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sexta-feira, 27 de setembro de 2019

QUEM NÃO GOSTA DE SAMBA BOM SUJEITO NÃO É


“...é ruim da cabeça / ou doente do pé”. Samba da Minha Terra (1940), de Dorival Caymmi, foi lançado pelo Bando da Lua, que viera dos EUA, onde acompanhava Carmen Miranda, e sucesso também com João Gilberto no famoso concerto da Bossa-Nova no Carnegie Hall, em 1964. Com direito à baianidade, ao requebro das mulatas - “quando se canta todo mundo bole”, João mostrou que bossa-nova era samba, sim, sinhô. Pesquisando para o meu Dicionário de Termos e Expressões da Música¹, listei em verbetes mais de trinta ritmos e gêneros de samba de todos os matizes, o que daria um livro à parte. Sigo um pouco pela cronologia e faço meus passeios, quando necessário.
Donga
De ‘semba’ (arbusto que balança ao vento), que em Luanda, capital de Angola, se refere a uma dança de umbigada, o samba tornou-se benquisto pela nossa classe média depois da primeira gravação de Pelo Telefone, por Ernesto dos Santos, o Donga, em 1917, e logo se tornou coqueluche com Lamartine, Pixinguinha, Jamelão e outros. Mesclou-se com facilidade a vários ritmos, dando início a diversos gêneros: nos anos 1930, o samba já havia flertado com canções, nos teatros de revista do Rio, shows de música, anedotas e vedetes. E veio o samba-canção. Ai, Ioiô, de Luís Peixoto e Marques Porto, já havia surgido em 1929. Bem depois, destaque para Ave-Maria no Morro (1942), de Herivelto Martins.
Ademilde Fonseca (acervo O Globo)
O choro, no princípio instrumental, passou a incluir letras nos anos 1930, como em Vida de Passarinho, de Ari Kerner e Veiga de Castro. Tico-Tico no Fubá (1931), de Zequinha de Abreu, ainda era choro, mas a ginga carioca e uma letra o fizeram samba-choro. Valdir Azevedo criou o imortal Brasileirinho para um menino que tinha um cavaco de uma corda só em 1947, e a letra viria com Pereira Costa em 1950, alcançando sucesso na voz virtuosa de Ademilde Fonseca - saltos de sexta e cromatismos não são pra qualquer um. No mesmo ano, chegou o sambalada, meio caminho entre os dois ritmos, e o samba batido, do interior da Bahia. Na época, o ritmo também se aproximou de uma dança espanhola trazida para a América Latina via Cuba, de onde nasceu o sambolero.
Jackson do Pandeiro
E vieram o samba-lenço, misturado ao fandango e com coreografias de panos coloridos, o samba-traçado, influência do Candomblé nagô com sabor de maracatu (“este samba que é misto de maracatu”:  Mais que Nada, de Jorge Ben, 1963);  o samba-rural, resquício da resistência da cultura negra paulista; o sambalelê, do congo de roda, e o samba-rock. No último, insere-se Chiclete com Banana, de Gordurinha e Castilho, lançado em 1958 pelo paraibano Jackson do Pandeiro: “Só ponho bebop no meu samba / quando o Tio Sam pegar no tamborim (...) / é o samba-rock, meu irmão”.
Com as escolas de samba vieram os sambas de enredo, que sempre exaltam um acontecimento histórico, um personagem, daí o ‘samba-exaltação’. Pioneiros foram Mano Décio da Viola, Estanislau e Penteado Silva, com Inconfidência Mineira (1949), mas a beleza maior, unanimidade nacional, fica com a portelense Foi um Rio que Passou em Minha Vida (1970), de Paulinho da Viola. Sem chegarem à avenida, são do estilo de enredo o Samba do Crioulo Doido (1968) de Sergio Porto, e Vai Passar, do Chico e Francis Hime (1984, sugestivo em ano de Diretas Já). Das escolas e blocos surgiram também o samba de morro, com percussão bem carregada, o samba de terreiro ou de quadra, o samba de valentes e outros tantos. 
Kid Morengueira
Moreira da Silva, o Kid Morengueira, malaco sambeiro que só bebia leite e andava de chapéu e ‘liforme branco’, diria Caymmi, autoproclamou-se o inventor do samba de breque, em 1936, com Jogo Proibido. O som parava e vinha o breque - brake, freio de carro, em inglês - para divertidos recitativos que  hoje muitos achariam que é rap. (Segundo Ary Vasconcelos², o breque seria a “interpolação de uma frase ou outra” no meio da música).  Contudo, três anos antes, Heitor dos Prazeres já havia criado, em Eu Choro, aquela paradinha (“breque: eu vou chorar”). O historiador José Ramos Tinhorão3 lembra que Sinhô, em 1929, já havia encaixado três redondilhas menores em Cansei, assim como a dupla Ismael Silva e Nílton Bastos: Se Você Jurar, ou O que Será de Mim (“breque: eu não sei o que será”). Mas a fama de criador do gênero quem capitalizou mesmo foi Morengueira, que fazia longos recitativos nos breques. Nos anos 1950, o breque foi também assimilado por Miguel Gustavo e Billy Blanco.
Elza, no programa Jovens Tardes
Maleável que é, o ritmo logo adentrou outras searas, a exemplo do samba de gafieira, surgido nos anos 1940 - corpos colados em gingados sensuais, à maneira da salsa cubana -, e o samba de partido alto, intimista e de harmonias simples, bom para os pagodes de quintal. (O nome pagode vem da tenda, geralmente um encerado de carroceria de caminhão, que cobria os quintais onde era cantado e dançado, sustentado por uma corda pelo meio, o formato lembrando mesmo um pagode chinês). Mesclado também era o samba-jazz, que, com Elza Soares e seu scat-singing  arrastou Ed Lincoln, Dóris Monteiro e Leny Andrade, estrela de Estamos Aí, do gaitista Maurício Einhorn, Durval Ferreira e Werneck (1968).

