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sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

A CULTURA? ORA, A CULTURA

 

Sérgio Rouanet (ABL)

E
scolher o responsável por cada área em âmbito de governo, municipal, estadual ou federal, demanda, além de natural afinidade política, a exigência de uma série de qualidades. Não se obriga que seja alguém que milite na área, um bom administrador com nível à altura do cargo pode trazer bons resultados. Basta ver a lista da Cultura, estreada pelo jornalista José Aparecido de Oliveira (1985), nos tempos de Sarney, a que seguiram mais três ministros, retornando ao mesmo José Aparecido em 1988, gestão concluída com a posse de Collor, em 1990. Com este último, assume o teatrólogo Ipojuca Pontes, que após um ano cede o lugar para Sérgio Paulo Rouanet (1991), com um currículo para ninguém botar defeito: antropólogo, diplomata, professor, mestre em ciência política, filosofia, economia e agronomia pela USP, onde doutorou-se em medicina e ciência política, além de ter sido membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) - cuja nomeação seguramente não está entre os erros de Collor. Rouanet idealizou a lei de incentivos fiscais, que terminou batizada com seu nome. E quando se fala em democratização da Cultura, com certeza fala-se na lei por ele gestada. (Bom ressaltar que foi na gestão Collor que o Ministério da Cultura foi extinto, passando os titulares da pasta a serem empossados como secretários de Cultura).

Houaiss (ABL)

C
om Itamar Franco, destacou-se o filólogo Antonio Houaiss (1993), e durante toda a gestão de Fernando Henrique Cardoso, de 1995 a 2002, outro grande nome: Francisco Weffort, escritor, cientista político e acadêmico. Em 2003 tomou posse Lula, que nomeou o cantor Gilberto Gil para a Cultura, a que seguiram Juca Ferreira e a produtora Ana de Hollanda, em uma gestão controversa. Não dá para discorrer sobre esses 21 ministros, mas salta aos olhos ter sido nas gestões Collor e Bolsonaro que a pasta foi extinta, relegada a um espaço de somenos importância. Com Bolsonaro ocuparam funções decorativas os secretários Henrique Pires, José Paulo Martins, Ricardo Braga e, finalmente, o polêmico Roberto Alvim, que em 2020 assume a secretaria no lugar da atriz Regina Duarte, secretária-tampão de um total de nada menos do que sete titulares e bastante confusão: Alvim clonou um discurso do ex-ministro da propaganda de Hitler, Joseph Goebbels, causando enorme transtorno até ser exonerado em janeiro de 2020, sob imensa pressão.

Margareth Menezes (Discogs)

E
m dezembro de 2022, Lula anuncia o ressurgimento do Ministério da Cultura e o nome de Margareth Menezes para titular da pasta. Para os que, como eu, a conhecem quase que só de nome e pouco de música, a decisão trata de um conjunto de fatores que visam a contemplar segmentos que pleiteiam espaço no governo: cantora, atriz, negra, mulher, pessoa atuante no meio. Indicada a dois Grammys e premiada algumas vezes, recebeu do jornal Los Angeles Times o epíteto de “Aretha Franklin brasileira”. Procurei ouvir mais algumas músicas, para formar convicção, e encontrei muita influência afro, via Bahia, mas fora do clichê de sempre, o inefável Axé-music. Parece uma afrodescendência legítima, soteropolitana de raiz, que Margareth sabe representar junto aos grupos que organiza e lidera. Falta conferir a capacidade de organização, de liderança, ideias; falta ainda desvencilhar-se de acusações - algumas plausíveis e outras visivelmente maldosas ou para “fazer marola”. Pergunto: será que todos os 21 antecessores no cargo teriam passado por tal crivo? É aguardar e ver.

Anton I, príncipe de Esterhàzy

A
cultura europeia é lastreada no poder público – ou melhor, em dinheiros públicos –, que sustenta a estrutura de imensa parte das melhores orquestras, teatros e museus. Costume arraigado desde os tempos em que príncipes, condes e imperadores, além de igrejas, organizavam o ensino e a prática (no caso, mais especificamente musical), desde Bach, Haydn, Mozart. Na Europa, o subsídio oficial é tão importante que em geral representa quase 100% do orçamento das grandes orquestras e teatros. É parte da vida, até as menores cidades costumam ter suas casas de ópera, museus, estimulam o conhecimento do passado e do presente.

The Curtis Institute

N
os EUA, a cultura é usufruída pelos cidadãos por meio de ingressos ou pelo preço do objeto de arte e ponto. Para não dizer que não há apoio algum, cito o NEA (National Endowment for the Arts), parte da National Foundation for the Arts e outras agências. Entre 1965 e 2008, o NEA pagou 128 mil auxílios, mais de 5 bilhões de dólares – o que significa 39 mil USD cada no período 43 anos – ou seja, um valor absolutamente irrisório.  Mas trata-se de um país em que mecenas particulares da arte são donors, patrons, sponsors, trustees e afins – classes de doadores, conforme as cifras, para as mais diversas organizações. É uma nação onde se paga caro por um ingresso, e além disso tudo ainda há doadores como Mary Curtis, que em 1924 ofereceu três prédios e mais USD 12 mi (200 milhões hoje, ou ainda R$ 1,04 bilhões) para o início do afamado Curtis Institute of Music da Philadelphia, só para citar um exemplo.

