Tão, tão cedo, e já ouvimos falar do
réveillon que não vai ter, à parte os imprudentes grupos a dar os sete pulinhos
da sorte nas ondas das praias. As vagas do mar continuarão indo e voltando, e os
habitués se preparam para beijos, abraços e juras, apesar dos riscos. A
passagem do ano no dia 31 de dezembro é uma convenção cristã, que ocorre em
datas diferentes em outras religiões e calendários. Após o réveillon, saudemos
o carnaval que não haverá, talvez soníferas reprises na TV, como nas novelas. E
não há como prorrogar esse deus-dará para além do carnaval: de hoje a tantos
meses, a imprevisibilidade dá tom e compasso.
Mais comedidos, celebremos um Natal
diferente, que poderá acontecer sem maiores rega-bofes nas pequenas famílias
confinadas: uma ceia ” com mínimos riscos, mesmo que entre poucos
familiares. Os mais ricos e prudentes terão gordas festas on-line, têm cacife
para tais repastos e tecnologias. Aos mais pobres, um frango com arroz, grandes
famílias se amontoando em um cômodo - alijadas, por exclusão social, além dos
banquetes, das toneladas de advertências despejadas sobre nós pela mídia.
Jean Cousin: A parusia e o Juízo Final |
Pelo calendário gregoriano, celebra-se
o nascimento do Salvador no dia 25 do mês. Que venha a parusia, segunda vida do
Senhor na Terra, conforme o apóstolo Paulo. Que seja logo, o mundo padece demais:
a natureza que o Pai criou, as florestas, a flora e a fauna. E, Senhor, não nos
esqueça, pecadores a sofrer as provações deste ano.
Baile funk |
Não, Chico, não dá pra cantar “aqui
na terra tão jogando futebol / tem muito samba, muito choro e roquenrol” (talvez
só a parte do samba que diz “mas o que eu quero é lhe dizer / que a coisa aqui
tá preta”). Futebol? Nas praias, ou bola de meia na periferia, por conta e
risco. Samba? Dançam o funk em bandos, despreocupados. Só não nos
faltará uma parte da letra da música: o choro! (Não aquele das notas musicais, mas
as lágrimas que molham os lenços de uma imensidão de famílias enlutadas).
Mas o Brasil deve continuar!
Precisamos eleger nossos edis e alcaides, pois sem eles perderemos de vez as
rédeas do futuro, em meio à desordem constitucional. Venceremos esta etapa da
postergação do pleito por um mês, para novembro, e quem sabe então veremos a
reta pandêmica ascendente se curvar, apesar das desobediências e inobservâncias
- ingênuas ou estimuladas - a que assistimos.
Há um lado positivo no provável escrutínio
por voto manual, sem os botões que seriam apertados incontáveis vezes pelos cidadãos,
entre eles os contaminados (luvas cirúrgicas para quase 150 milhões de
eleitores estão fora de cogitação!). Aos mesários convocados, sonho de proteção
por cabines acrílicas bem vedadas na frente, nos lados e em cima, saunas em tempos
de calor. Um ar condicionado ajudaria muito, mas quantos parcos municípios poderão
arcar com o acrílico, quantas as raríssimas seções dotadas de refrigeradores de
ar no país? Perfeccionismo impossível, desconfortos por um dia a poupá-los de
maiores riscos.
Foto: agazeta.com.br |
Votaremos sem o tão sonhado biométrico,
mas, mesmo assim, caberá sufragarmos com consciência, longe dos perigosos
cantos das sereias e discursos ensandecidos. Com o voto manual, ao menos serão
frustrados os velhos arautos de alegadas fraudes nas urnas eletrônicas, que justificavam
suas futuras ou passadas derrotas eleitorais.
Índice Infomoney |
Bolsas em oscilação
constante, quedas como mote, IPCA a 0,32%, taxa Selic a inéditos 2%, forçando
os juros ao consumidor a níveis mais suaves, porém ainda muito altos; acima da Selic
o IGP-M, a 2,23%; um PIB (Produto Interno Bruto, índice de atividade econômica)
projetado a -6,4% (um balde de gelo), tudo como um bomba em cujo relógio já foi
dada corda. E do dólar,
com o piso além dos R$ 5,30 o que esperar? (Um dia já houve paridade entre as
moedas...)
Trump faz bandeira de campanha sua
guerra particular contra a poderosa China, que antes raspava nos 7% de PIB ao
ano, e neste 2020 tem previsão do FMI para 1,2%. Pior ainda, se na guerra de
factoides o Brasil continuar a seguir o líder, perderemos os parceiros chineses,
responsáveis por mais de 1/3 dos nossos negócios internacionais.
Mas não nos rendamos ao popular
‘senta e chora’. Médicos de hoje não mais iludem e passam a mão na cabeça de
pacientes desenganados dizendo ‘está tudo bem’, camuflando a verdade. Tal qual,
um país que sobrevive com respiradores não pode ser enganado: o panorama não é alentador,
é sombrio. A busca permanente por informações, a injeção de realidade e a visão
crítica de um panorama em que, do lado pandêmico, sonha-se com promessas de
vacinas que em breve serão bem-sucedidas, mas nem tão cedo aplicadas em larga
escala. Há os vaivéns econômicos, um navegar sem rumo visando a um delirante mercado
100% livre e uma economia quase nada regulamentada, à moda do surrado “deixai fazer,
deixai passar”, que ainda sobrevive mais de um século depois.
Gérard de Nerval |
Decepciona inexistir correlação de
forças para alguém apresentar planos, programas e caminhos a seguir, fora das moléstias
ou sequelas políticas a serem enfrentadas com o debelo da melancolia – que,
como disse o francês Gérard de Nerval (1808-1855), é passividade mórbida, “uma ‘doença’
que consiste em vermos as coisas como elas realmente são”.
Como partes de um todo, resta-nos
prosseguir juntos e de cabeça erguida, lembrando Magrão e Sá na voz do Milton:
“Nada a temer, senão o correr da luta / nada a fazer, senão esquecer o medo,
medo / abrir o peito à força, numa procura / fugir às armadilhas da mata
escura”.
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Canal no Youtube: https://www.youtube.com/user/autrandourado
Livro: Memórias de Isolamento - Saudosos Velhos Amigos e outras Crônicas: memoriasdeisolamento@gmail.com
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