Toda sorte de ritmos, como o samba caipira paulista, cantado em terças por duplas de artistas, como os sertanejos, surgiu para enriquecer. O samba hoje é como o jazz: engloba uma infinidade de gêneros e continua evoluindo, conquistando novos espaços. Para ele, não há limite ne prazo de validade: enquanto a criação persistir o samba estará aí, para todos os bons sujeitos que não têm doença no pé.
(1) SP: Editora 34, 2004.  2ª ed. (2) Panorama da Música Popular Brasileira. SP: Martins, 1964. (3) Pequena História da Música Popular. SP: Círculo do Livro, s/ data. 


sábado, 21 de setembro de 2019

GUARNIERI E VILLA-LOBOS: DOIS GÊNIOS, DUAS MEDIDAS

Camargo Guarneri, eterno gênio caipira
Há algo em comum entre os dois gênios, mas não a origem e a personalidade. Guarnieri passou 16 anos da vida em sua Tietê, São Paulo, largando o segundo ano do ‘grupo escolar’ para buscar na capital melhores chances para sua música. Villa-Lobos, carioca expansivo, gozador de rompantes histriônicos, compunha até deitado de bruços no chão, ouvindo novelas de rádio.
Villa: charuto, gravata e sinuca. 
Guarnieri e Villa, cada um a seu jeito, romperam as fronteiras do Brasil e se lançaram ao mundo. O Villa do choro e da boemia carioca alcançou reconhecimento mundial como globe-trotter. Já Guarnieri viajava, mas tinha o coração no interior, junto à invejável técnica que adquirira devido a uma facilidade extraordinária. Não se importava com marketing, era comedido e simpático como bom caipira.
Em um jantar na casa do maestro Eleazar de Carvalho, o assistente Diogo Pacheco contou-me um episódio. Rapazinho, cantor do Coral Paulistano do Theatro Municipal de SP, ele passeava pela Praia Vermelha, no Rio, e na direção contrária vinha caminhando Villa-Lobos. Abordou o maestro e puxou assunto, dizendo que o Coral havia cantado uma linda Ave-Maria dele. Villa: “mas qual? Já compus mais de mil!”
Vinte anos depois, quando do lançamento de sua biografia, Diogo respondia a indagações dos presentes. Eu fui o último: quantas Ave-Marias Villa-Lobos escreveu? Todos surpresos, Pacheco contou a história, e, curioso, perguntou-me como eu sabia daquilo. Lembrei-lhe do jantar, e ele iniciou o autógrafo: “Henrique, sabe que você também é muito divertido?” (Deu troco a uma brincadeira minha do passado).



