Escuridão Visível’), de William Styron, foi traduzido para “Perto das Trevas”, em português. Por quê? Era um relato da luta de Styron contra sua depressão, que quase o levou ao suicídio. Chegou, portanto, à “escuridão visível”. Outro impagável é Why this World, da nossa Clarice Lispector, por Ben Moser, que aqui saiu... “Clarice, uma Biografia”. Esse título em português bem que poderia ser o da biografia de um animador de TV ou cantora de “funk carioca”. Ora, a foto de Clarice na capa do original, com as mãos cobrindo o rosto, e o título “Por que este mundo” (assim mesmo, com “por que” separado, como em uma pergunta, mas trocando o derradeiro ponto de interrogação por um ponto final). Bem ao jeito de Clarice, entre suas angústias, inquietudes e passeios pela depressão.

O "Poetinha"
Tradutor eletrônico? Nem pensar. Faço aqui uma brincadeira com versos do Soneto de Separação (1939) do poetinha Vinicius de Morais, genial como sempre: “De repente da calma fez-se o vento / Que dos olhos desfez a última chama / E da paixão fez-se o pressentimento / E do momento imóvel fez-se o drama”. Primeiro, usei o tradutor para o inglês, dele para o alemão, de lá para o francês e, de volta, ao português. Resultado: “De repente se torna vento calmo / o que os olhos derrotou a última chama / e a paixão tornou-se um sentimento / e a propriedade consiste atualmente drama”. Não é piada!

Autran Dourado, perto da estante de seus prediletos
O que faziam as pessoas no passado, até recentemente? Ora, estudava-se, lia-se, falava-se outras línguas. Meu colégio – difícil imaginar, nos dias de hoje - tinha francês e inglês (com as respectivas literaturas) e ainda um tanto de latim. E não era diferente da maioria das boas escolas. Meu pai aprendeu línguas com algumas aulas, livros e LPs - lembro-me dele repetindo metodicamente as frases das lições na cadeira de balanço. E assim fez não só para entender seus prediletos no original: precisou muito no período em que foi Secretário de Imprensa da República de JK (foi o 1º a ocupar tal cargo, criado para ele), fosse para acompanhar o esquema de segurança em visita de Eisenhower, ou um release para André Malraux. O que acontece hoje? Busca-se o mais fácil, quando muito, ou não se busca nada. Servem os tradutores da Internet.

Mário Quintana
“A preguiça é a mãe da invenção”, outra frase recorrente de meu pai, lembrando Mário Quintana, mostra que ao lado do progresso tecnológico há o retrocesso cultural. “Tristes Trópicos”, diria eu, repetindo o título de um livro de Lévi-Strauss (1955) com reflexões sobre suas vivências entre índios brasileiros.


Bob Dylan
Por acaso, a indicação, em 2016, ao Nobel de Literatura do Bob Dylan, que às vezes parecia mais recitar do que cantar, chama a atenção novamente para a impossibilidade de se traduzir poesias. De uma das mais conhecidas, Like a Rolling Stone (poema originalmente com 10 páginas), pinço um pequeníssimo exemplo: How does it feel /to be without a home / like a complete unknown / like a rolling stone. Rimas chamadas ricas, difíceis em inglês, língua com possibilidades bem mais limitadas do que nosso português: home (‘lar’, recesso da família), unknown (‘desconhecido’, adjetivo) e stone (‘pedra’, substantivo). Quem vai tentar traduzir esse trechinho, e ainda sair achando rimas? Boa sorte, estou fora!

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

DR. CARLOS DE CAMPOS, PRESIDENTE DE SP, E VÔ JUQUINHA

PELO ESTADO DE DIREITO 
E A ORDEM INSTITUCIONAL
Os feitos de um governador músico 
150 ANOS DE NASCIMENTO!

Ministério da Guerra
Minha filha Marta foi à casa de meus pais, após o falecimento de Maria Lucia, minha mãe. Fotografou documentos antigos e muito bem guardados de meu avô Juquinha, principalmente as correspondências trocadas entre tropas do exército brasileiro de Minas Gerais enviadas às cidades fronteiriças ou estacionadas no estado de São Paulo. Ele havia sido enviado de Minas para o Ministério da Guerra, no Rio de Janeiro, de onde as Forças Armadas comandavam tropas mineiras e legalistas de São Paulo, contra a chamada revolta de 1924.

