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sábado, 31 de agosto de 2019

SOBRE A PESQUISA CIENTÍFICA


Fui parecerista ad hoc da Fapesp, coisa de dois anos. Desconhecendo a comissão que fez o convite, aceitei, consciente de que não receberia pelo trabalho voluntário. Minha área não era a produção científica das chamadas exatas, mas a do campo das humanas, comunicações e artes, e os projetos chegavam e eram devolvidos pela Internet com as avaliações, sem poder identificar meus interlocutores. Como em todas as vezes em que fiz banca, fui jurado ou perito, uma vez parecerista busquei ser correto e justo: rejeitei projeto fraco de um conhecido mas dei aval à proposta de um desafeto.
A Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) foi criada pela Constituição Estadual de 1947 (Art. 123): “O amparo à pesquisa científica será propiciado pelo Estado, por intermédio de uma Fundação, organizada em moldes que forem estabelecidos em lei”. Determina, para custeio, ‘não menos do que meio por cento da receita ordinária’ (O complexo de receitas do Estado, números que hoje seriam fenomenais). Em 1989, o decreto 29.598 estabeleceu a autonomia das universidades, assegurando-as  não-ingerência externa na quase totalidade dos atos. Novos percentuais couberam à Constituição Estadual, do mesmo ano, que reservou à Fapesp 1% da arrecadação tributária (ICMS), e somente dela. À USP, Unesp e Unicamp couberam, primeiramente, 6,5%, e mais tarde 9,57%.
Problemas: (1) Sutilezas de interpretação. A LOA /2017 propunha “até” aqueles percentuais, o que é muito diferente do original “no mínimo”, apesar de o governo insistir que ambas eram a mesma coisa. (2) “Abertura de crédito suplementar”, transferência de verbas já dedicadas de uma rubrica para outra. Ou: a Assembleia Legislativa naquele ano transferiu da Fapesp, sob protestos da comunidade científica, 120 milhões, 12,63% do repasse total, mas, por inconstitucional, teve de devolvê-los. (3) Impopular eufemismo, o “contingenciamento” – que significa “não há cortes no orçamento, mas ‘n%’ vocês não podem usar”. (4) A crise econômica e a queda na arrecadação, mas esse é um exercício de futurologia em que eu, leigo, sequer ousaria adentrar. Coisa para um economista de sólida formação tributária com uma bola de cristal milagrosa nas mãos.
CWTS Journal
Associada à Fapesp e ao CNPq, em 2019 a USP foi classificada pela CWTS holandesa em 8° lugar no mundo por sua produção científica, e ficou entre as 150 melhores universidades do mundo, segundo o Academic Ranking of World Universities (ARWU)! Quase totalidade do que se produziu nesses 73 anos de Fapesp e 68 de CNPq reverteu à população - de novos tratamentos médicos à obra de Graciliano Ramos. Uma plêiade de cientistas trabalhando pela comunidade em prol da coisa pública.
(Foto: Brasil 247)
O CNPq (Conselho Nacional de Pesquisa), órgão federal – cujo repasse de verbas é feito a bel-prazer do governo -, tem sido foco de imensos cortes, tão dramáticos que culminaram agora com a suspensão de 40 mil bolsas. Criado pela lei 1.310/51 para ser responsável pela organização de todos os sistemas de suporte à pesquisa, o Conselho chegou a levar o Brasil, ao lado da Fapesp e outros, a ingressar no ‘clube’ dos dezoito países que representam, cada, ao menos 1% da produção científica mundial.
César Lattes
O mentor do CNPq, César Lattes, falecido em 2005, foi parceiro na descoberta do ‘méson-pi’, que deu a Cecil Powell o Nobel de Física em 1950, mas a coautoria do brasileiro foi preterida injustamente. Como deferência, em 1999 o sistema nacional de catalogação de currículos e pesquisas de cientistas e acadêmicos passou a se chamar ‘Plataforma Lattes’. O físico Joaquim da Costa Ribeiro, falecido em 1960, foi o descobridor do ‘efeito termodielétrico’, e ocupou boa parte de sua vida estudando a radioatividade. Foi o único brasileiro a ter assento no Comitê Consultivo da ONU para Aplicações Pacíficas da Energia Nuclear.
Crodowaldo Pavan
Crodowaldo Pavan (1919-2009), biólogo, estudou na USP a convite de André Dreyfus, um dos criadores da Universidade, e logo tornou-se docente. Foi presidente do CNPq (1986-1990), e após se aposentar rumou para Oak Ridge, EUA, onde criou um laboratório de genética celular de âmbito nacional; depois, foi professor catedrático na Texas University, em Austin. Catalogar todos os avanços creditados a esses órgãos e pesquisadores seria um trabalho de envergadura monumental.
Stephen Hawking, o gênio.
Não há semana que não traga novidades: no dia em que escrevo, a USP divulgou mais um avanço na área de química e biomedicina: cientistas conseguiram associar o metabolismo da gordura ao desenvolvimento de uma das doenças degenerativas mais terríveis, a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), que começa a devorar vidas desde cedo, a exemplo de Stephen Hawkins - um dos maiores físicos da história. Só nessa área, somem-se Alzheimer, Parkinson, vários tipos de câncer, Aids, drogas que salvam vidas e um sem-número de moléstias que receberam inestimável contribuição dos pesquisadores.
Estudos sobre pontes, viadutos e barragens – que tanto caem! -, novos materiais, combustíveis não-fósseis, controle de poluentes, descobertas arqueológicas, teorias antropológicas, estudos da história, cultura e artes, abrem uma enorme estrada rumo a novas descobertas.
Laboratório na Yale University
O custo disso? Material e equipamentos, e ao pesquisador-bolsista não um salário, mas o mínimo que possa prover seu sustento, o suficiente para passar dias inteiros em laboratórios e bibliotecas, sempre em contato com o mundo, seja via internet ou no exterior. A labuta desses bolsistas, docentes e orientadores abre caminho para dias melhores. Porque sem pesquisa científica e universidade pública de alto nível o destino nos reservará a medíocre subserviência aos países que as priorizam. E deles passaremos a comprar com royalties o que deixarmos de produzir.


