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sexta-feira, 27 de julho de 2012

I - NO PLANALTO, COM A IMPRENSA: a criação do cargo de secretário de imprensa, depois porta-voz.


"No Planalto, com a Imprensa"
Com organização capitaneada por André Singer, ex-Porta-voz de Lula, a caixa que leva o título acima traz dois livros muito importantes sobre a criação e os ocupantes do cargo de Secretário de Imprensa (depois Porta-voz) da Presidência da República. Meu interesse pessoal no assunto reside no fato de que foi meu pai, o escritor Autran Dourado, um jovem de apenas 30 anos a serviço do Gabinete no Palácio do Catete, quem seduziu o Presidente Juscelino Kubitschek a criar o cargo. Logo, foi nomeado talvez graças a duas virtudes, além da perspicácia: a literatura e a taquigrafia. Uma carreira rápida no mundo político, mas com certa relevância no cenário republicano.
Eisenhower confabula com seu Secretário Hagerty
O livro publicado pela Fundação Joaquim Nabuco apresenta meu pai como o “decano” dos Secretários de Imprensa. Sem conseguir precisar a data, Singer aponta 1958 como ano provável da criação do cargo, logo após uma visita de Eisenhower ao Brasil, trazendo a tiracolo Jim Hagerty, seu Secretário de Imprensa. Vaidoso, JK apaixonou-se pela ideia. Meio avesso a jornalistas, o Presidente recebia apenas um ou outro por semana, aprovados a dedo por meu pai, e feliz por ter um Assessor de Imprensa, como o estadista norte-americano. 

II - NO PLANALTO, COM A IMPRENSA: posse e turbulências do governo JK.


JK e Lott: garantia de posse em uniforme de gala
Juscelino tomou posse em 1956 sob ameaças de todos os lados, dos lacerdistas a certas alas das Forças Armadas, e sobreviveu graças ao prestígio militar do Marechal Lott. Fora a insegurança da posse, duas grandes revoltas, em Aragarças e Jacareanga, sacudiram o Governo. JK tinha ojeriza a coletivas, por experiência própria, uma vez que uma pergunta aparentemente normal, mas cheia de veneno, poderia colocar o país de orelha em pé. Eis uma: “Presidente, haverá reforma ministerial?” Feita assim mesmo, surgida do nada. No dia seguinte, a começar pelos 27 jornais da Capital, começariam especulações maldosas e golpistas (sim, o Rio de Janeiro tinha na época meia dúzia de jornais diários, como o JB, O Globo, O Dia, Notícias Populares e Última hora, um outro tanto de semanários e pasquins diversos).
JK em concorrido discurso
JK cercou-se de escritores – todos mineiros, claro. Eram eles a eminência parda, o poeta Augusto Frederico Schmidt (mesmo sem cargo), Álvaro Lins, escritor e chefe da Casa Civil, Cristiano Martins, também literato e secretário particular, além de meu pai, entre outros. 


JK, Autran Dourado e o poeta Augusto Frederico Schmidt
O modus operandi era simples: para coisas bombásticas, grandiosas, escrevia o Schmidt (com eventuais podas de meu pai em trechos extravagantes). Para um texto coeso, preciso, direto, escrevia meu pai, e para páginas belíssimas que tinham o condão de não dizer absolutamente nada, o mestre era Cristiano Martins. Também foi arte de meu pai um papelzinho enfiado no bolso de JK durante um grande comício, bilhete que o Presidente transformou em um brado que levantou a multidão e tornou-se histórico: “Deus poupou-me o sentimento do medo!”.

III - NO PLANALTO, COM A IMPRENSA: a ‘ópera bufa’ do infarto não anunciado.

O  primeiro Secretário de Imprensa, Autran Dourado

JK tinha lá suas mazelas com certos jornalistas, mas a nomeação de meu pai como Secretário de Imprensa da República arrefeceu-lhes os ânimos. Antes de ser Secretário, além de escritor, meu pai trabalhou em “O Estado de Minas”, o que lhe rendeu conhecimentos no mundo da imprensa. JK o incumbiu de filtrar as entrevistas semanais, realizando as eventuais coletivas apenas para anúncios de grandes realizações, além das costumeiras aparições públicas com os famosos acenos de mão, seja no carro, na janela ou na escada uma aeronave. 
Pois foi exatamente um helicóptero um dos personagens mais importantes dos anos JK: o Presidente fora acometido de um infarto, e em nome da segurança nacional foi preciso mantê-lo na cama em segredo. Os dias se passavam, e a imprensa desconfiava de que algo acontecia, até começarem a cobrar uma palavra do Chefe da Nação. A assessoria de confiança, reunida, chegou a uma solução no mínimo exótica.
Primeiro ato:
Assinatura de JK: imitável?
Geraldo Carneiro, escritor e também secretário particular de JK, imitava letra e assinatura do Presidente (claro, com carta branca dele) em documentos e comunicados. E o fazia com perfeição: atos de governo, decretos, nomeações, mensagens ao povo e ao Congresso e tudo mais. (Essas histórias, aliás, já são públicas – estão no livro – e o “crime” das assinaturas prescreveu nos anos 1970). Foi um risco pela estabilidade da democracia! (O tempo haverá de fazer a história do país ser contada não como os livros escolares a pintam, mas como realmente foi). A ópera-bufa do infarto foi ensaiada em sigilo com Dona Sarah, primeira dama, e provavelmente com Lott. Verdadeira estratégia de guerra. 