Mário de Andrade (Wiki)

O
Brasil é um país bem mais pobre, em que a mídia dissemina uma cultura de segunda ou terceira; é preciso suporte e subvenção oficiais, seja por incentivo fiscal ou outro, para que o povo em geral tenha acesso ao que há de melhor. Cultura é o alimento do espírito, a fábrica do que Mário de Andrade chamava de “biscoito fino”, a que todos têm direito, e é um bem comum que engloba das nossas raízes ao conhecimento universal. Esperemos que desta vez haja sucesso na reconstrução, para adiante prosseguirmos e vencermos.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

PENSANDO A COPA

 


E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? e agora, você? você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta? E agora, José?” O belo poema do Drummond já serviu para perguntar tanta coisa, e simbolicamente em tantas ocasiões, que não seria agora que haveríamos de esquecê-lo. Perdemos a Copa do Catar, e agora, José? Que perda terrível, vimos homenzarrões chorarem como crianças. Afinal, eram jogos, por isso mesmo coisa que vem de brincar, jouer, em francês, to play, inglês, spiel, alemão (só em português se esqueceram desse duplo sentido). Pois perdemos a brincadeira, enorme brincadeira com que nos divertimos e penamos a cada quatro anos, o Brasil unido, ora sofrendo, ora em júbilo. Gols nossos ou dos outros repentinamente podem fazer desmoronar o céu que era de brigadeiro na festa da torcida.

Jasha Heifetz

E
ncontro algum paralelo em situações musicais. Aquele concurso, aquela competição, um desafio para o qual o músico se prepara para vencer, deve estar seguro de si, esquecer os outros. E não ficar nervoso. Mas, diga como? Quem, em um grande concurso ou uma copa, não treme? Ed Barker, meu professor, dizia que quem está preparado não fica nervoso, usa aquela adrenalina toda concentrando-a na música, mas isso é coisa de gênio. Outro gênio, outra ideia: Jasha Heifetz, dizia que todo mundo fica nervoso, e que ele também fica, até o momento...em que o arco começa a deslizar sobre as cordas do violino. Já os 22 em um campo de futebol entram superaquecidos, a mente concentrada na musculatura em ponto de bala, há as torcidas gritando a todos os pulmões, como se tudo convergisse para um só ponto naquele momento. A bola.


O
que não sabemos, contudo, é o que se passa dentro de cada um, a cada momento. Fazendo um paralelo com a música, assisti nos EUA a uma prova fechada para uma vaga muito concorrida. Entre os finalistas, dois excelentes músicos. Sabe-se lá o porquê, o favorito cometeu um erro besta, dali foi perdendo o rumo da difícil peça e, em menos de um minuto, parecia uma criança sem saber para onde ir. Robert, o prenome dele, lembrava o Leverhühn, músico-personagem do livro Dr. Faustus, de Thomas Mann, que havia feito um trato com o demônio para obter virtuosismo desmedido: “Destruído pelo extraordinário, seu gosto arruinado por qualquer coisa, ele no mínimo vai se deteriorar no desespero” (...) “O problema é como ele poderia se manter nos limites do possível”. É isso, tocando e jogando nos limites. A despeito das enormes diferenças, há pontos em que a música esbarra no esporte de maneira especial: ambos são atividades de performance, envolvem a mente em grau intenso e dela dependem, até fisicamente, para o controle de sua atividade. E há mais: a performance individual do jogador, ao receber um passe para chute em gol, a cobrança de um pênalti, um cara a cara sozinho com o goleiro, todas atividades solo – como na música - momentos em que tudo depende de um só, a pulsação cardíaca acelerada, a adrenalina nos píncaros. Porém, na música temos, como no teatro, a chamada ‘quarta parede’, através da qual o público vê e pelo outro lado o artista dele se esconde. O esporte tem o que se poderia chamar ‘parede descampada’: é preciso ser olhos e ouvidos, por todos os lados, pois se a bola está na frente o adversário pode vir pela lateral ou mesmo por trás. Sob tal ponto de vista, esses performers, jogadores e músicos, estão em universos diferentes, mas no aspecto individual têm muitas semelhanças.

Betabloqueador

S
e no passado do futebol havia o doping (diz-se dôpim), e como em todas as áreas os dirigentes até o administravam nos atletas, na música de concerto as drogas nunca “colaram”, ao menos sobre um palco: a loucura da música, no caso, é uma “alucinação lúcida”, por mais contraditório que possa parecer: no caso de um solista, é um concerto perdido. Contudo, vieram as modernidades: os betabloqueadores. Bloqueadores beta-adrenérgicos existem desde o final dos anos 1950 e causam, entre outras coisas, uma redução na frequência cardíaca. (Ou seja, a descarga de adrenalina, com o comprimido tomado um pouco antes do concerto, é reduzida, e com ela os batimentos são desacelerados). Maravilha? Como assim, que maravilha é essa? É que é exatamente a adrenalina, com outros hormônios naturais, que levam o músico ao pleno estado de concentração para a perfeita execução artística. Pergunta-se: como fica a performance dos poucos usuários beta de hoje? Fria, seca, reta, nada mais. Pode estar correta, no tempo certo, mas é como querer enquadrar um belo óleo sobre tela com um vidro anti-ofuscante, para desespero dos apreciadores. Não funciona. Pode até ‘livrar a cara’ de um músico logo à vista do maestro – por isso é mais frequente seu consumo entre os sopros, bem ali à sua frente.


T
ratamos, até aqui, dessas similaridades dos performers do futebol e da música. Agora cuidemos, nós, derrotados, ao menos, do que antes era a paixão e a melancolia e hoje pode ser a ressaca dos gols que não fizemos, das passagens arriscadas feitas na euforia de um momento após uma espécie de exame cardíaco de esteira tomado “na marra”. Espero que todos possamos tirar lições desses poucos jogos de que participamos, mas lembremos que o futebol não termina em Copa. Nem os melhores concertos no Carnegie Hall de NY. A música e o futebol estão aí o ano inteiro para preencher nossas vidas de satisfação, nossas mentes de bons pensares e nossos corações dos melhores sentimentos.

