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sexta-feira, 29 de maio de 2020

PANDORA, REALITY SHOWS,


TERAPIAS DE GRUPO E COMPORTAMENTO

Pandora, por Lawrence Tadema (dom. púb.)
O convívio entre pessoas em um mesmo ambiente é uma caixa de surpresas como a de Pandora, a primeira mulher criada por Zeus, na mitologia grega. Segundo descrições e ilustrações antigas, uma caixa ou pote, a depender do autor. No recipiente, estavam guardados os males do mundo, contou Hesíodo, em seu “Os trabalhos e os dias”. Zeus, por capricho, havia feito uma provocação (e nem colocou aquele tipo de aviso que diz “não abra”, mas não foi preciso): Pandora, curiosa que só, destampou o pote, de onde escapou o que há de ruim na Terra.
As pessoas isoladas em um ou poucos ambientes contíguos ficam expostas gradativamente aos sentimentos conflituosos nelas reprimidos. É como se a tampa do pote de Pandora deixasse escapar aos poucos seu conteúdo, a partir de uma fresta. Muito explorado em dinâmicas ou psicoterapias de grupo, o despertar desses ingredientes sociais ocultos vem surgir como uma pequena amostra, o microcosmo da sociedade representada em cada homem e seu plural.
Assim nasceram os reality shows da TV dos anos 1990, com The Real World, e logo depois Idols e Big Brother, franquias vendidas a emissoras mundo afora. Os telespectadores desses shows parecem sentir certo prazer em acompanhar fusões nebulosas entre realidade e cena, esta obviamente submetida a scripts definidos, jogos programados e disputas criadas pela produção, tudo para despertar emoções e reações. Quanto mais agressivas, maldosas ou sensuais essas reações e os complôs, mais o espectador se delicia com o que pode ser uma fotografia intestina dele próprio, seus ódios e desejos ocultos. (Confundem-se ao chamar os participantes de “brothers”: Big Brother, nome do programa, é o ‘grande irmão’ de “1984”, livro de G. Orwell, é a máquina que tudo vê e a todos controla, como as câmeras e microfones do show).

Reality show alemão
Telespectadores escolhem anjos e demônios por empatia ou repulsa, torcendo contra ou a favor de um ou outro. Vislumbram suas próprias vidas na tela e podem tecer comentários aos seus convivas sem se identificarem nas cenas da forma que as veem, o buscar do íntimo de cada um, parte da fórmula do sucesso do programa.

Já tratei do Teatro do Absurdo, surgido na desolação do pós-II Guerra. Autores criavam situações terríveis vividas por personagens geralmente enclausurados em um ambiente, apartamento ou casa, o que durante o conflito mundial seria o medo de ir à rua e ser atingido por bala perdida, granada, bomba - ou topar com nazistas. Terminada a guerra, o medo permaneceu, e junto com ele certa descrença na humanidade e na razão da existência. O gênero do Absurdo é uma criação neurótica sobre situações igualmente neuróticas, mas tem, além da erudição, a observação crítica a diferenciá-lo dos fúteis reality shows que se pretendem ‘reais’.

