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sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

O QUE ACONTECEU COM A MPB NAQUELE ANO?

Grupo Oficina: Roda Viva

Janeiro de 1968. Estreava no Rio a peça Roda Viva, de Chico Buarque, que com as alegorias de sempre traduziu em desejo de mudar toda a angústia daqueles tempos: “...a gente quer ter voz ativa / no nosso destino mandar / mas eis que chega a roda viva e / carrega o destino pra lá”. E lá ia “roda mundo, roda-gigante, rodamoinho, roda pião”... Tudo, tudo a roda levava: sonhos, ideias, pessoas.
Luther King, Jr.: I had a dream 
Naquele ano, em Memphis, EUA, a roda levou Martin Luther King, Jr., carismático líder negro norte-americano que em 1963 proferiu um dos mais belos discursos da história, “I had a Dream” (“Eu tive um sonho”).  A contralto gospel Mahalia Jackson interrompeu-o da plateia com sua voz possante: “conte-os sobre o sonho, Martin!” King abandonou a leitura e, como os bons oradores  americanos  da Igreja de Lutero, improvisou com verve única frases inesquecíveis.
Cortejo do enterro do jovem Edson Luís
Junho de 68. Cinco anos após o assassinato de seu irmão John F. Kennedy, tomba o senador Robert Kennedy, do clã da matriarca Rose, condessa pelo Vaticano, ambos vítimas da histórica disputa política, da máfia ou da guerra fria. Naquele mês, no Rio de Janeiro, marchou a “passeata dos cem mil”, um protesto pacífico contra a censura e a crescente violação de direitos. A roda levara o estudante Edson Luís, 18 anos, abatido a tiros pela polícia no restaurante Calabouço, centro do Rio. Para o enterro, no Cemitério São João Batista, o esquife foi erguido em revezamento durante quilômetros, a multidão bradando o mantra “mataram uma criança, podia ser seu filho”.
Cota  Silva anuncia o AI-5
A morte do jovem estudante, a passeata de artistas, intelectuais e religiosos de braços dados com o povo e o discurso do deputado Moreira Alves, contra a invasão da Universidade de Brasília, foram os três fios que, unidos, acenderam o estopim para que no dia 13 de dezembro fosse detonada a  promulgação do AI-5, que fechou o Legislativo, impôs censura total, suspendeu direitos e concedeu poderes imperiais ao Presidente da República.
Daniel Cohn-Bendit ("Dani, Le Rouge"
Esses acontecimentos, somados os ecos do movimento estudantil na França sob a égide do franco-alemão Daniel Cohn-Bendit, mais a semente da revolução pop que germinava e floresceu no ano seguinte em Woodstock, encontraram um mundo no ápice de um ciclo de ebulição criativa.
Jobim e Chico, Cynara e Cybele
Naquele cenário, 1968 trouxe pérolas da MPB como “Baby”, de Caetano, encomenda de Betânia para o irmão; Retrato em Branco e Preto”, de Jobim e Chico, um lamento apaixonado: “o que é que eu posso contra o encanto / desse amor que eu nego tanto / evito tanto...”.  “Sabiá”, da mesma dupla, é uma doce canção de saudade - ou uma ode ao devaneio do retorno do exílio: “Vou voltar / sei que ainda vou voltar / para o meu lugar”. O Maracanãzinho tremeu ante apupos e protestos da plateia do 3º Festival Internacional da Canção: a massa não se conformava com o primeiro lugar dado a “Sabiá” em detrimento de sua favorita, “Pra não dizer que não falei de flores”, de Vandré, que se tornaria hino político da juventude. 
E quantos bons sambas nos deu 1968! Destaque para o genial “Samba do crioulo doido”, de Sérgio Porto, samba de enredo que nunca foi à avenida mas desfilou pelos ouvidos do país inteiro: “Foi em Diamantina / onde nasceu JK / que a princesa Leopoldina / arresolveu se casá / Mas Chica da Silva / tinha outros pretendentes / e obrigou a princesa / a se casá com Tiradentes”.
A MPB pós-bossa começava sua fase universal, livre de velhos conceitos e imersa em ricas influências. “Tropicália’, de Caetano, foi a pedra fundamental: “O monumento é de papel crepom e prata / os olhos verdes da mulata” (link no final do artigo). Surrealista, dadaísta, antropofágico, Caetano também compôs “Superbacana”, enquanto Jobim lançava “Wave” (“Vou te contar”), de melodia e harmonia bastante sofisticadas. Gilberto Gil, de braços com o tropicalismo, lançou “Soy loco por ti, America” (“...soy loco por ti de amores”).
Por Hélio Oiticica
No balanço, “Nem vem que não tem”, de Carlos Imperial (“Nem vem de garfo que hoje é dia de sopa / (...) nem vem de escada que hoje o incêndio é no porão”); a Jovem Guarda chega de roupa nova com “Vesti Azul”, de Nonato Buzar, enquanto Marcos e Paulo Sergio Valle falavam de música e luta social em “Viola enluarada” (“... no sertão é como espada”). Nas artes plásticas, Andy Warhol, nos EUA, e Oiticica, no Brasil; na filosofia, Sartre, Marcuse, Adorno, Hubermas; no teatro e cinema, Gláuber, Zé Celso, Pasolini, Godard. Na poesia e prosa, Capinam, Drummond, Bandeira, Cabral e Clarice, a quem Caetano homenageou (“Que mistério tem Clarice”). O Pasquim era gestado enquanto questionamentos, inquietações e medo pululavam. Criava-se, e como se criava!
Se o ocaso do Império Romano viu a “Idade das Trevas”, também houve o Renascimento e o “século das luzes” (séc. 18). Aconteceu também um longo ciclo, barroco-classicismo-romantismo. No século 20 eclodiram duas guerras mundiais, enquanto ideologias extremistas avançavam. Seria má-fé postular que foi o mal que levou o ciclo da cultura ao pico ou creditar ao tsunami repressivo mundial em 1968 a explosão criativa em todos os níveis. Só entristece saber que hoje, no Brasil, com guinadas e retrocessos de toda ordem, mas dentro de relativa normalidade democrática, navegamos na rasante da maré, quase a seco, no ponto de tangência mais baixo de um ciclo.