 

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

PELÉ, ALEGRIA DO MUNDO

 


Para abrir a conversa, um lindo coral de Johann Sebastian Bach chamado Jesus bleite meine Freude (“Jesus permanece minha alegria”), adaptado séculos depois com uma linda e florida poesia por Vinícius e Toquinho como “Rancho das Flores, ou “Jesus, Alegria dos Homens”. Em 1962, o cineasta Joaquim Pedro de Andrade criou uma obra-prima, “Garrincha, alegria do povo”, documentário sobre o jogador Manoel Francisco dos Santos, o famoso Mané. Partindo deste filme mas pensando em Pelé, achei de escrever algo sobre “um dos melhores jogadores do mundo”, senão “o maior jogador do mundo”, aquele que é rei por aclamação no maior de todos os esportes. Garrincha subiu ao estrelato na Copa de 1958 e, por uma contusão de Pelé, em 1962, tornou-se o principal jogador da Seleção naquela copa. Não há como tecer comparações, são diferentes os tipos físicos, as histórias, os sete anos de idade entre os dois, fora o jeito indisciplinado do Garrincha e um jogo um tanto mais cerebral do Pelé – que, além disso, tinha um par privilegiado de pernas, verdadeiros canhões. Pois passando por Bach, Vinicius e Joaquim Pedro cheguei ao título deste artigo sobre Pelé, que já foi homenageado em projeções de led em prédios, como no Catar e NY, e com um imenso “camisão” no estádio de Lusai, aclamado como um herói de todos e para todos, abençoado por todos.

Estátua de Pelé em 3 corações

P
elé nasceu tricordiano em Minas – era de Três Corações, cidade que só por ele justificaria sua existência. Com quase 80 mil habitantes, Três Corações nos deu outros grandes nomes, como Godofredo Rangel, escritor e mentor literário de meu pai, Autran Dourado, o cineasta Braz Chediak (Navalha na Carne) e o ex-presidente Carlos Luz, que sucedeu Café Filho por apenas três dias. Ali se homenageia o jogador, como na Casa Pelé, uma réplica do lugar onde o Rei passou a infância, no endereço que leva seu nome: R. Edson Arantes do Nascimento nº 1.000 (lembrança do milésimo gol do Rei).

Kelly Nascimento e Pelé

Aos 82 anos, forte como um touro, Pelé já passou por um câncer no cólon e várias metástases. Mesmo com os melhores cuidados, o atleta passou a não reagir bem à quimioterapia, e teve a medicação suspensa. Entrou em uma fase que no exterior é chamada end-of-life care (cuidado de fim de vida), um nome nada encorajador, aqui chamado “cuidados paliativos”. Mesmo assim, no sábado, dia 3, Pelé postou em uma rede social que estava “forte”, e pode ser que ele se sentia mesmo assim. Já o Hospital Albert Einstein negou que Pelé esteja sob cuidados paliativos e informou que se comunicaria apenas por meio de boletins oficiais. Declarou ainda que desde a sexta-feira (2/12) o Rei estaria sendo tratado com antibióticos para uma broncopneumonia. Uma filha de Pelé, Kelly Nascimento, sempre que convém passa informações tranquilizadoras, se é que isso é possível, e diz que pretende estar no Brasil no fim de ano. No domingo, 4/12, disse que a infecção pulmonar seria decorrente da Covid-19. Um outro filho só trouxe desgosto ao Pelé por suas relações espúrias; houve ainda uma traumática rejeição de uma filha nascida de um romance fora do casamento, Sandra, reconhecida apenas por força de exame de DNA. Com as fofocas crescendo junto ao que hoje chamam fake news, o sucesso de Pelé era tão grande que despertava olhos de inveja e cobiça, dado ainda o status de grande empresário por ele alcançado no Brasil e no exterior.  

Com a Rainha Elizabeth

T
odo grande atleta ou artista, figuras públicas por excelência, tem sua vida devassada e escarafunchada por um povo sedento como na peça Roda Viva, do Chico Buarque. Pelé amargou ainda o preconceito por um relacionamento com a loiríssima apresentadora Xuxa, e de tão popular não faltou encontrar-se com os ex-presidentes norte-americanos Gerald Ford e Bill Clinton, a rainha Elizabeth e o boxeur Mohammad Ali. Participou de nove filmes e uma telenovela - Os Estranhos, sobre ETs -, e esteve com o Papa Paulo VI.


Não contente com essa visibilidade, chegou a compor (“Perdão não tem”) para uma gravação com Elis Regina (1969), entre mais de 120 outras músicas. Com violão e voz sofríveis, ainda gravou para campanhas da SPTuris “Olha lá São Paulo”, falando de 54 bairros da cidade. O Rei fascinou personalidades pelo mundo, e isso foi o que marcou o gênio do ídolo. Parece que poderia fazer o que quisesse, em qualquer arte ou atividade, que teria seu pedestal reservado. Quando ainda jogava, defendendo o Brasil, tinha cada gol festejado, celebrado, abrindo-se aos festejos de sua equipe e deixando a plateia, o time rival e o mundo inteiro boquiaberto. Era o “estado da arte” do jogo da pelota controlada com os pés – o “foot-ball” -, arte criada pelos britânicos. Já estamos em estágio mais avançado da Copa do Qatar, sabendo que os olhos de Pelé, de seu quarto no hospital, torcem com o mesmo vigor pela nossa esquadra: “Deus salve nosso gracioso rei / vida longa ao nosso nobre rei / Deus salve o rei! / (...) longamente para nos reinar / Deus salve o Rei!” E que demore muito ainda para ouvirmos ecoar os versos da substituição de Pelé, mesmo porque não haverá alguém à altura.