A Terapia (ou psicoterapia) de Grupo envolve um certo número de pacientes e um terapeuta, e se abre em uma gama de formatos, como arte-terapia, Terapia de Comportamento Cognitivo (CBT), terapia de dança e musicoterapia, entre outros. Nesses grupos são tratados medo, ódio, neurose, apatia e depressão, além de serem desenvolvidas técnicas coletivas de relaxamento e de adaptação para melhor convívio social – modelos analisados por Charles Montgomery em Role of dynamic group therapy in psychiatric treatment (Cambridge: CUP, 2018).
Enquanto a terapia de grupo tem profissionais aptos a intervir, quando necessário, nos reality shows a mediação é feita por um apresentador sem qualquer preparo, que dá combustível aos acontecimentos. E, claro, sempre com um olho na contabilidade eletrônica, conforme o público que interage, e indiretamente, um outro da emissora, por meio das medições eletrônicas de audiência – sem falar no retorno financeiro dos anunciantes e eventual merchandising em cena. Surgem mais e mais imbróglios, e a produção da TV os estimula, sendo as séries de jogos e disputas elementos fundamentais à criação da atmosfera fértil para as crises se desenvolverem. Se ultrapassar certo limite, o participante é punido, lançado à execração dos demais ou até expulso.
Os isolamentos sociais de hoje em razão da pandemia são grupos sem controle e sem os voyeurismos dos reality shows, sem mediadores ao microfone e menos ainda terapeutas profissionais. Como em todas as situações de grupo - no lar, no círculo de amigos, no clube, na sala de aulas ou no trabalho -, um dos que fazem parte do conjunto assume sua posição de líder, seja por uma determinante social (pai, mãe, chefe) ou espontaneamente, quando o grupo é homogêneo. Se há intrigas ou debacles mais fortes, é ele o indivíduo que tende a interferir.  
O conflito no trabalho, por Resnais/Laboritt
Pela lente da chamada sétima arte, Alain Resnais, cineasta francês, repercutiu, em Mon oncle d’Amérique (“Meu tio americano”), de 1980, as ideias do médico e filósofo Henri Laboritt sobre estudos dele acerca do eu (self ) e a sociedade. Analisa essa relação em que “todas as criaturas lutam por equilíbrio (homeostasia) em seus ambientes, nos quais se manifestam como comportamentos de controle nos personagens do filme”, diz o cientista, comparando as reações desses personagens em ambientes estressantes às dos ratos de laboratório: disputa, fuga e inibição. A criação artística é um rico meio de compreensão dessas tensões.
Arte é fantasia, imaginação, neurose; é crítica social, política, científica, tudo o que brota na mente e vem a público sob um ponto de vista estético e filosófico. Se não aponta soluções, desperta perguntas. Que acendem uma luz.
(Ewan Townhead)

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sexta-feira, 22 de maio de 2020

O PÓS-GUERRA, A PANDEMIA,


O TEATRO DO ABSURDO E NOSSAS DÚVIDAS

O mundo tem altos e baixos, disse Cartola com uma pitada de maldição à mulher que o abandonara: “...o mundo é um moinho / vai triturar seus sonhos, tão mesquinho / vai reduzir as ilusões a pó”. Quantas fantasias acontecem entre os vaivéns e as moendas da vida!
O pêndulo do transtorno de bipolaridade oscila entre a euforia - ou mania - e a depressão; outras pessoas, doentes do tipo unipolar, lutam para emergir das profundezas – quando não exibem socialmente uma falsa alegria, o que vem a dar no mesmo. A cumplicidade entre a psicanálise e a filosofia, no caso, é entre irmãs: a última vê ali o niilismo (de nihil, nada, em latim), a negação. O existencialismo simplifica: “sou para não deixar de existir”, disse Sartre; Schopenhauer usa as lentes do pessimismo e Franz Kafka as do absurdo: em “Metamorfose”, seu personagem deteriorou-se até se transformar em uma repugnante barata.