A intenção dos rebelados era depor o presidente da República, Artur Bernardes, e, em São Paulo, o governador (então presidente do estado) Dr. Carlos de Campos, nascido em Campinas em 1886, que havia tomado posse apenas dois meses antes da eclosão do movimento. Um dos telegramas enviados a meu avô (imagem acima), escrito pelo oficial Souza Reis, pediu que fossem passadas às famílias de alguns oficiais informações sobre seu bom estado de saúde, contendo os endereços de suas respectivas famílias, na capital paulista, para que essas ficassem menos aflitas, diante do temor de que poderia sobrevir o pior.

Estação Vila Matilde
O Palácio dos Campos Elísios, sede oficial de onde despachava o então governador, sofreu intenso bombardeio rebelde, e um de seus filhos teve ferimentos por estilhaços. Campos levou sua família para longe, escolhendo a estação de trem de Guaiaúna, então da Estrada de Ferro Central do Brasil, como refúgio e sede provisória de governo. Hoje, a estação se chama Carlos de Campos, na atual subprefeitura da Penha.

Tropas em defesa da Estação Vila Matilde, do governo provisório
As tropas federais acampavam nos entornos da estação, sede improvisada do governo. Era nas plataformas da gare que as forças oficiais legalistas faziam primeiros-socorros e distribuíam víveres para a população (Revista da Semana, 09/08/1924). No dia 27 de julho, o jornalista Paulo Duarte, amigo e colaborador do musicólogo Mário de Andrade, intermediou um pedido de cessar-fogo de 48 horas para negociar a rendição dos sublevados, que queriam em troca a anistia pelos crimes da rebelião. Carlos de Campos tinha estopim curto, e vendo que a revolta já estava dominada mandou o seguinte recado (cit. lit.): “Vocês parecem que estão fazendo causa com os revoltosos... Em vista dos termos desta carta vou mandar aumentar os bombardeios. A granada será a resposta”.
Carta do coronel Joviano Mello ao meu avô, no Ministério da Guerra


Em 8 de agosto de 1924, o coronel Joviano Mello, comandante do 5º Batalhão, enviou a meu avô uma carta em que informava ter se apresentado com cerca de 800 soldados em Ouro Fino, sul de Minas, ao general Martins Pereira, que havia ocupado Mogi-Mirim, Itapira e Jaguari. Pereira, acossado, foi para Espírito Santo do Pinhal. Logo, nova derrota.


Bilhete do vô Juquinha (José Carlos) em resposta ao coronel Joviano Mello

A Coluna de João Cabanas
Abandonou a cidade, depois de encurralado pelo cerco da chamada “Coluna da Morte” do rebelde João Cabanas, que ocupara Itu. A ”Coluna” não tinha um contingente ou armas em quantidade suficiente para os embates, e sobre ela conta-se um episódio pitoresco: os rebeldes teriam desfilado em um comboio ferroviário exibindo armamentos e soldados, tendo à frente um poderoso canhão de 155mm. Detalhe: feito de uma tora de peroba escurecida com piche, mas que bem servia, de forma teatral, a uma simulação de poderio bélico.

O ministro da guerra Setembrino de Carvalho
Meu avô Juquinha, encarregado das comunicações entre as tropas de Minas e os legalistas de SP, respondeu às indagações do coronel Joviano Mello, e, de forma bem sucinta, passou por bilhete uma ordem lacônica do Ministro da Guerra Fernando Setembrino de Carvalho (o documento, infelizmente, está muito pouco legível). Lembro-me de ouvir de meu avô causos sobre bilhetes passados às escondidas nos vagões dos trens da estrada de ferro - histórias que para mim, criança, soavam como filmes de ação, aventura.

Dr. Carlos de Campos (centro), ao lado do general Sócrates, citado por meu avô
em carta do Ministério de 22/07/1924,, à frente do Palácio dos Campos Elísios
Assim, da capital da República, Rio de Janeiro, eram monitoradas as tropas de Minas, que defendiam o presidente Artur Bernardes, e especialmente na região davam respaldo ao presidente do estado de São Paulo, Dr. Carlos de Campos, que haveria de governar a cidade de março de 1924 até sua morte, em 1927. (Cinco anos depois, em 1932, meu avô, à frente do 12º Batalhão de Infantaria, uniu-se novamente aos paulistas, na revolução constitucionalista. Se vivo, Carlos de Campos teria sido, com certeza, um quadro civil fundamental ao movimento).