Camargo Guarnieri, por Portinari
Conheci Guarnieri primeiro conversando no intervalo, quando ele ia reger a Osesp, depois no aniversário de seus 80 anos e no Clube Paulistano, onde umas duas vezes fui com meu filho, ‘Baby Lucas’, e o neto do compositor, ‘Baby Alexandre’ (hoje homens bem-sucedidos). Enquanto as crianças brincavam no parquinho, eu respirava palavras sábias, absorvendo o máximo, como um aprendiz de feiticeiro diante de um grande bruxo. Modesto, de tiradas geniais, ao compor era intricado como Brahms e dono de uma costura musical que tem algo a ver com o complexo bordado literário de meu pai.
Se Guarnieri foi o caipira que conquistou o mundo, Villa-Lobos foi o carioca que o fez a seu jeito, e para conhecer bem sua terra teve de explorá-la. Magnifico é o depoimento Excursão Artística Vila-Lobos, de Antonio Chechim Filho, publicação familiar de 1987, de cuja neta, Katia, ganhei um exemplar em 2008.  Chechim era funcionário da Fábrica de Pianos Brasil e, como técnico e afinador do grupo, participou da Excursão.
Villa-Lobos, Nair Duarte Nunes, Antonieta Rudge, Lucila Villa-Lobos
(Souza Lima ausente nesta foto) 

 O grupo contava com Villa, violoncelista e líder, os pianistas Souza Lima, Antonieta Rudge e Lucila Villa-Lobos; cantoras, Nair Duarte Nunes e Anita Gonçalves. A grandiosa viagem foi em 1931, o grupo sacudindo nas estradas de ferro, conhecendo e se apresentando em quase cem cidades de São Paulo (Tatuí foi a de nº 43!). No trajeto entre Bauru e Matão, apesar dos sacolejos e apitos do trem, Villa, absorto, escreveu O Trenzinho do Caipira, para violoncelo e piano, e antes mesmo da chegada havia terminado a obra. Em versão orquestral, O Trenzinho virou Tocata (4º Mvt.) de sua linda Bachianas Brasileiras nº 2.

Publicação nos EUA sobre o livro de Chechim
Link para o texto completo no final do blog
Segundo Chechim, foram 8 etapas: (1) Campinas-Barretos, 8 cidades; (2) Batatal-E. S. do Pinhal, 11; (3) Serra Negra-Mococa, 7; (4) Salto-Itararé, 13; (5) Avaré-Porto Epitácio, 17; (6) Itapira - S. J. do Rio Preto, 6; (7) Jacareí-Queluz, 13, e (8) Piraju-São Paulo, 13. Villa também conheceu o resto do Brasil inteiro.
Ponteado (Chico Mineiro)
Guarnieri era o mestre da ourivesaria, dos detalhes, e sua obra passou por todas as fases, do nacionalismo ao que hoje seria vanguarda. Minha filha Marta vai defender em Londres sua tese de PHD sobre as três sonatas para violoncelo do maestro. Trabalho cansativo, difícil pesquisa, pode-se sentir o sotaque interiorano com suas danças e ponteios – não o folguedo sulino de sapateado, mas o da viola caipira, ponteado pelos dedos polegar e indicador, principalmente.

Cornélio Pires e sua turma
Achei que encontraria um conhecimento muito provável do jovem Guarnieri com a turma do também tieteense Cornélio Pires, estudioso e líder de um grupo de violeiros de música de raiz. Só que Cornélio nasceu em 1884 e Guarnieri em 1907. Quando Cornélio foi para São Paulo, em 1914, Guarnieri tinha apenas 7 anos de idade. Mas a viola já era presente na vida tieteense desde bem antes, e continua até hoje. Foi dela que Guarnieri bebeu seus ponteios, os sons das serestas, as danças. Do Villa, também, guardo alguma história muito pitoresca contada por meu pai, que com ele esteve um par de vezes (uma delas, em um jantar, aconteceu um episódio impublicável). E a Da. Mindinha, segunda esposa, que conheci no Rio no início dos anos 1970. Nossos dois gênios, em duas medidas! 