SEVERIANO, Jairo. MELLO, Zuza Homem de. “A canção no tempo”. Vol. 2. SP: Ed. 34, 1998. SOUZA, Tárik de. “O som nosso de cada dia”. P. Alegre: L&PM, 1983. MOURA, Roberto. “MPB”. Sp: Vitale, 1998.

sábado, 14 de dezembro de 2019

BEATLES, CAETANO, LSD, ABORTO, SATÃ E COMUNISMO


Em Revolution (1968), Lennon e McCartney cantam: “Você diz que quer mudar o mundo / (...) todos nós queremos mudar o mundo / (... e) que vai mudar a Constituição / (...) nós gostaríamos que você mudasse de ideia / (...) Mas se carrega imagens do camarada Mao / não vai conseguir nada de ninguém”.  Um não ao líder comunista chinês Mao Tsé-Tung e outro à ideia de alterar a intocável Constituição inglesa: o rock dos Beatles era apolítico e conservador.

Já em Back in the USSR, a dupla fala da União Soviética: “Peguei um voo da BOAC em Miami Beach / (...) cara, eu tive um sonho terrível esta noite / estou de volta à USSR / você não sabe o quanto é sortudo, garoto”. Viajando pela  antiga companhia inglesa, o personagem diz que passou mal, teve enjoo a noite inteira e se viu de retorno à União Soviética, bradando aos que ficaram “vocês não sabem como são sortudos, caras”.

Os Beatles receberam a MEB (Ordem da Maior Excelência do Império Britânico) das mãos da Rainha por levarem o nome da nação a píncaros tão altos quanto os da vitória na Segunda Guerra. Os fab four (“quatro fabulosos”) eram bem-comportados em seus terninhos de alfaiate e cabelos bem aparados.
Depois de 1970, desfeito o grupo, Lennon tornou-se um “revolucionário pacifista” que sonhava em transformar o mundo compondo no piano Steinway branco de seu amplo apartamento em um prédio na frente do Central Park nova-iorquino, em cuja calçada seria assassinado em 1980. Seus protestos iam de palavras de ordem confusas a nudes como o famoso duplo traseiro, ao lado da esposa Yoko Ono.
Caetano na passeata dos cem mil
Caetano Veloso atuou em movimentos pacíficos como a passeata dos cem mil ao lado de inúmeros artistas, intelectuais e religiosos de diversas crenças, unindo-se a eles no protesto contra a censura e as prisões.
O quatro religiosos em julgamento