sábado, 24 de agosto de 2019

PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DEFLORES

“Tamba-tajá me faz feliz / que o meu amor me queira bem / que seu amor seja só meu, de mais ninguém”. É uma canção sobre lenda indígena (registrada pelo paraense Waldemar Henrique), que na voz dengosa e merencória da Fafá de Belém, lançou-a em 1976. Da cultura tupi-guarani, que triste história! Um valoroso índio Macuxi e uma linda moça da tribo se enamoraram e amavam-se profundamente, casando-se conforme os rituais. Um dia, o infortúnio: ela adoeceu, nem andar conseguia. Para mantê-la junto de si, por onde quer que andasse o índio a carregava em uma espécie de rede nas costas. O fardo pesava demais quando ele percebeu que sua cara-metade havia morrido. Arrasado, enterrou-se junto com ela à beira de um riacho. Tempo passou e um dia nasceu ali uma frondosa planta, Tambatajá. Parte do ano ela descansa, para depois renascer plena de vida, espalhando colorido pelos bosques e florestas: verde, vermelho, roxo e às vezes prata.
Tambatajá: o renascer na Sagração da Primavera.

(Eu também achava que minha Tambatajá havia morrido, mas de triste deixei o vaso no lugar. Pois renasceu, viveu e hibernou de novo. Agora, com a partida do inverno, já ressurge da terra, lindas folhas em pares grande-pequena, simbolizando casais.)
Tambatajá dormindo, plantei uma Ráfia (Raphia Farinifera) de pequenas mas generosas copas de folhas compridas. Das três dezenas de espécies, há uma africana que pode chegar a 10m de altura. Se jovem, usam-na trançada; velha, serve para fazer uma espécie de cera; e sendo vinífera, dos frutos pode-se fazer licor. As domésticas, meninotas de apenas 2m de altura como a minha, são ornamentais e vicejam o ano inteiro.
O jardim de inverno já encorpava, melhor partir para o quintal: Ixora, uma das mais de 300 espécies de rubiáceas conhecidas. Dezenas, vermelhas e amarelas para compor com o arredor. Do sânscrito, Ishvara tem seus significados, e para a maioria dos hindus é Shiva (‘o auspicioso’), uma das divindades. Seus pequenos buquês de minúsculas flores também podem deixar de brotar, mas voltam a florir quando o clima favorece.
Completei o jardim da frente com uma espécie de palmeira, o Salgueiro Jerivá (Syagrus Romanzoffiana), uma das inúmeras espécies brasileiras, entre as folhagens de um enorme Chorão (S. Babylonica)  e seis Podocarpos (Podocarpus Macrophyllus) junto à casa. O Jerivá chega a 5m, pouco mais, e quando adulto se orna de coquinhos adocicados que fazem a festa de passarinhos, maritacas e papagaios.
Papiro Ebers
O salgueiro era conhecido pelos egípcios há mais de 3.500 anos, conforme o papiro de Ebers. O ácido salicílico de sua casca servia para alijar dores e ferimentos, mas se ingerido, ai da flora intestinal e do estômago! Em 1897, o laboratório alemão Bayer formulou o ácido acetilsalicílico, reduzindo os efeitos colaterais: AAS, Aspirina e, claro, Bayaspirina, entre outras).