                                                                   ***
Memória de um Técnico de Piano  Brasileiro, Antonio Chechim Filho, Acerca da Excursão Artística Villa-Lobos (1931-1932):

https://www.researchgate.net/publication/328492720_Memoir_of_a_Brazilian_Piano_Technician_Antonio_Chechim_Filho's_account_of_the_Villa-Lobos_Artistic_Excursion_1931-32

sábado, 14 de setembro de 2019

FEFIERJ: UNE E OSSOS. UFRJ, ORIXÁS

UniRio

Comecei meus estudos universitários de música no início dos anos 1970, na Fefierj (Federação das Escolas Federais Isoladas do Estado do Rio de Janeiro), hoje UniRio. No corpo docente, professores como Hélio Sena e Sílvio Mehry, ambos com sólida formação pelo Conservatório de Moscou, e Marlene França, ex-aluna de Ginastera.  No andar de cima, as Artes Cênicas, laboratório do melhor teatro do século: Arrabal, Ionesco, Brecht.
Fefierj, a "joaninha" e o giroflex
Na entrada do prédio – de que falarei adiante -, tempos duros como os cabos das baionetas, às vezes a parada de uma “Joaninha” (coitado do simpático besourinho rubro-negro, fusca da PM com uma só luz giroflex). Volta e meia, revista de alunos e professores, preferências recaindo sobre livros de capa vermelha. Nada que coadunasse com o espírito que mantínhamos: livres para estudar e criar. Em uma aula de harmonia ao piano, lembro-me de ter apresentado um exercício para a profa Marlene França em que usei um coral de Bach. Movi vozes meio tom para cima e para baixo, troquei acidentes e por aí vai. Uma loucura dissonante, mas ela, após tocá-lo no piano, cenho franzido, ao invés de me dar um pito levantou-se com um enorme sorriso – o que mais esperar de uma compositora contemporânea?
UNE, 1947. A garra feminina
De volta ao prédio: o nome Fefierj surgiu oficialmente após a fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, em 1975. Em 1979 passou a chamar-se UniRio, parte da Uferj (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro). Um prédio dos anos 1930 com apenas três andares que carregava uma sina, um carma: fora a sede da proscrita UNE (União Nacional dos Estudantes)!
O prédio, incendiado durante o golpe
Faço um corte à maneira dos filmes nouvelle vague, tão ao nosso gosto, à época, para falar da UNE, e depois retornar à Fefiej. Fundada em 1937, teve participação em todos os movimentos sociais do Brasil. Na presidência, entre 60 nomes, José Serra, cujo mandato foi encerrado com o golpe de 1964, Luís Travassos, eleito em 1968 e, líder estudantil de peso,  Aldo Rebelo, político que foi ministro em vários governos. O prédio, número 132 da Praia do Flamengo e símbolo da resistência, foi invadido e metralhado no dia do golpe, 1º de abril de 1964, e logo após incendiado. Enquanto isso, soldados e milícias radicais tentavam queimar o prédio da Faculdade de Direito com os estudantes em seu interior, mas foram impedidos pelo heroico capitão Ivan Proença, que arriscou sua vida entrando no imóvel em meio a tiros e bombas para salvar os que lá estavam, obrigando seus subordinados à imediata suspensão da iminente carnificina.
O malogrado congresso de Ibiúna:captura geral
Durante o período da ilegalidade determinada pela lei ‘Suplicy de Lacerda’ (1964-79), a representação estudantil foi pulverizada em diretórios acadêmicos bem vigiados nas universidades. Mas a Une continuou clandestina, e, por isso mesmo, cada vez mais contaminada por grupos radicais. Um desastre: o 30º Congresso, com 5 mil estudantes em Ibiúna, 1968, foi desbaratado pelo número extravagante de pãezinhos e litros de leite encomendados na cidade do interior paulista. Organização sem planejamento, todos foram presos, inclusive os líderes Jean-Marc, José Dirceu, Vladimir Palmeira e Travassos.
Adicionar legenda
Depois, assume então a presidência Jean-Marc, que, levado à prisão, deu lugar a Honestino Guimarães, em 1973. Igualmente preso e, como era frequente, declarado ‘desaparecido’ (leia-se: morto). Naquele tempo, eram todos estudantes idealistas, rebeldes como qualquer jovem saudável, mas aos poucos, muitos, foragidos, foram seduzidos pela luta armada do VAR, VPR, MR-8 e outros. Depois dessas décadas e voltas e reviravoltas, formalidades e proscrição, há quem seja ingênuo o suficiente de pensar que o simples ato de retirar da UNE a prerrogativa de emitir e cobrar carteirinhas de estudante  poderia afetar  (e, sabe-se lá, neutralizar)  a organização. 
Depois do ‘corte à francesa’ para falar da UNE, à Fefierj. O diretor-interventor era o general Jayme Ribeiro da Graça, egresso do SNI (Serviço Nacional de Informações, órgão da ditadura). Agentes e alcaguetes infiltrados nas salas de aulas no Rio eram os mais calados, discretos e misteriosos, e não faziam anotações. Só com o interventor eu tive problemas, e de ordem musical, a despeito da ignorância dele em artes - achava ‘inferiores’ os instrumentos e a música indígenas. Cheguei a ser ameaçado de ‘virar flauta’, após discordar dele sobre a ‘inferioridade daqueles instrumentos primitivos feitos com ossos’.
 