(O AI-5 não poupou da cadeia gente indefesa como um escritor e amigo de meu pai, Hélio Pellegrino, ou um primo, frade dominicano, Carlos Alberto Libânio Christo, ambos por delito de opinião. Com ele, mais três frades - incluindo frei Tito, que se enforcou em um convento em Paris em 1974, vítima de delírios recorrentes após torturas -  amargaram la dura cadena. Carlos Alberto “pagou” quatro anos e ao final foi condenado a dois, restando-lhe um impagável “saldo credor”. Já Caetano e Gilberto Gil, após a prisão, partiram para o autoexílio em Londres, de onde, remoendo-se de saudades do Brasil, faziam das coisas de nosso país temas recorrentes para suas músicas).
Cetano no exílio, em Londres
Nesta altura, lendo o título deste artigo e as preleções sobre os Beatles e Caetano, o leitor bem informado sabe do que vou falar. Daí a indispensável breve digressão sobre o grupo inglês e Caê, um senhor nascido há 77 anos em Santo Amaro, Bahia. Além de compor e cantar, ele é um leitor voraz, apaixonado por Bandeira, João Cabral, Jorge Amado e Fernando Pessoa – ícone da poesia lusitana, de quem musicou  Os Argonautas: “Navegar é preciso” (atribuído a ele. Link ao final do artigo).
Flávio Cavalcanti
Em um programa de TV, o apresentador Flávio Cavalcanti sorteava cartões; vencia o primeiro entre os competidores que apertasse um botão e cantasse música e letra com a palavra dada. Caetano, disputando com Chico e outros grandes nomes, era imbatível: sabia todas as letras, mesmo em outros idiomas. Na vida, sempre que falou sobre literatura Caetano mostrou ser um leitor contumaz.
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
Na primeira semana de dezembro, matéria da Veja trouxe um novo personagem, Rafael Nogueira, que cometeu a frase que serve de título ao assunto: “Presidente da Biblioteca Nacional associa Caetano Veloso ao analfabetismo”. Um disparate sem tamanho e, pior, vindo de uma pessoa desconhecida, atingindo um artista do porte de  Caetano.
Dante Mantovani (O Globo)
Outro “prócer” da Cultura é o novo diretor da Funarte, “maestro” (sic) Dante Mantovani: “Soviéticos infiltrados na CIA distribuíram LSD em Woodstock” (O Globo, 2/12/19) - frase alucinada, como convém ao tema. Por sua vez, na mesma data o Estadão publicou: “rock induz às drogas, ao aborto e ao satanismo”. Mantovani, que havia atacado nossa atriz maior, Fernanda Montenegro, foi empossado no lugar do renomado pianista Miguel Proença, que era titular do cargo e havia tecido elogios à artista - logo, foi exonerado (et pour cause, como se diz). Mantovani delira nas conexões entre “droga, sexo, aborto e satanismo”, ou quando diz que os Beatles teriam sido “invenção socialista para garotas abortarem” (Revista Época, 2/12/19).
Protesto na Fundação Palmares (foto: Brasil de Fato)
Sérgio Nascimento, nomeado presidente da Fundação Palmares, fechou a semana da “nova cultura” negando (detalhe: ele próprio, negro) a existência de racismo no Brasil, dizendo que a escravidão foi benéfica e que o movimento negro deveria ser extinto (ibid.). A Justiça mandou anular a nomeação, mas a União recorreu à AGU.
Richmond, VA
Os três receberam orientação direta ou indireta de Olavo de Carvalho, um ex-astrólogo que se autodeclara filósofo e é chamado de guru por seus seguidores. Sem estudos ou qualquer formação específica, foi comunista na juventude e hoje, renegando o passado, comete equívocos considerados juvenis ou simplesmente falhos pelos acadêmicos de história e filosofia. Dada sua língua ferina, já foi inúmeras vezes réu por crimes de injúria, alvo de processos por instituições, personalidades e jornalistas. De seu Bunker-clausura em Richmond, Virginia, um dos estados do historicamente conservador sudeste dos EUA, elucubra ideias e teorias radicais, excêntricas e polêmicas, objetos de adoração de seus obstinados defensores, que creem estar seguindo um gênio.


sábado, 7 de dezembro de 2019

MÁFIAS NAS GUILDAS MUSICAIS DO PASSADO

Agrupamento de  músicos na Roma antiga.

Bem antes do que se poderia supor, os agrupamentos de músicos em guildas, associações e pequenas máfias corporativas, familiares ou de compadrio já existiam – e isso, muito antes do surgimento do capitalismo, sistema em que a competição acirrada cria, em cada nicho, armaduras de autodefesa e, com elas, hostilidade a estranhos. Sendo o dinheiro primordial à subsistência, é necessário agregar-se para viver da nobre arte.
Árvore genealógica de Bach, plena de músicos
A família de Johann Sebastian Bach era tão numerosa que, entre os séculos 17 e 18, na cidade de Erfurt, foi selado um protocolo estabelecendo multa de cinco táleres (moedas de prata da época) para quem contratasse um músico em cujo sobrenome não constasse Bach, de festas de casamento a funerais (ironizando, Bach em alemão quer dizer riacho, sem cuja água peixe não nada – e em Erfurt  músico não trabalhava). A máfia da cidade era poderosa a ponto de obter do governo uma multa para um conhecido líder musical, Tobias Zabelitzky, que desafiou o protocolo e prestou serviços a outra guilda.
Igreja de Santa Maria, em Lübeck
A disputa entre os músicos na época era tão acirrada que por uma bom emprego valia até casar-se com a filha do Kapellmeister (mestre de capela da cidade). Na aprazível Lübeck, no norte da Alemanha, Händel e Mattheson amargaram perder uma boa vaga porque não simpatizaram com a filha de Buxterhude, um respeitado organista muito admirado por Bach, que com frequência viajava para vê-lo tocar (talvez o empecilho para uma possível união tenha sido a idade um pouco avançada e poucos atrativos da filha do chefe). Dieterich Buxterhude era poderoso e teria, ele próprio, obtido sua posição casando-se com a filha de Franz Tunder, a quem sucederia na função.
Guilda medieval
Os músicos agregados às máfias eram bem organizados: tinham uniformes e distintivos próprios, a fim de não serem confundidos com membros de outras guildas. Na Alemanha barroca, a profissão tinha seus rígidos monopólios, sendo as pagas fixadas entre contratantes e líderes dos grupos.