Para graça do meu pequeno jardim interno, plantei Lírios da Paz (Stathiphyllum Wallisi). Em pouco tempo surgiram lindas flores, branquíssimas, entre folhagens verdes misteriosamente brilhantes. Na Síria, diz-se que a planta absorve os maus espíritos, que se transmutam em bons eflúvios como lindas flores, alvas como leite. Chegou aqui trazida da América Central, onde era cultivada para trazer perfume às moradas.
Dracenas
Agreguei uma Dracena (Dracaena Terminalis), de folhagens arroxeadas, e, par com ela, Crótons Vermelhos (Codiaeum Variegatum). Suspenso e também combinando, um Lambari Roxo (Tradescantia Zebrina), fora uma Samambaia (Polypodium Persicifolium). Ah, e as pequenas Suculentas (belas variações ornamentais de cactos).
Cróton: em floração

Os girassóis da paixão de Van Gogh
Os incas já conheciam as propriedades dos Girassóis: mascavam as sementes, extraíam óleo e admiravam sua  reverência ao astro-rei: as flores movimentam-se de acordo com a luz solar, por isso são ditas heliotrópicas, vivem pelo astro que os guia, tal qual os planetas de nosso sistema o gravitam, em deferência. Thomas, meu neto de cinco anos que nasceu e mora em um lugar onde se estimula o gosto por plantas, flores e natureza – Londres é 40% área verde! -, ganhou em uma festa sementes de Girassol e aqui as plantou em um vaso. No começo, cuidados extremos, muita água todos os dias, tarefa da qual me encarrego e aproveito para fotografar, enviando ao pequeno jardineiro londrino imagens de seus ‘bebês’, crescendo a cada dia.
O título deste artigo se deve a ele ser o único sobre plantas que escrevi; nele, de carona, vai uma homenagem ao compositor Geraldo Vandré, a quem conheci em 1989. Termino evocando o lindo coral Jesu bleibet meine Freude (Jesus, minha eterna alegria) da Cantata 147, composta por Bach sobre melodia de Johann Schop. Música que inspirou o Rancho das Flores (1961) do Vinicius de Morais, cantada ora em compasso ternário composto, como em Bach (9/8), ora em um quaternário meio forçado, fazendo-a espécie de marcha-rancho. Uma ode às flores que dão vida a nossas vidas: “Olhem bem para a Rosa, não há mais formosa/ é a flor dos amantes, é a rosa-mulher/ que em perfume e nobreza vem antes do cravo/ e do lírio e da hortênsia/ e da dália e do bom crisântemo/ e até mesmo do puro e gentil mal-me-quer”. “Satisfeita da vida/ vem a Margarida dos que têm paixão/ e agora é a vez da Papoula vermelha/ que dá tanto mel pras abelhas/ e alegra este mundo tão triste/ com a cor que é a do meu coração”. E assim passeia o ‘Poetinha’, desfilando seu rosário de pétalas, cada uma com suas virtudes. (Ouça abaixo, o Rancho das Flores)