Escola  de Música da UFRJ
45 anos depois, rebobinam o filme, mas às avessas: Semana passada (O Globo, 5/09/19), ressurgiu travestido e com força o mesmo preconceito. Na conceituada UFRJ, estudantes de certa seita religiosa autodenominada Igreja recusaram-se a cantar as Toadas de Xangô (‘orixá das artes’), do petropolitano Guerra-Peixe. Um dos alunos disse “e se eu ‘receber’ (obs.: ‘incorporar’) alguma ‘entidade?’” A professora Andrea Adour tentou explicar, mas os novos radicais, que hoje se multiplicam como gremlins, não compreenderam. Villa-Lobos também compôs sobre crenças indígenas e religiões afro (Xangô), tal como Francisco Mignone (Babaloxá), meu amigo Ernani Aguiar (Cantos Sacros para Orixás), José Siqueira (Oratório Candomblé) e Camargo Guarnieri (Macumba para Pai Zuzê, com letra do Drummond). Na MPB, Caymmi (Oração de Mãe Menininha), Sérgio Ricardo (“mandinga da gente continua”), Caetano (“Xangô manda chamar Obatalá Guia”), Edu Lobo (“ê meu irmão me traz Yemanjá pra mim”), Vinicius (Canto de Ossanha). Um coro universitário que não canta as raízes de seu povo leva a música para longe de sua nação!
A direção da Escola de Música da UFRJ não é de generais, mas a história é ingrata: alunos inverteram seu papel no tabuleiro, encarnando a xenofobia e a intolerância do antigo interventor da Fefierj. Sinal dos tempos, um retrocesso com troca de papeis. Farta matéria para cientistas sociais!