1945. Fim da II Guerra, negação e angústia tomaram conta do mundo, como um longo “blues period”, depressão pós-parto. A arte perdera a fé na condição humana, predominava um pensamento que flertava com o vazio, entre ‘o ser e o nada’ de Sartre. Embalada na psicanálise e na filosofia, à arte coube a missão de representar o vácuo que tomou conta do mundo.
O Balcão de Victor García
Sartre admirava um autor, nascido de uma prostituta e preso quando adolescente: Jean Genet, cujas peças um dia viriam a torná-lo um ícone da intelectualidade. O Brasil pôde assistir, nos anos 1970 – “meninos, eu vi”! - à montagem de seu “O Balcão” pelo argentino Victor Garcia,  cujo cenário era uma gigantesca espiral metálica, um bordel em móbile onde os personagens assumiam seus papeis copulando com  as prostitutas nas personas em que gostariam de ser vistos pela sociedade: general, bispo, juiz; era a transfiguração do personagem em sua fantasia sócio-sexual - o próprio Genet assumiu-se marginal e homossexual porque era através dessa ótica conservadora que a sociedade o via.
Vladimir e Estragon
Mestre do absurdo foi o irlandês Samuel Becket, de “Esperando Godot” (de God, ou Gott ), em que os personagens Vladimir e Estragon aguardam a chegada de alguém que nunca virá - a negação de Deus. Dürrenmatt, em sua “A Pane”, fala do viajante cujo automóvel enguiça na estrada (daí o título). Perto dali, um juiz aposentado oferece ajuda e o hospeda em sua casa. Os que lá estavam assumem seus papeis num absurdo tribunal em que o visitante se torna réu. Condenado em um julgamento vivido como ‘real’ sob enorme pressão, o hóspede termina por suicidar-se.
[No filme “A noite dos desesperados”, de Sidney Pollack,1969, um casal participa de uma interminável maratona de dança até que, exaurida, a mulher (Jane Fonda) pede ao seu par que a mate, e ele o faz. À polícia, declara: They shoot horses, don’t they?, título do filme em inglês - “Eles matam cavalos, não matam?”. O fato teria acontecido em 1919, em plena depressão econômica e pós-gripe espanhola].



O espanhol Fernando Arrabal tem em sua “Fando e Lis” não uma história de amor, apenas conflitos, violência, disputas vãs e insanas. Lis, paraplégica, é conduzida por Fando em sua cadeira rumo a Tor, onde nunca chegam: um duro humor negro. A representação depende, além do talento dos artistas, na maior parte de seu autoconhecimento e dos personagens, seus conflitos pessoais e a busca da felicidade - que não sabem onde está, se no mundo ou no interior de cada um.
Eugène Ionesco, franco-romeno precursor do teatro do absurdo com “A cantora careca” faz um exercício sobre a impossibilidade de comunicação entre as pessoas. Homem e mulher com o mesmo sobrenome discutem sobre a morte, a vida e filhos - até descobrirem que são casados. Real e falso se anulam, tanto um como outro são verdadeiros. O fio condutor da peça é o desnudar da comunicação humana em diálogos sem sentido, fúteis, ambíguos.
O italiano Luigi Pirandello investe na ambiguidade em sua ” (Assim é, se lhe parece ). E subverte o velho conceito de teatro, em “Seis personagens à procura de autor”, quando esses surgem com vida própria, junto a um grupo de atores, situação absurda tal que, ao final da estreia, ouvia-se pessoas gritando “manicômio”, “louco”, tamanha a perturbação que a peça lhes despertou.
Estamos em conflito mundial contra um poderoso inimigo que, diferentemente da II Guerra, por sua natureza tenta abater não uma parte, mas a humanidade inteira. A economia mundial naufraga, como no pós-guerra, e há um oceano de conflitos de ordem social, filosófica e política (há até o niilista moderno e o ignorante negacionista!). Alguns até não escondem sua falta de compaixão pelos mortos, doentes e futuras vítimas. Morrer? “Não lhe custa nada, só lhe custa a vida”, aproveito Gilberto Gil.
Os conflitos psicológicos de hoje tiveram início no ódio de um segmento fanático contra as defesas de outro, que em sua maioria depois se confinaram. Mas, após domada a besta, voltaremos ao ‘normal’? Viveremos os raros altos e muitos baixos do moinho ou serão por ele moídos nossos pessimismos e negações, até percebermos a metamorfose? Será a sociedade nessa ressaca viral um balcão que nos obrigará a assumir as máscaras que quiser nos impor? Seremos personagens à procura de um líder que nos guie rumo ao futuro ou um Godot que nos salve, mas que nunca chega? Continuaremos em conflito e perdidos rumo a Tor, um estranho caminho para Santiago de Compostela que não existe? Teremos de ressurgir do que nos sobrou e para a sociedade mostrar-nos como lhe parecemos?
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sexta-feira, 15 de maio de 2020