[O leitor deve ter percebido que escrevi os nomes das plantas com iniciais maiúsculas. Como pessoas, com elas se conversa, mas não carece de coisa falada, bastam coração e pensamento].

sábado, 17 de agosto de 2019

BONAPARTE. POR FORA, POR DENTRO E AO AVESSO


Seria cegueira intelectual ignorar o pensamento de um líder por seu passado ou ideologia. Reflexões, estudos e aforismas de Bonaparte são fundamentais à compreensão da nossa civilização a partir do turning point, a Revolução Francesa.  Ao leigo com formação básica convém fazer um passeio sobre tema, mas é essencial desprender-se de conceitos e pré-conceitos. As análises críticas de Bonaparte representam uma luz tanto sobre a visão do passado quanto da atualidade - e uma perspectiva do futuro. (O compositor Arnold Schönberg falou sobre investigar o que foi feito no passado, compreender o que está acontecendo no presente para antever os rumos daquilo que, presumivelmente, deverá acontecer).
Le Brumaire: ikustração
Três livros, três abordagens. O primeiro deles é O 18 Brumário de Luís Bonaparte¹ (Der 18te Brumaire des Louis Napoleon, em alemão). No calendário pós-Revolução Francesa, Brumário era o segundo mês (22/10 a 20/11) do ano VIII, e 18 o dia do golpe. O texto se debruça sobre os fatos que desembocaram na chamada Revolução de Fevereiro de 1848 - “A primavera dos povos” -, eclosão de revoltas em boa parte Europa que na França culminou com um golpe de Luís Bonaparte (Napoleão III), em 1851. Como seu tio, ele derrubou a República e fez sagrar-se imperador. (Beethoven, entusiasta republicano, em 1804 rasurou a dedicatória na partitura original feita a Napoleão I na Sinfonia nª 3, Eroica. Para ele, seu herói morrera ao se ungir imperador).
Dedicatória na partitura: rasurada por Beethoven