(Breves parêntesis: em meus tempos de EUA havia concertos denominados Union gigs, para afiliados à AFM, e non-Union gigs, para não afiliados; quem tocava nos primeiros não tocava nos outros, sob pena de ser multado pela União).
Anúncio da estreia de Benvenuto Cellini, de Berlioz
Esse tipo de organização não era privilégio dos alemães. Também existia na Itália, mas com certa liberalidade músicos podiam aqui e ali pular a cerca e 
“dar uma palinha” em outra guilda. Benvenuto Cellini, ainda no século 16, era um artista tão completo que o francês Berlioz, dois séculos depois, dedicou-lhe uma ópera cujo título traz o nome do italiano. Além de ourives, pintor e projetista, Cellini era flautista, cornetista, cantor e compositor; famoso, transitava livremente em diversas guildas. Não bastasse a música, era entalhador de marfim e construtor de alaúdes, címbalos e diversos tipos de viola. Apesar disso, o trânsito de seu pai na corte de Piero de Medicis certamente o ajudou a obter permissão para o acúmulo de cargos.
Basílica de San Marco, em Veneza
Em Veneza, embora fosse possível atuar em guildas diferentes, os músicos da igreja de San Silvestro rivalizavam com os da San Marco na disputa pelos trabalhos musicais. E havia divergências contábeis sobre o que seria objeto dos cachês: apenas a cerimônia ou também os festejos posteriores, como bufês ou jantares.
Claudio Monteverdi
O célebre compositor Claudio Monteverdi (1567-1643), pioneiro no gênero operístico, acumulava as funções de mestre de capela na San Marco com as de músico oficial do doge (espécie de juiz plenipotenciário escolhido por votação, em Veneza). Após uma discussão com um ressentido e furioso músico, chegaram às vias de fato e o mestre quase teve sua barba arrancada.
Trompa da caccia
Dentro das próprias guildas, as funções, por classes de instrumentos, tinham suas especialidades: os saquebutes (antigos trombones) eram mais afeitos a funções religiosas: juntos, tinham o poderoso apelo de um órgão de tubos. Trompetes e clarins eram palacianos, serviam à pompa e circunstância dos poderosos, enquanto as trompas, originárias da tradição dos caçadores (por isso mesmo, da caccia), tinham seus tubos enrolados para possibilitar aos músicos carregá-las a tiracolo, em seus cavalos. Por causa dessa mobilidade, prestavam-se a outras funções além de sinalizadores da caça. O shawm (antecessor do oboé), com seus agudos cortantes, anunciava de cima das torres quando alguém se aproximava do burgo. Mas os trompetistas, com trânsito nas cortes devido ao privilégio de suas funções palacianas, tinham regalias especiais e, claro, cachês mais altos nos serviços.
Esquadra inglesa
Havia disputa até “no macro”, entre países, pelo domínio da música: no séc. 17, a Inglaterra era uma grande potência, e singrando mares invadia e conquistava terras em todos os cantos - de meras ilhotas a continentes - onde pudesse fincar as âncoras de seus navios. A armada real levava também valioso auxílio à consolidação de seu poder:  lições de economia, agricultura e arte, com destaque para a música. Trazia na bagagem farto material de Henry Purcell, organista da Royal Chapel e da Westminster Abbey, que compunha em todas as formas e estilos. Mesmo assim, a coroa inglesa nunca chegou a ameaçar a hegemonia musical dos alemães, muito menos a dos italianos. O escritor francês Stendhal (1783-1842) chegou a afirmar que parecia ser proibido compor em lugar que não fosse à sombra do Vesúvio!
O Vesúvio, próximo a Nápoles
[Fontes: DOURADO, Henrique Autran. Pequena Estória da Música. SP: Vitale, 1999. RAYNOR, Henry. História Social da Música. RJ: Zahar, 1981]