Busto de Carlos de Campos, do escultor Ettore Ximenes,
do acervo do Palácio dos Bandeirantes
Homem cultor das letras e artes, Campos ganhou um busto, hoje exposto no Palácio dos Bandeirantes, estátua repleta de símbolos, como ramos de tabaco e café e uma harpa, o que bem ilustra tanto seu civismo quanto cultura. Foi ele quem deu início ao projeto de construção da estação ferroviária Sorocabana em São Paulo, em 1925, obra inaugurada em 1938, em plena era Vargas. Posteriormente, o auditório recebeu o nome de Júlio Prestes, que governou o estado até 1930.

Estação Júlio Prestes, iniciativa do gov. Carlos de Campos
Em 1997, a estação viria a acolher o mais imponente auditório de concertos do país: a Sala São Paulo, em cujo saguão há uma placa em homenagem ao ex-governador Dr. Carlos de Campos. Da mesma forma, foi-lhe feita justíssima homenagem em Tatuí, cujas primeiras instalações definitivas foram inauguradas em 1969 pelo governador. Dr. Carlos de Campos havia sido não apenas um intelectual e aficionado pela literatura (foi membro fundador da Academia Paulista de Letras) e pela música: ele próprio era um compositor com sólida preparação, tendo sido diretor do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, hoje restaurado e incorporado à Praça das Artes do Município. Compôs obras bastante conhecidas, à época, como o hino “Pedras Preciosas”, com letra  de Luís Guimarães, a ópera “A Bela Adormecida”, e a comédia lírica “Um Caso Singular”, além de sua última obra, inacabada, o drama bíblico Les Deux Mères, com libreto de Armand Crabbé. (Jornal Correio Paulistano, 28/04/1927, pág. 1 e 2, sobre o falecimento do governador). Nada mal para um ex-aluno do ilustríssimo Carlos Gomes!

O governador Abreu Sodré, 

honrando a famosa escola de 

drama e música criada por lei 

em 1951 e instalada em 1954 

na cidade, inaugura o primeiro 

prédio oficial do Conservatório: 

em 1969, uma placa dá o nome 

ao CDMCC, ou Conservatório 

Dramático e Musical Dr. Carlos 

de Campos, compositor de 

sólida formação, homem que é 

página da história da democracia e da música 

deste país.  



segunda-feira, 17 de outubro de 2016

O PODER DAS PALAVRAS

Em artigo anterior, usando a ‘livre associação’ da psicanálise para abrir o tema, lembrei-me de muita coisa de seu criador, Sigmund Freud (1856-1939). E achei essa pérola do grande analista, que traduzo livremente: “Palavras têm uma força mágica. Elas podem trazer tanto a maior alegria quanto o mais profundo desespero; elas podem transferir conhecimento do professor para o aluno; palavras habilitam o orador a conquistar sua plateia e ditar decisões. Palavras são capazes de despertar as emoções mais fortes e influenciar os atos de todos os homens”.

Palavras também podem trazer o chamado ato falho (lapsus linguae), algo que estava escondido e ressurge no momento ‘errado’, à nossa revelia. Vemos isso diariamente em alguns políticos, que primam pelo pouco cuidado que têm nos seus discursos. Essas escorregadelas podem acontecer por ignorância, por falta de pensar antes de falar ou porque simplesmente fogem ao controle de quem as diz, e escapam até em discursos escritos.

(Reuters)
Um exemplo recente foi capturado por Claudio Tognolli, da  Jovem Pan, doutor em jornalismo pela USP: disse Lula “não preciso ter estudado geografia pra saber que os 4 maiores inimigos do PT são 3: Moro e Lava Jato" . Ora, burro ninguém pode dizer que ele é, pelo menos, pois ninguém sai da pobreza e com muito pouca escola de uma cidadezinha a 250 Km de Recife para se tornar uma celebridade mundial. Chamá-lo de ignorante (que ignora), mal letrado, não estudado, é outra coisa (assuntos políticos não são aqui pertinentes).