Lênin: outubro de 1917
‘O 18 Brumário’ é um estudo histórico e filosófico do alemão Karl Marx (1818-1883). Indispensável lembrar essa e outras contribuições do autor à história, à filosofia e à economia, de que alguns exemplos são os conceitos de Práxis, um materialismo oposto ao positivista, e a mais valia/menor valia, entre tantos outros. Todos de grande valor para o estudo dessas ciências sob qualquer ótica, incluindo a antimarxista (et pour cause: por um bom motivo!) Ressalto que este artigo não é uma abordagem à luz da teoria de  Marx, levada adiante por Lênin e os bolcheviques, movimento que culminou com a Revolução Comunista de 1917, cedo transformada em retumbante fracasso para a humanidade. E menos ainda, por óbvio, comungo das ideias bonapartistas ou maquiavelistas.
No segundo livro, Manual do Líder², encontramos pensamentos, aforismas e análises de Napoleão I, ideias compiladas por Jules Bertaut. Ali, ele se desnuda em um texto depositário de seu livre-pensar. Invoca a si próprio o talento de um Beethoven, seu antigo admirador, quando diz “Amo o poder, mas como artista. Amo-o como o músico ama seu violino para dele tirar sons, acordes e harmonias”.  Sobre as virtudes do líder, afirma que “é preciso ter a cabeça fria, (...) que nunca se exalte, não se deixe deslumbrar pelas boas ou más notícias”, e que “a força em si não é nada sem a inteligência”.
O Príncipe, edição com comentários de Bonaparte
O Príncipe, de Maquiavel³, o último desta tríade de publicações a que me refiro, traz anotações feitas por Bonaparte à margem do texto. Nele, em ‘os vários tipos de estados e sua constituição’, sobre os novos domínios a serem consolidados, diz: “assim será o meu, se Deus me conceder vida bastante”. Ao lado de uma vaga fé que brota aqui e ali não afinada com seus atos, ele prevê um árduo caminho, uma jornada que lhe custaria longa vida. Quanto à observação de Maquiavel sobre a necessária presença do soberano, “inibitória da ganância de seus lugares-tenentes”, Napoleão contesta, pois acha conveniente seus subalternos ‘enriquecerem’, justificando: “me servem incondicionalmente”. Moral à parte, o laissez voler (‘deixe roubar’), tão comum em nossas plagas, é o sustentáculo do poder de muitos.
Luís XIV
Maquiavel insiste na necessidade de o soberano estar presente no território, pois dessa forma “será muito difícil arrebatá-lo a seu domínio”. Napoleão, comandante expansionista e conquistador, acha que isso é “impossível, no que me diz respeito; o terror do meu nome equivalerá à minha presença” - espírito totalitário, impondo o medo até se ausente. Sobre ‘a liberalidade e a parcimônia’, Maquiavel pensa que, “se praticada, de modo que seja vista por todos, prejudicará o príncipe”, e o francês acha que é uma verdade fundamental, mas pergunta: “de que valeria ser liberal se não fosse por interesse ou vaidade?” Esse narcisismo mascarado de falso liberal, que lhe era caro, teria, sim, implicações e consequências negativas. Mas ele se bastava, ‘sou assim e ponto’. Poderia ter repetido Luís XIV: ‘o Estado sou eu’.
Univ. de Cambridge: biblioteca do Depto. de História
Se em ‘O 18 Brumário’ é analisada a restauração imperial do sobrinho Charles-Louis, no ‘Manual’ é Napoleão I quem expõe sua radiografia de gênio; em ‘O Príncipe’, ele faz seus os poucos pensamentos de Maquiavel que lhe agradam; outros, ele manipula a seu gosto, e aniquila todos aqueles de que, ante suas próprias obcecadas convicções, discorda. As três publicações dissecam o espírito bonapartista e seu tempo por dentro, intelectualmente e por fora. Na pior das hipóteses, foi um líder insano, mas de grande inteligência. Quantos não pensaram nos delírios de conquista de Bonaparte, Hitler e Stalin? E os pequenos, pobres miniaturas, ávidos por autocracia?  Na história, quando os personagens se repetem, as imitações são falsas.
*  *  *

¹MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Trad. Hélio Schneider. SP: Boitempo, 2011.
²BERTAUT, Jules. Manual do Líder. Trad. Julia da Rosa Simões. Pallotti: Porto Alegre, LP&M, 2011.  
³MAQUIAVEL, Nicolò. O Príncipe. Trad. Pietro Nassetti. SP: Martin Claret, 2001.


sábado, 10 de agosto de 2019

GANHOU UM STRADIVARIUS QUE FOI DA NONNA?

