Chegamos os seis quase juntos naquele
teatro enorme, vazio, eu já havia tocado bastante ali. Fomos para o nosso lugar,
afinamos, arrumamos as estantes, preludiamos, papeamos como em qualquer conjunto.
Logo chegou o Dori Caymmi, proseamos um tanto, ele pegou umas partituras novas e,
naquela bagunça, passou a escrever arranjos sem usar o piano, transpondo de
cabeça as partes, uma a uma, até as de sax alto e tenor, sem uma partitura
geral! (Aí o porquê do Grammy Latino e da indicação ao Grammy Internacional). Ao
piano, Luizão Paiva, sax, Zé Nogueira (do segundo não me lembro), violão, Vital Farias, bateria, Joca
Moraes, eu no contrabaixo. Pronto, hora de ensaiar a vera, Dori com a
palavra. Assim nasceram os arranjos das músicas do Chico para a Gota D’Água, peça
de 1975. Sob o medo (não, já não cabia temer) de um possível veto da censura
logo na estreia (no ano anterior, o gen. Bandeira havia mandado a PF impedir Calabar,
de Chico e Ruy Guerra, 'subversiva ode à traição').
Eurípides: 480-406 a.C. |
A peça era baseada na tragédia grega
Medeia, de Eurípides (480-106 a.C.), ambientada em um conjunto habitacional
pobre do Rio. Creonte, papel de Osvaldo Loureiro, era o todo-poderoso da
comunidade, e sua filha Alma, a jovem e linda Bete Mendes, seduzia Jasão,
marido de Joana, a Medeia. Na batuta da cena, o milanês Gianni Rato, gênio da cenografia,
da coreografia e tudo o que se desenrola sobre um palco. Em sua bagagem, a Meca
da ópera, o La Scalla de Milão, Maria Callas. Atores no palco, bailarinos,
músicos a postos, ensaios, tudo sob os olhos críticos do Chico Buarque e Paulo
Pontes, autores da peça, e os argutos Dori e Rato. As cenas, o clima, os
movimentos, tudo ia tomando forma e espaço em um emaranhado orquestral.
(Folha PE) |
Um dia percebi que observava tudo a
Sra. Abigail Izquierdo Ferreira (a mãe dela, Aída, era argentina, e tinha esse sugestivo
prenome operístico). Meio franzina, baixinha, mal saída dos 50 anos. Modesta,
simpática, logo fez amizades, armada apenas com seu carisma. Bibi Ferreira,
atriz com formação em Londres, cantora, diretora, artista vinte vezes premiada,
musicista e dona de uma simpatia que conspirava com sua luz natural e estelar. Dia
daqueles, sentou-se ao piano, nem tinha tempo de estudar mas sabia muito bem do
teclado. Cabelos escorridos, braços magros, um corpo que não escondia a idade
(nem se incomodava com isso, haveria de colecionar tantas décadas de vida). O palco
luzindo à presença dela.
Chico e Paulo |
Chico e Paulo Pontes, marido de Bibi na
época, escreveram o texto como se ela fosse a única. Cantava muito bem, exprimia
na face e no corpo um drama para lá de intenso. As juras de vingar Jasão,
marido e traíra, traidor com o beneplácito do chefão canalha, Creonte: “pra mim
/ basta um dia / não mais que um dia / um meio dia”. A plateia seria conduzida
à tragédia, um crescendo enorme, como em uma sinfonia do romantismo tardio. Medeia
envenena os filhos e se mata. No longo monólogo final, apenas um canhão, aquele
pequeno foco redondo e intenso de luz circundando Bibi, já atirada no chão, o
resto era breu, silêncio. Logo nas primeiras récitas não resisti, fui fazendo um
coração da corda mais grave abafada, tum-tum, tum-tum. Daí esmorecendo, como se
a vida fosse desvanecer na pulsação audível, logo suave até sumir, logo estancada
em silêncio. Havia sido a gota d’água.
Momentos divertidos, papos de bastidor,
molecagens de músicos. Certa vez, com apenas uma longa camisa social masculina,
Bibi chegou para nós músicos com a delicadeza de sempre. Vim lhes pedir um
favor (diabo, o que seria? Tocar mais baixo?). Disse que estava meio afônica, não
conseguiria chegar aos agudos com a garganta ruim, se a gente poderia baixar em
um semitom a tonalidade da música. Pânico. Era impossível, havia 2 saxes,
instrumentos transpositores, baixar todos um meio tom de lá menor, loucura
tentar, estava tudo escrito, ia desarranjar os arranjos do Caymmi, tudo
escritinho com esmero.
Resolvemos encarar a fera, enganar a Bibi.
E haveria de ser só entre nós e na cara de pau. Vamos tocar a música como está,
decidimos. Hora da cena, canta a Bibi “...se tritura, se atura e se cura a dor /
na orgia”. Uma voz gutural, uterina, em desespero, sangue nos olhos, cravou
todos os agudos. Na hora dos aplausos, ao final, do proscênio Bibi fez um
gesto elegante para nós seis, talvez já sete, talvez já fôssemos sete, talvez Bibi
tivesse percebido e nos fosse cúmplice. Guardando os instrumentos, a peça havia
terminado outra vez, o Teatro Tereza Rachel apinhado, já íamos saindo, chega a
Bibi, o que ela ia fazer, ralhar conosco, dar um pito de mãe, xingar? Não, ela
veio agradecer e me lembro bem das palavras, obrigada, meninos, vocês são uns amores, disse.
Assoprou um beijo sem batom de rosto lavado, sem maquiagem, linda.
Tum-tum, tum-tum do
coração, e sai da cena Bibi, sem termos tido a chance de explicar o ocorrido, nossa
consciência já pesava como um tijolo. Mas estrela é estrela, estava acima
disso, receberia tudo de coração, com um sorriso, pensamos. Se um dia nos
encontrarmos, Bibi, ou seja, a Medeia, Joana, com que roupa for (a vida de todos
os papeis era dela mesma), My Fair Lady, se nos encontrarmos eu conto, se é que você não sabe.
Você, que além de todo o já dito e redito é e sempre será magnânima, nos
perdoará (mas será que percebera a travessura?).
Nesses últimos dias publicaram
tantas biografias, reportagens, não me caberia acrescentar nada. Só este
depoimento e a prazenteira confissão póstuma da traquinagem.