O
cineasta Pier Paolo Pasolini levara Pelé ao campo da arte, assinando “No momento em que a bola lhe chega aos pés, o futebol se transforma em poesia”, enquanto pela poesia disse Carlos Drummond de Andrade: “O difícil e extraordinário não é fazer mil gols, como Pelé, mas fazer um gol como Pelé”. Para rir: “Meu nome é Ronald Regan, sou o presidente dos Estados Unidos, mas você não precisa se apresentar, todo mundo sabe quem é o Pelé”.




sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

RICHARLISON, NOMES E SOBRENOMES


A
República Sérvia é um país recentemente consolidado na Europa. Um acordo assinado em nov/1995 entre os EUA e Milosevic’, ratificado em Paris em dez/1995, previa a manutenção da Bósnia-Herzegovina como Estado muçulmano-croata, com 51% do território, e outro, Bósnia-Sérvia, com os demais 49%. Impedido de se candidatar, em 1997, Milosevic’ lança e elege Milutinovic’ presidente da Sérvia. O centro passa a ser Belgrado, em plena região balcânica, antiga capital da Iugoslávia. É um país que foi atolado por guerras e agora é cercado por nada menos do que oito nações: Albânia, Bósnia-Herzegovina, Bulgária, Croácia, Hungria, Macedônia do Norte, Montenegro e Romênia. Milosevic’ também invadiu Kosovo (1998), contra o KLA (Exército de Libertação de Kosovo).

Fu Hsi

E
ssas divisões surgiram de conflitos sob a intervenção dos EUA com um só pano de fundo: o óleo - ouro negro! -, o petróleo. Os violentos combates na região sudeste levaram o nome de Guerra dos Bálcãs. (Fonte: COGGIOLA, Osvaldo. “Imperialismo e Guerra na Iugoslávia – Radiografia do conflito nos Bálcãs”. SP: Ed. Xamã, 1999). Numa profusão de idiomas, dialetos, raças e culturas, a Sérvia herdou da Iugoslávia, ouro nas olimpíadas de 1960, campeão mundial Sub-20 de 1987 e diversas semifinais em Copas do Mundo, o tino pelo bom futebol. Entre os escalados para 2022, Mitrovic’, Mladenovic’, Pavlovic’, Erakovic’, Milenkovic’, Zovkovic’. (A essa altura, o leitor deve estar pensando no porquê de quase todos os nomes terminarem com vic’ - com um acento agudo no c’, em sérvio-latino. A pronúncia é bem próxima à do russo vich”, significando “filho de”: Rostropovich, Maierovich, Ivanovich. Bem lá atrás, os hebreus (Livro dos Números, 4º livro do Torá) usavam indicação própria de filiação, uma vez que ainda não haviam sido criados os sobrenomes:  De Rubem, Elisur, filho de Sedem. (Os sobrenomes vieram com Fu Hsi, Imperador chinês, em 2.850 a.C., que determinou que os nomes completos deveriam conter um apelido de geração, um prenome e o nome de família extraído do poema “Po-Chia-Hsing”). Na Escócia, do gaélico, usa-se Mac antes do nome familiar, origem de MacDonald e MacCartney. Em inglês, é comum o patronímico “son”: George Harrison, Jim Morrison, filhos de Harris e Morris, que se tornaram sobrenomes.

Mikhail Barishnikov

O
nosso Richarlison – cujo son no nome é só charme de batismo -, artilheiro da partida da Seleção Brasileira contra a Sérvia, no dia 24/11, trouxe um conceito de atleta exemplar. Além de salto e bicicleta dignos de um grand jeté do bailarino russo Mikhail Barishnikov, cena já perenizada, marcou outra diferença. Houve destaque ao gol esplendoroso, mas o inglês The Guardian optou pela chamada: “Richarlison é louvado como ‘o ídolo que os brasileiros merecem’, depois da era Bolsonaro” (25/11). E mais:
"Artilheiro contra a Sérvia na Copa do Mundo está sendo celebrado como muito mais do que um herói do esporte". Até os britânicos viram um diferencial naquele jogador despojado, camarada, tímido, até, que traz, além de suas obras assistenciais, uma faceta ausente em nossos atletas milhardários. Adepto de rápidos discursos e falas, low profile, simples, ele passa o recado: "É um direito básico ter comida na mesa, saúde, educação e moradia. Eu me posiciono e mostro a minha indignação pelo mínimo de dignidade e igualdade para todos os brasileiros que não tiveram a mesma sorte que eu". Bastou para ofuscar um colega adepto da ostentação, que amargou 11 minutos em jogo com o tornozelo lesionado - apesar de comprometido fisicamente não quis se desfazer de seu brilho, sua realeza.


C
laro, falo do Neymar. Enquanto Richarlison o abraçava fortemente, os braços do mogiano se largavam, inertes, numa falta de retribuição que doeria até coração de criança. Quantas vezes não presenciei isso em minha vida? Um músico por perder uma vaga que lhe era tida como certa, um tombo para quem se acha um eterno vencedor? O futebol é um jogo de equipe, e como toda prática coletiva não deve nem pode ser uma briga de foice. (Ninguém quer desprezar a enorme contribuição de Neymar, um gênio, ao nosso futebol. Nem condenar sua opção como eleitor, isso faz parte da democracia). E o que mais impressiona em Richarlison é sua fala, a solidariedade aos que foram seus companheiros desde Nova Venécia, cidade capixaba de 50 mil habitantes: todos seus irmãos de coração, palavras que torna extensivas ao povo brasileiro.


V
oltando aos sobrenomes, à fala de Richarlison, que por acaso tem de família de Andrade, lembrando os milhões de pobres do país, como o deserdado de João Cabral, em seu personagem Severino, sem sobrenome, mal uma origem: “O meu nome é Severino, não tenho outro de pia. (...) Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria; como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias. Mas isso ainda diz pouco: há muitos na freguesia, por causa de um coronel que se chamou Zacarias e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria. Como então dizer quem falo ora a Vossas Senhorias? Vejamos: é o Severino da Maria do Zacarias, lá da serra da Costela, limites da Paraíba”. “Mas isso ainda diz pouco: se ao menos mais cinco havia com nome de Severino, filhos de tantas Marias mulheres de outros tantos, já finados, Zacarias, vivendo na mesma serra magra e ossuda em que eu vivia”.