Parabéns. Faça-o presente para um jovem estudante

Cremona
Antonio Stradivari (1644-1737) latinizava a assinatura no interior dos instrumentos: Antonius Stradiuarius. De Cremona, Italia, trata-se do plural de Stradivare, derivado de Stradivarto, variação Lombarda para Stradiere. Já a forma Strada averta, segundo o piemontês Artegiano, autor de uma lista de nascidos na cidade até o ano 1.300, seria, no dialeto cremonês, strada aperta - estrada aberta, em italiano. Nos assentamentos da Catedral de Cremona há registro do casamento de Alessandro, filho de Giulio Cesare Stradivari, e Anna, filha de Leonardo Moroni, que viriam a ser os pais de Antonio, em 30 de agosto de 1.622. (Sem comprovação, há dúvidas sobre a naturalidade de Antonio, segundo Mandelli, pois seu primeiro casamento, com Francesca Ferraboschi, foi registrado tendo-o como residente na paróquia de Santa Cecilia¹).
Karl Davidov
O mais famoso luthier de todos os tempos só encontra rivalidade em Giuseppe Guarnieri, ‘Del Gesù’ (1698-1744), preferido por alguns dos maiores solistas do instrumento, como Paganini e Vieuxtemps, devido ao som encorpado. Mas o mito Strad reveste-se de atmosfera mágica, com direito a lendas sobre um verniz secreto. Entre seus melhores violinos existentes, parte do total de 1.116 instrumentos, os mais valiosos têm pedigree. Levam o nome do primeiro proprietário, um nobre ou um virtuose. A isso se dedicou Toby Farber, relatando a origem, a vida e o percurso de cinco deles, os violinos Messias (‘o ungido’, em aramaico), o Viotti, que já pertenceu ao colecionador Gerald Modern, a quem visitei em São Paulo e me deixou examinar um Nicolò Amati, que é tido como um dos mestres de Stradivari. Toby também discorreu sobre o Kevenhüller, o Paganini, o Lipinski e o cello Davidov².
Messias, 'O Ungido'

Catálogo Christie's de 16 de maio de 2006: venda do 'Hammer'
Alguns instrumentos de Stradivari chamam a atenção pelos números estratosféricos atingidos nos leilões: em valores atualizados, R$ 17,10 milhões pelo ‘Hammer’, de que falarei mais adiante, em 2005; R$ 35,05 mi para o ‘Winton’, em 1999, e R$ 60,42 mi pelo ‘Lady Blunt’, em 2011, todos vendidos por leiloeiros famosos como Christie’s, Tarisio e Brompton’s. Mas o que faz desses instrumentos algo tão especial? Todos têm uma história, uma espécie de currículo: o primeiro possuidor, o ano em que foi criado, o estado de conservação e os grandes solistas que os tocaram.
Certificado de Rembert Wurlitzer
Essas raridades, para alcançarem preços monumentais, possuem certificados que podem custar 3% do valor estimado pelo especialista. Ou seja, a cada milhão de dólares, paga-se 30 mil. E no mercado de grandes violinos como os Strads não basta qualquer avaliador: só servem aqueles que podem conferir o certificado até a instrumentos que sequer possuem assinatura interna ou uma marca na voluta, extremidade do braço. Entre eles, Rembert Wurlitzer e Herrmann, um berlinense radicado nos EUA, de quem se conta que, enquanto atendia um cliente, viu Pinchas Zukerman chegar e abrir um estojo sobre o balcão, a dois metros dele. Exclamou: “desde quando você tem um Strad?” Foram grandes nomes como esses, além de Jacques Français, de NY, Bein & Fushi, de Chicago, William Moennig, da Filadélfia e Henry Hill, Inglaterra, os certificadores acreditados. Com dois ou três desses papers um Strad é genuíno para qualquer mercado! Só há um problema: esses especialistas estão todos mortos, não há mais palavra definitiva como a deles. (O ‘Hammer’, que mencionei anteriormente, tinha quatro desses documentos).
Etiquetas originais de Stradivari
Após tornarem-se frequentes as demandas judiciais, os leiloeiros, diante de instrumentos não bem documentados - e sem terem a expertise para certificá-los -, usam de artifícios, anunciando-os como ascribed to, attributed to (‘atribuído a’), probably by (provavelmente por). Assim, não correm o risco de sofrer processos milionários por venderem gato por lebre, ou, juridicamente falando, estelionato. Os valores dos instrumentos que não estão na lista especial dos registrados e certificados pelos grandes nomes não alçam voos mais altos. Quantos Strads passaram pelas mãos de Luigi Tarisio (1796-1854) e conde Cozio (1755-1840), dois dos maiores colecionadores e negociantes da história, donos de feitos espetaculares e lendários3?
Tabela de medidas violinos Stradivarius, ano a ano
As principais etiquetas e detalhes dos grandes luthiers foram catalogados por Lütgendorff4, assim como cada ciclo de instrumentos com as principais medidas e padrões Strad estão no livro de Hill’s & Sons (op. cit), fora muito que já foi escrito sobre o assunto. Existe ainda em Londres um laboratório com amostras microscópicas de pó das madeiras utilizadas por Stradivari e outros grandes autores, modelos para  formar uma espécie de ‘banco de DNAs’ comparativos das origens, o que torna basicamente impossível introduzir ‘novos Strads’ no mundo.
O 'Hammer': histórico e proveniência
São incontáveis as cópias tchecas, alemãs ou, com muita sorte, as do francês Jean-Baptiste Vuillaume (1798-1875), talvez o maior copiador da história, que, utilizando a chamada ‘forma francesa’, bem mais rápida, chegou a produzir 6 mil instrumentos. Portanto, se você ganhou um Stradivarius encontrado no porão da Nonna, não se entusiasme:  ele não é original. Deve ser um instrumento de pouco ou quase nenhum grande valor. 