Garanhuns (PE)
Mas citou a disciplina geografia para cometer três deslizes em aritmética básica, começando por aí seu primeiro ‘ato falho’: Lula parece ter trocado uma de suas maiores lacunas de estudo, a geografia, por outra, a álgebra. E mais: “4 erros são 3” (ele costuma citar “4 pontos” – truque para ganhar tempo e organizar o pensamento nos discursos). Ou quem sabe foi o inconsciente a lembrar-lhe o duro trauma da perda do dedo mínimo da mão esquerda - justamente aquela com que define seu ideário? E mais: três eram apenas duas, Moro e Lava Jato.

Ao anunciar a realização das Olimpíadas no Brasil, Dilma disse, amparada na tradicional soberba de poder que divide com seu mentor, que “o Brasil é o primeiro país latino a sediar uma Olimpíada”. Mas em 1968, ano do famigerado AI-5, o México, também latino, sediou os Jogos. A prepotência comprometeu o rigor necessário a quem vai fazer uma afirmação dessa magnitude.

Mais: “quando nós criamos uma bola dessas, nós nos transformamos em homo sapiens. Ou mulheres sapiens”. No caso, o ato falho foi provocado pela insistência em “primeira mulher na presidência”, “Presidenta” e afins. Homo, em latim, refere-se ao ser humano - homo sapiens foi o primata do paleolítico inferior que nos deu origem. Não significa “macho”. A frase poderia ter soado como uma saudável boutade se tivesse dito mulier sapiens (em latim, com sotaque). Mas deixou escapar a gafe.

Deslizes de George Bush eram como os de seus colegas de presidência brasileiros, e estão amplamente documentados em The Bush Dyslexicon (MILLER, Mark Crispin. NY: Norton, 2002). Naquele mesmo ano, declarou à agência de notícias AP, no dia 27 de janeiro: “Estive na guerra. Eu criei gêmeos, mas era melhor ter ido para a guerra”. Tentou posar de cidadão modelo, que vive pela sua pátria. A declaração midiática de ufanismo bloqueou seu raciocínio e trouxe um entendimento inverso, um absurdo desapego aos filhos – e a família é um dos grandes ícones do povo americano! Em 2001, saiu-se com essa: “Educação não é minha prioridade” (aplausos da claque). Pouco depois, talvez ajudado por algum sopro amigo, disse: “Educação é minha prioridade”. Preferiu o ridículo para tentar retificar o deslize. E foram centenas de lapsos durante anos.
O milenar Amen, em hebraico

Há palavras que se bastam, dizem tudo: amém, por exemplo. ‘Assim seja’ é tão poderoso, é a aceitação dos desígnios divinos, do destino, do futuro, até, e se mostra maior do que tudo. Há o “sim” dito pelos noivos no casamento, (ken, em hebraico, oui, yes...). Palavra que simboliza a promessa de convivência até a morte, sela o acordo nupcial em público e antecede o beijo, que simboliza o amor mútuo dos noivos. Outras palavras podem ter vários significados, e dependem muitas vezes da companhia de um olhar, que, ele sim, pode dizer tudo: um “obrigado”, com os olhos atravessando, desarmado, até a retina de quem ouve. “Desculpa” também precisa dos olhos, para que adquira significado profundo, caso contrário é apenas mais uma palavra gratuita.

Escrivá de Balaguer
José Maria Escrivá de Balaguer foi o criador do Opus Dei, organização apoiada pelo ditador Franco (1892-1975) como contrapartida à maçonaria, que estaria acobertando a oposição. Balaguer, que foi canonizado em tempo recorde por Paulo II (antes, prelado da organização), inspirou um popular livrinho: “Pensamentos”. Em um de seus aforismos mais conhecidos, Balaguer diz que se deve reservar uma hora por dia para dizer apenas “não”. Tão metodicamente quanto a necessidade de se usar o cilício, uma espécie de corrente que machuca a perna do filiado ao Opus para fazê-lo compartilhar, uma hora por dia, o sofrimento de Cristo pela coroa de espinhos, prática antiga, do início da era cristã.