Richarlison Maravilha, nós gostamos de você / Richarlison Maravilha, faz mais um gol pra gente ver!



sexta-feira, 25 de novembro de 2022

SERÁ QUE EU ESTOU FALANDO GREGO?

 


F
rase que o professor dos velhos tempos gritava quando percebia que a turma do colégio, com cara de paisagem, compreendia mal ou entendia lhufas do que ele estava expondo. Levando essas rachadas, hoje politicamente incorretas, aprendia-se, estudava-se muito para não se fazer de tonto ou ignorante em classe. O grego era um idioma tão distante que não dava para entender nada, os alunos não sabiam a dimensão do idioma e da cultura grega, que estão em tudo, alma de uma civilização. Agora, tantos anos depois – agora que sabemos! -, vale buscar o sentido de muitas palavras em suas raízes etimológicas (opa, olha aí, do grego etymologia, origem e formação das palavras). Pois não é que hoje dei de pensar em palavras de origem grega que bem definem nossas vidas, nosso psicológico, nossos sentimentos e até mesmo certas situações? E elas se tornam icônicas (do grego eikónos), até.


M
eme é palavra que pegamos emprestada do inglês, e vem a significar “elemento de uma cultura ou sistema de comportamento, passado de um indivíduo para outro por imitação” (Oxford). E não é que em inglês a palavra vem do grego mimema, significando ‘imitado’, e o conceito foi introduzido pelo revolucionário biólogo inglês Richard Dawkins em 1976 (Britannica)? Pois a vida em sociedade tem muito disso, só que há que se distinguir entre o que é cultural, parte de nossas tradições, e o que é uma espécie de mimese, imitação. Não por acaso veio à lembrança um conto do livro A Inglesa Deslumbrada, do ‘tio’ Fernando Sabino, em que ele relata uma conversa fiada e meio vazia em pleno voo Londres-Rio com uma inglesinha, sua companheira de viagem. Na falta de assunto, vez de ela perguntar: “é verdade que no Brasil existe o costume de se andar nu?” Sabino, ironicamente, respondeu algo como “sim, uns por tradição e outros por não terem o que vestir”. É isso: anda-se pelado por tradição de uma sociedade em particular, no caso a dos indígenas – certamente a origem da curiosidade da inglesinha -, ou por não ter dinheiro. Uma troça bem ao estilo do Sabino.


D
o grego, mimese – “imitação ou representação da realidade” é o que acontece quando quero – ou queremos - copiar, se aplicarmos o conceito a pessoas. Mary Quant criou, na Londres dos anos 1960, uma saia tão curta que deram de chamar-lhe mini, minissaia (e depois, claro, a microssaia). “Pegou lá, pegou aqui”, assim como as calças boca de sino ou de cós baixo, modelo Saint-Tropez, nome do lindo balneário no sul da França que ditava o dernier cri – a última moda. O escritor português José Saramago, autor de Ensaio Sobre a Cegueira, Nobel de 1998 e comunista de carteirinha, disse: “O heroico de um ser humano é não pertencer a um rebanho”. Faz sentido, mas ele mesmo tinha de andar de calça e camisa social por costume de gerações ou por convenções de Portugal, um país ocidental como o nosso. De fardão, como se usa na coirmã brasileira, a ABL, ou terno, em situações formais, cá e lá.

Culto de Jim Jones na Guiana (anos 1970)

I
mportantíssima é a catarse (do grego khártasis), que é o “processo de libertação ou purgação da alma e do corpo (...), estranho à essência ou à natureza de um indivíduo” (Michaelis), bastante comum no meio artístico. Vimos uma imensa catarse no Festival de Woodstock, tipo de evento em que os participantes, coletivamente, entregam-se à libertação ou purgação da alma e do corpo. Até grupos como os dos fanáticos seguidores do norte-americano Jim Jones, que em sublimação extrema de catarse coletiva foram levados ao suicídio em massa na Guiana, em 1978.


E
m uma manifestação política recente, um homem, vestido de verde e amarelo, subiu no para-choque da frente de um caminhão, como se tivesse sido atropelado, e pegou uma breve carona com os braços abertos, segurando-se nos limpadores de para-brisas. Teve seus gloriosos 15 minutos de fama, como preconizava nos anos 1960 o ícone (de eikón!) da arte pop Andy Warhol - mesmo que uma fama anônima, se é que é possível.  A cena, gravada em vídeo, viralizou até alcançar o exterior. Foi uma catarse particular, exibicionista.


M
as o recente show do manifestante não foi tão original como parece. Fez uma mimese bem-comportada de outro fato acontecido há oito anos, em novembro de 2014, e reproduzido nas mídias como se ele, sim, fosse uma imitação do manifestante de 2022. Explico: uma mulher para lá de pós-balzaquiana despiu-se na rua até a última peça, para surpresa dos transeuntes nas calçadas de um lugar tranquilo de Goiânia (G1, 21/11/14). Com algum esforço, subiu no para-choque e agarrou os limpadores de para-brisa (tal qual veio a fazer seu meme caminhoneiro oito anos depois), e seguiu carona daquele jeito. Não tinha motivação política, seriam só os tais quinze minutos de fama (que não passaram de três), talvez vingança contra um marido traidor, ou simplesmente “deu tilt” e surtou? Então o manifestante de hoje, ator do meme do ano, pegou carona no gesto da goiana de ontem? Exato.


E
ntre mimeses e catarses, gregos e troianos, buscamos compreender pensamentos, fatos e palavras e o filtro real é sempre a etimologia. Em “Dicas de Português”, publicado no G1, é possível encontrar uma lista tão simples quanto curiosa de palavras vindas do grego, com as devidas explicações, como em verbetes. Por exemplo: antídoto, arquipélago, bíblia, cirurgia, cartomancia, dinossauro, eutanásia, heureca, sarcófago... E creia, até xerox, de kserós! Pois se você um dia ouvir “por acaso estou falando grego?”, diga que sim, pois ao menos em parte é verdade.