EM BUSCA DE UMA SAÍDA



Na mitologia grega, Teseu era filho do rei de Atenas, um herói por quem Ariadne, filha do rei de Creta, era apaixonada. A cada sete anos - o chamado “grande ano” - sete rapazes e sete moças eram levados a um lugar criado por Dédalo para o rei Minos, um labirinto de caminhos intricados de onde, uma vez perdidos, nunca seria possível sair.
No interior do labirinto escondia-se o Minotauro, filho da mulher de Dédalo - um monstro aprisionado em corpo de homem e cabeça de touro que devorava aqueles jovens em lauto banquete. Teseu, disfarçado como um dos sete rapazes, ancora na ilha de Creta com um novelo de linha cuja ponta amarra à porta do labirinto, desenrolando o fio ao longo do caminho. Pelas tantas, deparou-se com o Minotauro, mas sacou a espada mágica, presente de Ariadne, e o matou. Seguindo os conselhos de Dédalo, olhava somente para a frente, nunca em outra direção, puxando de volta o fio do novelo e levando consigo a amada, até escapar. (Qualquer semelhança com o conto de Joãozinho e Maria, a terrível madrasta que largou os dois no meio da floresta e as pedrinhas brancas para marcar o caminho de retorno não é mera coincidência).
O Fênix, por F. J. Bertuch (1747-18220
Também da mitologia grega é o Fênix, um pássaro misterioso: morria e retornava, revivia usando as cinzas de seu predecessor - ou seja, os restos de si mesmo. Para alguns, pela simples decomposição de seu corpo, e, para muitos, imolado em autocombustão (daí a expressão de que algo ou alguém “ressurgiu das cinzas, como um Fênix”, como se nunca fosse esperado).
A ideia do renascimento do Fênix serviu tanto a alusões ao Império Romano quanto ao nascer e pôr do sol, ao ciclo do ano e até à ressurreição de Cristo. Pode, também, aludir à ciclicidade pensada por Hegel sobre a história, seus fatos e personagens,  ou um retorno à terra natal, como na recente e linda “Sabiá” (1968), espécie de canção do exílio de Jobim com letra do Chico Buarque: “Vou voltar / sei que ainda vou voltar / para o meu lugar. / Foi lá, e é ainda lá / que eu hei de ouvir cantar / uma sabiá”.
O jovem Sebastião I, por Alonso Sanchez Coelho (1562)
A sombra do Fênix ainda pairou sobre Portugal com Sebastião I, (1554-1578), que sucedeu o pai aos meros três anos de idade sob a tutela de sua avó, rainha da Áustria, e depois seu avô, cardeal português, como regentes. Entronizado aos quatorze anos em 1557, aos vinte e quatro desapareceu na batalha de Alcácer-Quibir, derrotado pelo sultão Abd al-Malik. O povo, no entanto, acreditava piamente que Sebastião voltaria para reassumir. Para evitar o mal maior, o colapso do reino de Portugal, quatro anos depois Filipe I  mandou buscar uma urna enterrada em Lisboa tida como sendo dos restos do “Adormecido”, Sebastião, para tentar sepultar de vez a crença no sebastianismo. Nada provou, a lenda ficou viva e só esvaneceu com o tempo: Sebastião nunca retornaria.