O “não” que é realmente importante deve ser usado com parcimônia e voz baixa pelos pais que conduzem a educação de seus filhos com correção. Mas caiu em desuso, infelizmente. Assim cresceu parte de uma geração que perdeu o rumo, já que seu “sim” só compreende a desordem e o desrespeito.



domingo, 9 de outubro de 2016

A IMPORTÂNCIA DA ESCOLHA

Meryl, esplêndida e premiada
A Escolha de Sofia é um livro de autoria do norte-americano William Styron, também conhecido por seu Darkness Visible (mal traduzido para Perto das Trevas). Em "Darkness", narra sua luta contra a depressão bipolar - ora na mania, quando se sentia eufórico e poderoso, ora no fundo do poço. Nesse percurso, pródigo em pensamentos suicidas, escolhe enfrentar o inferno e afinal encontra a sonhada cura. Um relato digno de suas melhores narrativas. Lembra a música do filme “M.A.S.H.”, de Altman, sobre a escolha maior: “suicídio é indolor / e traz muitas mudanças / e eu posso pegar ou largar se eu quiser”.
O inferno de Aushwitz
Escolha de Sofia talvez tenha sido seu livro mais vendido e apreciado, um romance bem nova-iorquino. Publicado em 1979, trata do relacionamento entre três pessoas que dividem um quarto em uma pensão no Brooklyn, bairro com grande população judaica. Um aspirante a escritor vindo do sul se relaciona com um judeu e sua amante polonesa, Sophie, católica que foi levada à força com suas crianças ao campo de Auschwitz na II Guerra, mas escapou. Especialmente após o filme homônimo estrelado pela excelente Meryl Streep, Styron tornou-se figura controversa por causa de sua visão pessoal sobre o Holocausto, tida como não muito politicamente kosher (diria, em hebraico,).
Cecília Meireles
Falando de literatura, lembro "Escolha o seu Sonho" da nossa Cecília Meireles. Nesse livro, a autora borda com habilidade sobre palavras que ilustram seu sentimentos de felicidade, o lado onírico (dos sonhos), a solidão e a escolha de sonhar como caminho da felicidade. Esboça críticas a diversos pensamentos relativos à liberdade, à morte, aos ideais cívicos da França revolucionária (Liberté, egalité, fraternité) e ao nosso “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”, do Hino da Proclamação da República, letra de Medeiros e Albuquerque com música do grande Leopoldo Miguez.
Leopoldo Miguez
O Hino de Miguez havia sido o grande vencedor do concurso para escolha do Hino Nacional Brasileiro. O resultado do certame, contudo – ouvido o “clamor popular” por Deodoro - foi alterado para dar lugar ao atual, de Francisco Manuel da Silva com letra de Osório Duque Estrada (incorporada oficialmente apenas em 1922). Havia escolha em “ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil” no Hino de Miguez, embebido nos mesmos ideais positivistas do “Ordem e Progresso” e nos pensamentos maçônicos que vieram do Império, atravessaram a Proclamação e permearam a República.
E eis Cecília Meireles refletindo sobre sua escolha do dia: "Hoje eu queria ler livros que não falam de gente, mas só de bichos, de plantas, de pedras: um livro que me levasse por essas solidões da natureza, sem vozes humanas, sem discursos, boatos, mentiras, calúnias, falsidades, elogios, celebrações..." As angústias da nossa genial Cecília Mereles vêm de sua infância no Rio, e suas inquietudes a levaram a escrever um dos poemas mais lindos da nossa língua: O Romanceiro da Inconfidência, em que narra a epopeia de Tiradentes. 
Escolha é palavra recorrente na Bíblia, e tem diversos significados: está em Mateus, 22: 14 “Portanto, muitos são chamados, mas poucos, escolhidos!” (da Bíblia de João Ferreira de Almeida, primeira tradução para o português diretamente dos três idiomas das escrituras sagradas. A do Antigo Testamento foi concluída por Almeida em 1681 e o conjunto dos volumes impressos apenas em 1819). Os escolhidos serão os contemplados com a graça divina.
Nos evangelhos, o verbo escolher e suas conjugações têm um sentido todo especial. “Maria escolheu a parte certa, que não lhe será tirada”, em Lucas 10:38, refere-se ao estado contemplativo, de encontro em patamar superior com o Pai. Marta reclamou ao Senhor que Maria só fazia contemplá-lo, ao passo que ela, sozinha, cuidava dos afazeres da casa. Muitas traduções interpretam a resposta de Cristo como “a melhor parte”, mas a expressão não sugere a mais preguiçosa ou proveitosa? Não, é mais correto ‘a parte certa’, a contemplação do Senhor (agathen merida, em grego, a segunda palavra com diversos significados). Conheci um professor doutor em Teologia da Universidade de Chicago que dominava os três idiomas das Sagradas Escrituras: aramaico, grego e hebraico, a depender do Testamento e do livro. Ele me esclarecia muitas dúvidas quanto ao sentido das passagens e as traduções corretas, mas infelizmente perdi o contato.  
Há a opção dos indecisos: quem nunca brincou de “uni duni te, salame minguê, um sorvete colorê, o escolhido foi você”? Joga-se aí ao acaso alguma opção pouco previsível a depender do número de possibilidades e do objeto com que se inicia a contagem. Ah, e o bem-me-quer, mal-me-quer de criança, despetalando uma margarida, das primeiras brincadeiras de sonhos de amor infantis, plenos de inocência!
Julio Cesar no Rubicone
Aleatória é palavra vem do grego alea, sorte - haja vista a famosa frase alea iacta est, usada em latim pelo grande Imperador Julio César ao decidir atravessar o rio Rubicone, entre a Itália e a antiga Gália Cisalpina. Na música aleatória (aqui, alea: sorte, acaso), os elementos temáticos, rítmicos e estruturais (combinados ou em sua totalidade) são escolhidos ao acaso pelo intérprete. Conhecida na época como música de vanguarda, teve como marco o Music of Changes (1951), de John Cage, mas experiências já haviam feitas por Mozart (séc. 18) e mesmo Rameau (séc. 17/18)!