 

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

MEU NOME É GAL!


M
aria da Graça Costa Penna Burgos, nascida em 1945 em Salvador, era uma linda baianinha arretada, dona de rara voz, soprano “de nascença”, à vontade nos agudos e com um timbre sensual e inconfundível. Reinou durante décadas em shows e gravações agradando gregos, troianos e romanos. A baianidade era expressa nos gestos, nos balangandãs, no sotaque manhoso, no corpo ora meio que lânguido, ora pleno de energia. Era o modo dela ser: “baiana é aquela / que entra no samba de qualquer maneira / que mexe e remexe, dá nó nas cadeiras / deixando a moçada com água na boca” (samba do mineiro Geraldo Pereira, profundo conhecedor do que é ser baiano). A falsa baiana não faz nada disso: “não canta, não samba / não sabe deixar a mocidade louca”. Mais: Gal, autêntica soteropolitana, foi gestada com inspiração lírica: durante a gravidez, a mãe dela, Mariah, ouvia música clássica. Daí talvez a potência de sua voz, sem aquele “diminuendo” nos agudos para não “rachar”. Bom exemplo é a gravação de “Brasil”, do Cazuza: não havia instrumental que a derrubasse.


A
ssisti a alguns shows da Gal quando eu morava no Rio. Como fazia bem para os olhos e ouvidos! Um desses espetáculos marcou-me de forma especial - e ela andava, rodopiava, exalava sensualidade e “frever” (de onde o frevo) nordestino circulando no pequeno palco do Teatro Opinião, no andar de baixo do Teatro Thereza Rachel em um prédio comercial de Copacabana (frevo, aliás, é Festa do Interior, de 1982, de Moraes Moreira e Abel Silva, que Gal cantava como ninguém, com aquelas “emboladas” troca-línguas com jeito de solos de saxofone). Se o Thereza Rachel era maior, no Opinião ela dava seus giros bem perto da plateia, que se derramava e se esbaldava. Sempre trazia bons músicos, mas a presença dela imperava. Simples, morava em um prédio no Vidigal, bem perto da favela, e se sentia confortável ali.


M
udando de cenário, estamos nos anos 1970, na praia de Ipanema, mais ou menos na altura da rua Farme de Amoedo. Ali, a CEDAE mandou construir uma tubulação de diâmetro enorme para lançar os dejetos da região para bem longe da costa. O chamado “emissário submarino” foi construído nos anos 1970, e passou a despejar 6 mil litros de esgoto por segundo a quase 4 km da praia, sem ameaças à saúde da rapaziada – diziam.

Macalé e Gal, revisitando as dunas em 1997

C
hegando à beira da praia, o “emissário" soerguia-se na forma de um enorme areal, ponto de encontro – ainda não se dizia point – da juventude negra e dourada. Circulavam por aquelas dunas Monique Evans, Chacal, Glauber, Evandro Mesquita, Regina Casé, Caetano, Fernando Gabeira... O Brasil se socializava por ali, era um lugar onde tudo se podia, desde que discretamente: dos topless aos cigarrinhos malcheirosos que faziam a letargia da tietagem. Ah, caipirinha de limão, cerveja,  espetinhos de camarão, biscoitos Globo de polvilho e o “mate para viver” com torneirinha a tiracolo do coitado do vendedor, davam o tom do lugar. Segundo o cantor Jards Macalé, sobre o território livre inaugurado pela Gal, “eles sabiam, vigiavam aquilo, mas deixavam como válvula de escape” (“eles” eram as forças da repressão).

Gal nas dunas, com o "Petit"

L
á pelas tantas surgia a “dona” do pedaço, adorada, reverenciada, merecedora de todas as torções de pescoço masculinas e femininas: Gal Costa, rainha de suas dunas, daí as “Dunas da Gal”. Tão comum essa referência ao lugar quanto ao Jardim Botânico e à Pedra do Arpoador, era uma obra feita para despejar o esgoto bem longe. No dia 9 de novembro de 2022, Gal deixou sua canga fictícia sobre dunas imaginárias, e foi molhar-se na água salgada para não mais voltar. Talvez tenha ido encontrar-se com sua Iemanjá, Orixá dos rios e lagos nas origens nigerianas, e entre nós rainha do mar. Água trouxe, água levou. Não fazem mais sentido aquelas dunas que foram uma bolha da intelectualidade carioca, da juventude sadia, dos cantores, instrumentistas, escritores, pintores, cartunistas, cineastas, artistas de cinema e TV, enfim, a "fauna” da intelligentsia. Lá, tudo se podia, ou assim se pensava, enquanto até de cima dos prédios agentes fiscalizavam de binóculos em riste – melhor vê-los aglomerados na praia do que organizando movimentos, deviam pensar os homens da ditadura.

Com Gil, em Londres

G
al sabia dos lamentos, como em “rasgue a camisa e enxugue meu pranto” (Pérola Negra, de Luiz Melodia), de imaginar celestialmente, como em “while my eyes / go looking for flying saucers / in the sky” (“enquanto meus olhos / procuram por discos voadores / no céu”) - em London, London, de Caetano, a quem ela conheceu em 1963, uma amizade profunda e para sempre. Tinha aquela voz de timbre “divino, maravilhoso”, título de outro sucesso de Caetano que se tornou capa-título de um de seus discos. Uma voz feminina, Calíope, musa filha de Zeus, com toda a feminilidade, Gal era assumidamente bissexual. Não conseguia engravidar, e deixou entre suas paixões a atriz Lúcia Veríssimo e a cantora Marina Lima. Em 1998, casou-se com a empresária Wilma Petrillo. Aos 60, adotou uma criança, hoje com 17 anos, que não por acaso batizou com o nome do anjo da anunciação, Gabriel.