(1 ) HILL, Henry, Arthur & Alfred. Antonio Stradivari, His Life and Work. NY: Dover, 1963.   
(2) FABER, Toby. Stradivarius. Trad. de Clovis Marques. Rio: Record, 2006              
(3) SILVERMAN, William A. The Violin Hunter. London: W. Reeves, 1972.                         
(4) LÜTTGENDORFF, Willibald. Die Geige und Lautenmacher. Frankfurt: Anftalt A. G., 1922.

sábado, 3 de agosto de 2019

O MORCEGO



Há três anos, escrevi sobre o húngaro Gèza Kiszely, meu saudoso professor de História da Música na Fefierj, Rio, início dos anos 1970, e depois da Escola Municipal de Música de São Paulo, de que fui diretor a partir de 1989. George, seu nome brasileiro, morou no Recife, e relatou-me uma cena dantesca em apresentação do lendário virtuose Jascha Heifetz em 1931, no belíssimo Teatro Santa Isabel, de 1850, que segue os padrões do Opéra de Paris. Sem ar condicionado, calor medonho, algumas aberturas na parte superior deixavam o vento refrescar um pouco a sala.
Jascha Heifetz
Heifetz começou o recital e logo um dos ilustres visitantes contumazes do teatro, um morcego, entrou por uma das aberturas e tirou um voo rasante do gênio do violino - que parou e gritou, it’s me or the bat  (“ou eu ou o morcego”), retirando-se não sem antes exigir que os ingressos fossem devolvidos. Evacuaram o público mas pediram que todos aguardassem, prometeram expulsar o invasor. Algum tempo, Heifetz e plateia mais calmos, o virtuose terminou o recital. Frio, mas profissionalmente.
O luxuoso Santa Isabel, do Recife
Anos depois, um certo violinista (e importante catedrático da Escola Nacional de Música do Rio cujo nome omito em respeito) foi tocar no mesmo teatro e lá veio um morcego camicase tirar casquinha de seu violino. Aproveitando-se da lenda Heifetz, parou e gritou: “ou eu ou o morcego”! O público, em coro, bradou “morcego, morcego!” (Há coisas que só raros podem fazer – como disse meu pai, tudo depende de quem assina o cheque. Se ele próprio fosse sacar US$ 1 milhão na boca do caixa no Chase Manhattan, em NY, em minutos seria preso. Mas um telefonema do Rockefeller bastaria para ter carros-fortes, seguranças, e o CEO levando-lhe fortunas. Como agrado, garrafas caríssimas de Châteaux Montrôse de safra).
O Morcego, montagem da BBC
O Morcego (Die Fledermaus) é uma divertida opereta do austríaco Johann Strauss II (1825/1899), autor de singelas quadrilhas, valsas e balés, baseada em uma farsa do escritor alemão Julius Benedix. (Strauss II era filho de Johann Strauss I, nada a ver com o Richard Strauss, de Assim Falou Zaratustra). Na cena, Falke, tido como amigo de Eisenstein (ambos barítonos), vai em nome dele convidar Rosalinde (soprano), para um baile. Daí o divertido dueto Kommt mit mir zum Souper (do francês souper ): Venha ao Jantar Comigo. Em festa no ano anterior, Falke, fantasiado de morcego, havia sido largado por Eisenstein na sarjeta, totalmente bêbado, alvo das chacotas da vizinhança. Seguem-se os tropeços e desencontros típicos de comédias, vingança e ciúmes, falsas amizades, chefatura de polícia e muita confusão.
O atual Parque Lage