Muito se perde em lutar como Don Quixote, o cavaleiro errante de batalhas vãs e imaginárias. O novelista norte-americano F. Scott Fitzgerald disse: “O pior momento na vida de alguém é quando ele observa o próprio mundo desmoronar, e o que tem a fazer é encarar tudo impassivelmente. O Conformista, personagem-título do livro homônimo do italiano Alberto Moravia, uma espécie de anti-herói, foi levado a colaborar com o Partido Fascista Italiano, sendo registrado em filme pelo cineasta Bernardo Bertolucci (1970).
F. Nietzsche
Do inglês, to err, andar sem caminho, significa vagar sem direção, como Quixote. Para simplificar uma frase célebre, o alemão Nietzsche disse que “sem música, a vida seria um caminhar errante”. Em português, menos comum, errar cai qual uma pétala no “Soneto de separação”, do Vinicius, magistralmente trazido à música por Jobim: “Fez-se da vida uma aventura errante / de repente, não mais que de repente”.  Um errar, errante, caminhando por veredas na vida, sem mesmo procurar saídas. Só navegar, porque navegar é preciso, disse o poeta.
Estamos vivendo tempos de dilemas e decisões, buscas por resultados em várias frentes de luta. Mas também dias de conformismo e passividade, insensibilidade e egoísmo. É época de uma pandemia avassaladora que coloca o mundo em pânico, em grande parte sem noção do que acontece. Há incontáveis pesquisadores em laboratórios, entidades públicas e privadas, universidades trabalhando contra o tempo impiedoso que deixa seu rastro de morte, enquanto um sem-número de médicos, enfermeiros e pessoal de apoio encaram o Minotauro de frente.
Campus da USP no Butantã
Como teseus, pesquisadores de Israel, universidades como as de Oxford, John Hopkins, USP e instituições a ela associadas, tentam puxar o fio do novelo: drogas empregadas contra moléstias do passado para encontrar a saída do labirinto dos enfermos ou, um dia, a milagrosa vacina. Mas não há espada mágica. As preces daqueles já enlutados voltam-se para seus amados sebastiões, e as orações para pessoas queridas, inconscientes e desenganadas, praticamente aguardam pelo milagre nas UTIs. Há os que esperam, crédulos, o renascer de seus fênix, no desespero da perda de parentes e amigos. Enquanto isso, quixotes perambulam como cavaleiros errantes, “sem lenço nem documento”, e conformistas aguardam, impassíveis, o mundo desmoronar, como disse Fitzgerald.
Finalmente, temos os que nada ajudam - pelo contrário, só atrapalham -, pensando em seus próprios interesses e vendo milhares de mortes como mera fatalidade alheia. Por dolo ou omissão, não se assumem pais de seu quinhão nas dificuldades enfrentadas pelo trabalho abnegado de legiões de equipes e técnicos, em sacrifício pela sociedade.