G
al também foi Maria da Graça, Gracinha, Gau – o nome com “l” não tinha a simpatia de Caetano, que havia sido preso, lembrava-lhe a abreviatura de general, mas teve de engoli-lo porque a estrela sabia ser tinhosa. Mãos dadas na “passeata dos cem mil”, mesmo com aquela aparente fragilidade era uma lutadora, como quando cantava “Divino, Maravilhoso”: “é preciso estar atento e forte / não temos tempo de temer a morte”. Gal não morreu.


sexta-feira, 11 de novembro de 2022

EUA, RU, BR: SOPA DE LETRAS E NÚMEROS

 


Há dois anos, em 5 de novembro de 2020, Joe Biden ultrapassava Donald Trump na corrida presidencial americana por 2,4% dos votos dos colégios eleitorais, sendo 50,5% para o democrata e 48,1% para o rival, aos 86% dos votos totais apurados. Boa parte dos estados do centro-norte, centro e sul, de Montana ao Texas e Florida, registravam sua preferência por Trump, enquanto as costas leste (do Maine a Virginia) e oeste (Washington a New Mexico) formavam posição a favor de Biden. Claro, há motivos históricos e tradições a ligarem certas regiões primordialmente aos republicanos ou aos democratas. Porém, ainda havia dúvidas quanto aos estados de Nevada (89% dos votos apurados), a esperançosa Arizona (86%), Philadelphia (96%), Carolina do Norte (95%), e a controversa Georgia (98%).


Biden recebeu mais de 81 milhões de votos, ultrapassando o recordista Barak Obama (2008), com 69,5 mi, que por sua vez havia superado Richard Nixon (1968), com 31,7 mi. Por fim, terminado o pleito sob protestos inconformados de Trump, Biden acumulou 51,3% contra 46,8%, número razoavelmente compatível com o de votos diretos dos eleitores: mais de 81 milhões de votos para Biden, e pouco além de 74 mi para Trump. Uma diferença de 7.059.526 votos, cifra numericamente um pouco negligenciável frente ao total de eleitores, mas obviamente pequena em uma população de 332.403.650 habitantes – entre os que votaram ou não, pessoas de todas as idades. A diferença total de votos entre Biden e Trump, de mais de 7 milhões, corresponde à população (eleitores ou não) do estado de Arizona, ou ainda à soma do Alaska, D. C., Delaware, North Dakota, South Dakota, Vermont e Wyoming – os sete juntos!


Voltando à eleição que levou Biden ao poder, em 2020, Trump forçou uma contestação sem limites ao resultado das urnas. Foi cruel e vilipendioso, acusou, disparou aleatoriamente sua metralhadora giratória, ameaçou e agitou a nova extrema-direita supremacista norte-americana, cujas origens remontam à terrível Ku Klux Klan, organização semiclandestina tolerada especialmente nos estados do sul, além dos mais recentes Proud Boys. A direita, e especialmente a extrema-direita, estavam inconformadas, seus militantes transbordando em ódio. No dia 6 de janeiro de 2021, duas semanas antes da posse, uma horda de alucinados invadiu o Capitólio, quebrou portas e janelas e só foi retirada do prédio após vários conflitos com as forças de segurança e a polícia. Sabiam que não tinham chance alguma - aliás, nem sabiam o que queriam, além de uma baderna sem controle que chegou a balançar a inquebrantável democracia americana.


Esgotadas as ações ilegais, dispersado o movimento, Biden tomou posse no dia 20 com uma pompa digna dos maiores festejos cívicos americanos, brindada com uma interpretação de The Star Spangled Banner (“A Bandeira Constelada de Estrelas”), o hino pátrio, por Lady Gaga. Trump se recolheu, mas coleciona processos que incluem acusações de ter liderado de fora a farra extremista pró-golpe do dia 6. Agora, no dia 8/11, com as eleições legislativas reativamente favoráveis aos republicanos, ele deverá assumir sua pré-candidatura com vistas ao pleito de 2024. Bilionário e grande líder, o republicano tem cacife para voltar à Presidência, com o rancor, ódio e revanchismo que lhe são característicos.

Rishi Sunak

No Reino Unido, em 25 de outubro, o Partido Conservador escolheu o jovem primeiro-ministro que responde pelo nome de Rishi Sunak, aos 42 anos.  Filho de indianos que, como tantos, imigraram para a Grã-Bretanha em 1960, Rishi tomou posse após 45 dias de uma gestão tensa e desastrosa de Liz Truss, que sucedeu Boris Johnson, um premiê mais confuso ainda, derrubado pelo partygate – uma festinha na residência oficial da Downing Street com danças, excessos e muita bebida. Nada de tão bombástico se não estivesse em pleno lockdown decretado por ele próprio durante a pandemia! Para os britânicos, um deslize imperdoável. Em consequência de sua ampla votação como parlamentar, Sunak conseguiu chegar à liderança do partido Conservador no poder, e consequentemente por estreita margem à posição de primeiro-ministro, com a desistência de rivais internos. Entre os Conservadores, que haviam se tornado os titulares do governo, foi ele quem mais se destacou – e levou.


30 de outubro de 2022. O Brasil elegeu Luiz Inácio Lula da Silva, vencendo o oponente Jair Messias Bolsonaro por uma margem - tal qual Biden nos EUA - tida como estreita de votos. No Brasil, a eleição para presidente é direta desde a CF de 1988, valendo pela primeira vez em 1989, 24 anos após o golpe de 64, eleito Fernando Collor de Mello. No recente dia 30/10, foram 118.552.353 votos válidos, dos quais 50,9% (60.345.999 votos) ficaram com Lula e 49,1% (58.206.354) com Bolsonaro. Uma diferença de 1,8%, ou 2.139.645 votos, próximo ao número total de eleitores aptos do Distrito Federal e quase a soma dos estados do Acre, Amapá, Roraima e Tocantins.