A grande soprano italiana Gabriella Besanzoni apaixonou-se por um miliardário industrial carioca, o engenheiro Henrique Lage, e veio com ele, que não se chamava Onassis, mas tinha Gabriella como sua Callas, morar no Rio de Janeiro. Como presente de núpcias, uma mansão de área monumental ao pé do Corcovado repleta de enormes salas e banheiros, cavernas com estalactites e tudo o que o dinheiro poderia comprar. Eu morava com meus pais em um pequeno prédio do outro lado da rua Jardim Botânico, bem em frente ao poste da parada onde em 2.000 aconteceria o trágico sequestro do ônibus 174. Tudo abandonado (hoje é o belo Parque Lage), tinha seus grandes atrativos: eu, adolescente, saltava-lhe o muro com amigos para fazer traquinagens, atravessar jacas com setas de uma besta e, claro, entrar nas cavernas para explorá-las. Os morcegos não nos incomodavam, éramos destemidos desbravadores. Só não sabia o que me esperava.
Algum tempo depois caí doente. Minha mãe levou-me a vários médicos e nada de diagnóstico. Fomos para BH, onde meu tio Marcelo Campos Christo, que se tornou cirurgião cardiovascular de grande renome, debruçou-se sobre tratados e compêndios até achar fundamentos para sua tese: histoplasmose, doença transmitida por fungo de morcegos que, alojada nos pulmões, infectava e poderia matar. Teste e medicação vieram dos EUA, e em breve eu felizmente estava curado, a doença não conseguiu levar adiante sua terrível missão. Sumiu o fungo do sangue e da vida, mas muitos anos depois, na imigração americana para obtenção de meu visto permanente, fizeram uma chapa especial, já que suspeitaram de algum ínfimo detalhe no raio x. Felizmente, deu ‘nódulo linfático calcificado, sem doença ativa’. O morcego é o Capeta em pessoa, suas fezes se espalham e infectam, por vezes letalmente.
Há alguns meses, no apartamento onde nossa família morou, fechado e escuro após o falecimento de meus pais, entrou um desses quirópteros. Espatifou uma lâmpada com um rasante, ferindo-se, espalhando vidro e gotículas de sangue. A preocupação era com objetos e móveis, claro, e não o morcego. Deve-se fechar tudo, deixar escurecer com apenas uma saída livre esperar. Nada mais a fazer.
Béla Lugosi em ação
Matar com ‘chumbinho’, coquetel de sangue de boi com veneno, nunca! Os dorminhocos alados são protegidos pelas leis 5.197/67 e 9.605/98, que penalizam quem fizer uso de ‘condutas lesivas ao meio ambiente’ e amparam os voadores noctívagos. Mesmo que, além da minha então rara histoplasmose, ainda transmitam raiva e, em alguns países, até ebola. Sem falar  nos hematófagos, morcegos-vampiros como os da Transilvânia, que sugam em uma só dentada, como nos filmes de Béla Lugosi ou Christopher Lee, ou ainda o histórico ‘M, O Vampiro de Düsseldorf’, do Fritz Lang (1931). (Linda fita é A Dança dos Vampiros, de Polanski, com a estonteante Sharon Tate).
Morcego bom é morcego morto, diriam certos políticos. Fora o da opereta, bom mesmo só o Batman, o super-herói de quadrinhos criados por Bob Kane e Bill Finger em 1939. Bruce Wayne, playboy milionário, quando chamado servia à sua Gotham City fazendo justiça trajado de máscara com pequenas orelhas na cabeça e uma capa inspirada nas asas de morcego, quadrinhos tornados filmes estrelados por Michael Keaton.