Saber escolher é uma virtude. Muitos preferem o conformismo, o “seja o que vier”, como Julio Cesar, lançando sua tropa ao rio Rubicone. Fazer escolhas conscientes, sem jogar ao acaso, ao subjetivo ou à paixão, é que leva na maior parte das vezes ao acerto e ao sucesso. 

(Abaixo, Escolha de Hércules. 2 árias do Oratório Hércules. G. F. Händel)

domingo, 2 de outubro de 2016

NOMES, SOBRENOMES E LIVRE ASSOCIAÇÃO

Sigmund Freud
A livre associação foi um dos grandes achados de Freud em seu método psicanalítico. Não sou da área, apenas aficionado pela leitura do assunto, mas posso falar informalmente para abrir este texto. Freud passou a se utilizar dos sonhos e da livre associação (via regia, em latim, ou seja, via real) em suas sessões de psicanálise. Trata-se de um meio natural e menos agressivo e intromissor do que a hipnose de seu colega Breuer. Ela consiste em fazer o paciente ouvir uma palavra e dizer imediatamente outra, sem deixar seu consciente inibir o jogo que leva a revelações do inconsciente.

Na livre associação, a cada palavra dada o paciente tem de dizer outra diferente, no popular “o que der na telha”. Por exemplo, na sequência imaginária de palavras a seguir, a primeira é dita pelo psicanalista, enquanto a segunda pelo paciente, sem pensar: carro/pai, água/praia, beijo/mãe, flor/ freio. Tudo anotado em sua prancheta, o psicanalista já teria, nessa curta série fictícia de palavras, algumas ligações possíveis, como “carro/pai” associando o primeiro à virilidade de seu pai. Já “carinho/mãe” revela a imagem da mãe que conforta, como na frase bíblica “junto àquele que me conforta” (do latim omni possum in eo qui me confortat), em Filipenses 4:13, com frequência erroneamente traduzida para “naquele que me fortalece”). Já “flor/freio” foi um diferencial que imaginei, em que a associação do suposto paciente vem pela consoante “f” (labiodental, em gramática, pois ela é produzida pelos dentes superiores contra o lábio inferior). Mas é possível supor que “freio” é algo que pode conter a “flor”, associada ao amor. Essa seria minha interpretação pessoal.