Rodésia, 1977

EUA, Brasil e Reino Unido elegeram seus mandatários por margem estreita de votos. São três democracias, mas as diferenças entre os dois primeiros já não são tão grandes; os EUA escolhem via colégios eleitorais, no Brasil o sistema é o chamado one man, one vote (um homem, um voto). A eleição se dá por maioria simples, ou seja, número de votos maior do que a metade.

A vitória que mais importa é da democracia. Poder que, de uma forma ou de outra, emana do povo, e é exercido pelo povo e para o povo. Assim foi, assim será.



 

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

FOI BONITA A FESTA, HORA DE TECER A MANHÃ

 


P
assada a ressaca da eleição, valem algumas considerações. Em primeiro lugar, venceu a Nação, pela tranquilidade com que o pleito se realizou, levando em conta as nossas dimensões continentais, polarizadas entre dois blocos, cindindo a população. O lado negativo fica por conta da ocupação de estradas não por motivos salariais e afins - que poderiam justificar uma greve dentro do que a lei permite, liberando parte da rodovia para não prejudicar os que precisam passar, como famílias e cargas especiais. Outro dado negativo foi a atuação ostensiva da PRF em estradas nacionais, principalmente do Nordeste, segundo se informou uma ‘operação padrão’ para o controle das rodovias. Felizmente, nada mais aconteceu, e, segundo do presidente do TSE, Alexandre de Moraes, no cômputo geral os passageiros continuaram as viagens após as operações, podendo exercer o seu direito de votar.


S
obrepujando esses inconvenientes, a caminho das urnas com o objetivo de escolher os governantes dos estados ainda não eleitos e, principalmente, o dirigente máximo da Nação, aflorava o orgulho de sermos brasileiros. Com apenas uma ou duas escolhas no teclado eletrônico, sem os atrasos creditados à estreia do registro biométrico, a votação transcorreu sem maiores problemas. A população compareceu e saiu com a altivez cívica do dever cumprido, escolhendo um futuro com mudanças – afinal, não é este um dos pilares da democracia, a alternância? E quem sabe não será essa a ocasião para que, já no início da próxima gestão, possamos retornar via PEC ao mandato único de cinco anos, conforme fixado anteriormente pela CF de 1988? A Emenda Constitucional 16/97 transformou o segundo mandato, ou ao menos seu ano final, em campanha para reeleição: prejuízos ao Tesouro e à normalidade do país. A reeleição, suas virtudes, vícios e vicissitudes devem ser reavaliados, e isso já se evidencia de há muito. Trata-se de assunto para o nosso Legislativo - para isso elegemos nossos representantes -, cabendo à sociedade civil exercer o legítimo direito de pressão e cobrança.

Av. Paulista

S
im, “foi bonita a festa, pá”, lembrando o Chico, a Paulista com 700 mil pessoas (segundo o The Guardian), a Cinelândia outro tanto, mais capitais e muitas cidades pelo país. O presidente eleito, aos 77, com problemas de impostação vocal, terminou seu discurso após longas, e por várias vezes dispensáveis pela longueur, apresentações de apoiadores. (Lembrou o cantor Jorge Ben, em apresentação de Charles, Anjo 45, no IV FIC: “tô rouco, Charles, tô rouco!”). Surpreendente, também, a estamina popular, gente de todas as idades, para resistir horas de pé. Sim, “foi bonita a festa, pá”, mas desde agora há de se encarar o batente: É de bom-tom o presidente eleito visitar alguns dos principais líderes mundiais – e foram 88, até 1/11! - que lhe mandaram cumprimentos, como Joe Biden (EUA), Emmanuel Macron (França), Rishi Sunak (Reino Unido), Joseph Borrel (União Europeia), Pedro Sánchez (Espanha), Antônio Costa (Portugal), XI Jinping (China), países do Mercosul, América Latina e outros.


N
esse curto espaço de tempo, até a posse de fato do eleito, no primeiro dia do ano de 2023, há que se formar talvez não um consenso da base, mas ao menos uma direção na escolha de ministérios, constituição das pastas, organogramas, indicação dos chamados cargos de livre nomeação e exoneração, que esperamos de competência técnica antes de política. E saber preservar os melhores profissionais que porventura tenham ingressado na gestão anterior. Apaziguar, mais do que nunca, pois não faltam lutas insanas: há um conflito real na Ucrânia que mata inocentes e esfacela a economia mundial, criando uma inflação no Brasil temporariamente estancada a bíceps em alguns produtos, como a gasolina, e que acomete a maioria dos países, não raro como um turbilhão. É difícil o momento, sim, mas a festa acabou, pá, e é hora de começar a arrumar a casa com disposição e vigor.


H
á que se dialogar, para que os que divergem possam ter espaço para exprimir democraticamente suas opiniões e posições; há que se contemporizar, remover barreiras e juntar os cacos que porventura possam ter resultado de embates necessários, quando civilizados, ou excedentes, se à margem dos contornos delimitados pelo Estado de Direito. Há que se pensar urgente nos que mal têm um prato de comida por dia, nos que “têm fome e sede de justiça, porque serão saciados”; nos que não têm onde se abrigar, nos que estendem a mão ‘pelo amor de Deus’ para dar de comer aos seus filhos (o pelo amor de Deus da fé de cada um e mesmo dos incrédulos – voltando ao Chico, “e eu que não creio peço a Deus por minha gente, e é gente humilde, que vontade de chorar”).

Paz para o novo ano que se aproxima! Que os desejos mais profundos, libertos ou ainda represados nos corações e mentes sejam contemplados; que os homens caminhem para o destino que lhes foi traçado nas origens, que é o da fraternidade e do amor; que a vitória seja não mais do que o momento de uma disputa, e que junto a ela derrota perca o sentido de conflito - palavras cujos significados existirão de fato em nossa história. Que a paz e o direito à opinião sejam a imensa bandeira de todos, preservadas as divergências de onde emergem as soluções. Pensando agora em João Cabral, que seja uma imensa flâmula branca imaginária “se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação”.