sexta-feira, 1 de maio de 2020

DON QUIXOTE E O INIMIGO INVISÍVEL

Miguem de Cervantes Saavedra
“O espirituoso cavaleiro Don Quixote de la Mancha”, de onde “Don Quixote”, do espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616), é uma obra que tem recebido, desde sempre, os melhores comentários pela sua grandeza. Levantamento de Chrisaphis Angelique publicado no The Guardian em 2012 exibe no título o panteão a que é alçada a obra: “É o melhor livro do mundo, dizem os maiores autores”. O personagem é tão importante no Ocidente que, ao par de outros países, em português é substantivo dicionarizado: “indivíduo ingênuo e generoso, que luta inutilmente contra as injustiças” (Houaiss). Um quixote, portanto, é aquele lutador incansável que enfrenta, sem esperar vencer, os mais terríveis inimigos. 


"Embebedou-se tanto na  leitura que passava as noites em claro"
(Por Gustave Doré)
No escritório de meu pai, em casa, entre as várias estantes de livros, havia uma reprodução de gravura do francês Gustave Doré (1832-1883) mostrando um Cervantes já meio descompassado, o corpo escorregando na poltrona entre vilões imaginários, livro na mão esquerda e espada erguida na direita. Lanças, brasões, seres estranhos fazendo-lhe um pórtico surreal com uma cabeça gigante ao chão, provavelmente decepada. Um dístico encimava toda aquela imagem alucinante e bem definia Cervantes: “Embebedou-se tanto na leitura que passava as noites em claro”. Talvez fosse o lugar para que meu pai ali se embriagasse não apenas com Cervantes, mas também Faulkner, Flaubert, Joyce, Goethe, Machado e Bandeira, no cantinho em que ele desbravava seu mundo à parte.
Don Quixote, por Pablo Picasso 1955
O fidalgo Alonso Quixano, de La Mancha - “terra dos moinhos” no centro da Espanha -, leitor de escritos sobre cavalarias, assume-se cavaleiro errante, Quixote de la Mancha. Para acompanhá-lo, busca um homem tosco do campo, Sancho Panza (do esp.: pança, opulenta barriga). Nomeia-o seu escudeiro, até mesmo pela paciência dele com as histórias malucas do fidalgo.  Quixote confunde-se cavaleiro com os personagens de seus livros. Alucinado, proclama-se Don e nomeia o velho cavalo Roncinante (‘cavalo sem força’). To tilt windmills  (“balançar moinhos”) tornou-se expressão popular em inglês, e representa lutar erraticamente contra inimigos invisíveis, imaginários ou reais –para Quixote, tanto fazia como quanto fez se era um ou outro. Há um sem-número de gravuras e desenhos do fidalgo montado em Roncinante, Sancho Panza a tiracolo, enfrentando moinhos como os de sua terra, armado com lança e protegido por um escudo, como se aqueles engenhos fossem seus adversários mortais. Um texto pleno de alegorias e sátiras, um marco que volta sua ironia para as tradições de escribas do passado.
Hoje, temos dezenas ou centenas de milhares de quixotes lutando não contra quimeras, mas entes invisíveis a olho nu, reais e devastadores - inimigo imperecível, arduamente domável, apenas, que atende pelo nome de Covid-19. É mais do que sabido que, se realmente controlarmos a ameaça, ela ficará latente, embora viva para sempre, como acontece com a influenza, a Aids, a peste bubônica, o ebola e a pólio, só para citar alguns exemplos. Uma vez domado, o vírus terá sua futura vacina acrescentada à velha lista, até que um próximo grande mal surja como novo tsunami.
Gráfico da trajetória do NHGP
Verdade que nesses novos tempos, especialmente a partir do século 20, a ciência tem evoluído em espiral ascendente, graças ao advento dos computadores – de lerdos monstrengos para cálculos e o enorme Univac até as supermáquinas de hoje, que performam milhões de cálculos por segundo. O “Human Genome Project”, de 1990, avançou muito mais rápido em suas decodificações do que os 20 anos que haviam sido previstos: terminou em 2003. A cada nova geração e upgrade, os equipamentos galgavam, eles próprios, saltos em progressão geométrica. Penetrar nos ácidos nucleicos que controlam todos os tipos de vida – como o RNA e o DNA – é algo que agora acontece em velocidade espetacular. Mas quem domina as técnicas são pessoas como nós, cada vez mais preparadas, pesquisadores científicos das nossas universidades, principalmente, vanguarda que alguns não estimulam e sequer reconhecem, seja por não enxergarem meio palmo à frente do nariz ou por interesses outros.
Forma junto aos incansáveis pesquisadores, em pequenos, mas altos passos (vacinas, fármacos, suportes como respiradores, testes, etc.), a legião de bravos médicos, enfermeiros e técnicos que, em turnos de trabalho nos limites do suportável, colocam suas próprias vidas em jogo para salvar pessoas. Eles precisam de todo o apoio das autoridades, nunca de seu descaso. Universidades públicas federais e, para ser claro, principalmente as estaduais paulistas - que têm suporte de instituições como a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) -, fazem de seus laboratórios os castelos de onde, qual novos fidalgos, se armam para empreender a guerra. As federais, com cortes de verbas no fomento de pesquisas, conquistam além do possível por puro amor à luta, dada a falta de condições mínimas.
A Batalha Naval do Riachuelo, cópia por Vítor Meireles
Vêm à mente frases que são parte da nossa história: “Considero minha obra uma carta que escrevi à posteridade, sem esperar resposta”, disse Villa-Lobos, a representar agora a humildade e devoção com que todos esses profissionais, de pesquisadores e médicos até o pessoal de apoio,  encaram suas batalhas contra o vírus. Mais: pensando em embates, vem-me a Batalha do Riachuelo (1865), em plena guerra do Paraguai, quando o Almirante Barroso conclamou: “O Brasil espera que cada um cumpra com o seu dever”. Deus salve todos esses quixotes, gloriosos quixotes.
Don Quixote e Sancho Panza, de  Gustave Doré