Dia desses chamei a atenção de um colega para um e-mail que recebi do The New England Conservatory, de Boston (EUA), onde tive a oportunidade de me formar. Era um simples e criativo anúncio da abertura da temporada de 2016-2017 (no exterior, ano letivo e temporadas musicais sempre começam no outono local) da fabulosa orquestra sinfônica do NEC: “Wolfgang, Gustav, Johann Sebastian, Sergei e Franz encontram Cindy, Ellen, Augusta, Anna, Caroline, Jennifer e Kati”. Simplesmente usaram os prenomes de alguns dos mais famosos compositores para juntá-los aos de mulheres compositoras, nessa temporada junto aos grande mestres.

Gustav Mahler e Gustav Holst
Mostrei o anúncio ao colega Antonio Ribeiro, e imediatamente começamos uma associação: Wolfgang é o prenome de Mozart; Gustav, de Mahler. Poderia até ser Gustav Holst, por exemplo, autor de “Os Planetas”, mas a primeira associação foi a mais óbvia para nós. Se eu tivesse acabado de ouvir “Os Planetas”, talvez me viesse à mente Gustav Holst. Johann Sebastian é Bach, claro, e de imediato o associei  ao nome de um barzinho em Belo Horizonte que se chamava João Sebastião Bar, lembrança de adolescente.

Sergei Koussevitzy, regente e professor de Eleazar
Já Sergei me lembrou Sergei Koussevitzky, contrabaixista e regente da Sinfônica de Boston, professor do nosso grande maestro Eleazar de Carvalho, falecido há vinte anos. (Também tive aulas com um ex-discípulo dele, Bill Curtis). Porém, veio meu consciente e organizou tudo: Sergei Koussevitzky nunca foi um compositor como os outros dois xarás, e concluí que deveria ser Sergei Prokofiev, sinfonista e autor de Tenente Kije, peça que tem um belo solo de contrabaixo, meu instrumento. Já meu colega pensou em Sergei Rachmaninoff – não por acaso, autor de quatro dificílimos concertos e uma rapsódia para piano e orquestra. Claro, hoje compositor, meu colega começou na música ao piano, fazendo-o seu instrumento, daí sua associação pessoal. Já Franz é prenome de compositores como Franz Schubert (minha escolha), grande sinfonista, mas meu colega optou por Franz Liszt, autor de obras virtuosísticas para piano e um dos maiores pianistas da história.

Da Vinci
Passamos a falar de nomes e sobrenomes, seus significados em seus idiomas de origem e quem ou o que nos lembram. Alemães levam frequentemente sobrenomes de profissões, que no passado ajudavam a identificar as pessoas: O sobrenome Gustav Mahler significa pintor; Schumacher, o piloto, é o artesão fabricante de sapatos; Zimmermann, da família de músicos, carpinteiro. Em italiano, durante muito tempo, criava-se um sobrenome a partir da origem do cidadão: Giovanni da Palestrina, compositor, Gasparo da Salò, artesão fabricante de violinos antecessor de Stradivarius, o gênio Leonardo da Vinci, cujos sobrenomes identificam suas origens.

Alfred Hitchcock e Albert ("Alfred") Speer
Daí passamos a uma rápida brincadeira com outros nomes, como Alfred, que a meu colega lembrou Hitchcock, o grande cineasta do suspense. Concordei, mas depois pensei, em Albert (troquei-o por Alfred) Speer, o arquiteto nazista que fazia dos comícios de Hitler grandiosos espetáculos cênicos (curioso: li recentemente sobre Alfred Albert White, tripulante sobrevivente do Titanic, que depois do naufrágio voltou a trabalhar em navios, até sua morte. Não foi por acaso meu lapso Alfred-Albert, então). Prossegui:

Heitor Coutinho, falecido em 2005
Heitor, claro, é o nosso Villa-Lobos, mas para mim também Heitor Coutinho, que pintou um retrato de meu pai, que ficava na sala de jantar, ou o assassino de Dana de Teffé, Heitor Coutinho Leopoldo Heitor, matéria recente de jornal pelos 55 anos do crime. A memória de cada um é íntima, exclusiva, e só dele. Por isso temos gostos diferentes para música, por associação e memória, para lugares, o que lembra sua família, criação ou onde se sentiu bem, algo que tenha marcado sua vida. O nosso dia a dia é um mundo de associações que escapa à nossa consciência, mas que merecem ser pensadas quando em conflito, ansiedade ou dúvida, com o valioso auxílio de nossa razão.