sábado, 7 de setembro de 2019

GETTYSBURG E OUTROS DISCURSOS


Tempos de colégio, rígida disciplina de estudos e leitura. Aprendíamos de tudo na decoreba: português (“Última flor do lácio, inculta e bela”, recitada sobre um praticável), latim básico; francês, Do Contrato Social de Rousseau (l’homme est né libre, mais partout il est met dans les fers”, ‘o homem nasce livre, mas por todo lado ele está acorrentado’); geografia, memorizando e desenhando em mapas mudos as capitais e rios dos países e estados.
Lord Byron
Um inglês pesado: Shelley, Byron, Wordsworth. Mais tarde, como músico, vim a dar real importância àquela bendita decoreba! Em plena ditadura, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, assinada pelo Brasil na ONU em 1948 e traduzida em mais de 500 idiomas, da qual os radicais de hoje só ouviram falar da metade do título: ‘direitos humanos só para bandidos’, afirmam os ignorantes da história. Um acordo monumental pleno de ideais, por uma vida melhor em um planeta severamente ameaçado.
O dircurso de Gettysburg
Memorizamos o Gettysburg Address, proferido em 18/11/1863 durante a guerra civil por Abraham Lincoln, in memoriam aos soldados mortos na batalha acontecida na cidade do mesmo nome. Optei aqui pelo último manuscrito do próprio Lincoln, entre mais de cinco versões do texto. Tradução que busca ser fiel dentro da minha compreensão, com as devidas anotações: “Quatro vicênios¹ e sete anos atrás nossos pais construíram, neste continente, uma nova nação, concebida em liberdade e dedicada à proposição de que todos os homens nascem iguais”². (1. Um score, ou vicênio, significa um período de vinte anos, Lincoln se referia a 87 anos antes daquela data. Usei ‘quatro vicênios’, ao invés de four score no singular. 2. Traduzi ‘todos os homens nascem iguais’, já que are created, ou, literamente,  ‘são criados’, entre nós confunde-se com 
criação, educação).
Prossegue: “Agora estamos envolvidos3 em uma grande guerra civil, testando se aquela4 nação ou qualquer outra, assim concebida e dedicada, pode resistir longamente” (3. Engaged, ao pé da letra, seria ‘engajados’, mas o sentido é de empenho, comprometimento – a palavra também pode significar ‘noivos’. Mas entre nós soaria político. 4. Por ‘aquela nação’ refere-se à que foi construída pelos antepassados: digo ‘esta nação’, a nossa. “Nós viemos para dedicar uma porção desta5 terra como lugar de descanso final para aqueles que deram suas vidas para que aquela6 nação sobrevivesse.  É ao mesmo tempo justo e apropriado que nós o façamos” (5. Para that, no caso, ‘aquela’, uso ‘desta’. 6. Aquela, a dos sonhos. Algumas repetições que em inglês soam naturais foram trocadas, a bem da clareza em português. E Lincoln, advogado nascido de família pobre e fervorosamente batista em uma cabana Kentucky, refere-se sempre ‘àquela’ terra, remetendo ao tempo do país erguido pelos seus antepassados e de seus ouvintes. O estilo tem certo tom de prayer, oração em súplica comum aos grandes oradores americanos que o seguiram – Rev. Luther King, Jr, e Rev. Jesse Jackson, por exemplo.
Cemitério Nacional do Soldado, hoje: Gettysburg, Phladelphia
Aos honrosos mortos na guerra, mais adiante, ele declara ser melhor “nós aqui dedicarmos devoção cada vez maior à causa pela qual eles entregaram seu último grande gesto7 de dedicação – a que aqui estamos fortemente determinados8 para que esses homens não tenham sido mortos em vão9”. (7. Last full measure, em português, ao pé da letra, ‘última medida inteira’, seria coisa sem  pé nem cabeça: a expressão com a palavra, aqui, tem sentido de ‘último ato com plena devoção’. 8. Highly resolved, ‘altamente determinados.: To resolve aqui tem sentido de forte empenho, não de resolver. E ‘altamente com forte determinação’ soaria redundante. 9. Diz: these dead (...) didn’t die in vain: ‘estes mortos não morreram em vão’ soaria muito estranho entre nós).
E finaliza: “que esta nação, ‘sob a proteção de Deus’10, tenha um renascimento11 de liberdade – e que o governo deste povo, pelo povo, para o povo, não desaparecerá da Terra12. (10. Lincoln diz “under God”, ‘sob Deus’. 11. A new birth of liberty, li como ‘um renascimento da liberdade’! ‘Um novo nascimento’, não soa bem entre nós. 12. Shall not perish from Earth: ‘não perecerá da Terra’? Melhor ‘não desaparecerá’).
Usei o ‘Gettysburg’ como exemplo da dificuldade de se traduzir um simples texto, que é compreender para contar. Literatura? Extremamente difícil; poesia? Missão impossível. O ideal seria ler no original, o que não é acessível a todos, embora seja exigência em cursos universitários, de pós e pesquisa. Vejo o Gettysburg de Lincoln ao lado de ‘Eu Tive um Sonho’ (1963), de Luther King, Jr, um desafio pela igualdade, e o de Jesse Jackson na Convenção Democrata de 1988 (vi na TV e me emocionei); Roosevelt, ‘Deveres da Cidadania Americana’ e Kennedy (1961), em seu ‘Discurso de Posse’ (‘Não perguntem o que a América fará por vocês, mas o que juntos poderemos fazer pela liberdade do homem’). Esses estão entre os mais importantes discursos da história dos EUA.
Na história, desde ‘A Terceira Filípica’, de Demóstenes (342 a.C.), o ‘Discurso de Alexandre, O Grande’, na Índia (326 a.C.), até ‘Nós lutaremos nas Praias’ (1940), de Churchill (imagem acima), ‘O Apelo de 18 de Junho’, por De Gaulle, pela BBC londrina, exortando os franceses  a não abandonarem a luta contra os nazistas, e tantos outros.
JK: discurso de posse
No Brasil, entre os discursos mis marcantes, o da posse de JK (1956), sob ameaças de golpe, composto a quatro mãos por Augusto Frederico Schmidt e meu pai, o escritor Autran Dourado, autor da frase de efeito: ‘Deus poupou-me o sentimento do medo’; o de Jango na Central do Brasil, grande desculpa para o golpe de 1964, e finalmente o do deputado Márcio Moreira Alves, um dos estopins do AI-5: “...cada pai, cada mãe (...) a presença dos seus filhos nesse desfile é o auxílio aos carrascos que os espancam e os metralham nas ruas”.
E quem serão os escribas e os oradores de hoje?