IV - NO PLANALTO, COM A IMPRENSA: a salvação - um passeio de helicóptero com chapéu gelô.

Segundo ato:
JK e o aceno, com seu inseparável chapéu gelô
Com o mesmo tipo físico, terno escuro, o famoso chapéu “gelô” de JK, meu pai surgiu de longe para o batalhão de jornalistas, acenando à maneira do chefe até sumir de helicóptero. Acalmadas imprensa e caserna, JK, convalescendo, começou a fazer aqui e ali breves aparições.
O inflamado Carlos Lacerda
Segundo meu pai, em depoimento ao livro, “JK hoje é quase uma unanimidade. Mas na época não era. A imprensa não era crítica, ela fazia oposição”. A gestão foi conturbada, mas nem tanto quanto os arautos golpistas predisseram: Carlos Lacerda, udenista radical, havia sentenciado que “JK não será candidato; se for, não será eleito; se eleito, não tomará posse, e se tomar posse, cairá”. 

V - NO PLANALTO, COM A IMPRENSA: um quarto de fazenda em Batatal e a surpresa da descoberta: o “abatedouro” de JK.

Finale:
Casa sede do Hotel Fazenda em Batatal
Há uns 10 anos, seguindo o costume de reunir a família durante o carnaval, fomos para um hotel-fazenda muito aprazível, em Bananal (RJ). Fui o último a chegar, tarde da noite, com meus filhos mais novos, mas minha reserva havia sido liberada para outros hóspedes. “Mas não se preocupe, pois o senhor ficará no quarto da exposição”, disse-me o gerente. Não entendi nada, fui para o tal quarto e dormi como uma pedra. Acordei cedo e dei um passeio no casarão até chegar a uma sala em cujas paredes havia recordações, matérias de jornal e outras curiosidades.
Capa de Veja noticiando a morte de JK
Uma delas, de “O Globo”, fez-me arregalar os olhos imediatamente: em página inteira, sob o título “Ninho de amor de JK vira atração turística”, trazia um texto novelesco sob uma foto do quarto. Os mesmos móveis, tudo preservado até que JK, quando iria desviar-se de seu caminho para as Índias, digo, para São Paulo, e morreu na Via Dutra, vítima de um acidente a caminho de sua alcova preferida, onde iria ‘abater uma lebre’ na fazenda de um amigo - no caso, a esposa de certo deputado, um “affair” conhecido. (E eu fui hospedado no quarto daqueles encontros!).
Tendo lido parte do primeiro volume de “No Planalto”, e lembrando trechos do livro de meu pai, “Gaiola Aberta” (Ed. Rocco), lanço aqui um grão de areia a mais na história de um dos maiores ícones do país. Se cada um que sabe um pouco contasse um tico, poderíamos conhecer melhor a história do Brasil. Bravo, Singer!

sábado, 21 de julho de 2012

I - NAS VEREDAS DA CRIAÇÃO: a expiração de Bach.


Johann Sebastian Bach (1685-1750) foi um dos mais profícuos compositores de todos os tempos. Autor de centenas de obras como cantatas, suítes orquestrais e instrumentais, concertos para os mais diversos instrumentos, duas enormes “Paixões” (“Segundo Mateus” e “Segundo João”), fora o grande número de peças escritas por encomenda, como músicas de funerais. Para ele, “música é 10% inspiração e 90% expiração”. O que ele quis dizer com isso é que a inspiração” é o menor parceiro no trabalho diário de um autor. O mestre de Leipzig, com exagerada modéstia, dedicou sua obra a Deus, e disse que qualquer um que trabalhasse o que ele trabalhou obteria os mesmos resultados. Mesmo com sua rotina de mestre de capela, a criação e educação de 20 filhos, um deles o importantíssimo compositor Johann Christian Bach, da transição para o classicismo.
[Veja e ouça abaixo Kurt Ison, ao órgão, na suntuosa Sydney Town Hall, toda a grandiosidade e apelo ao Salvador de Bach na Toccata e Fuga em ré menor]

II – NAS VEREDAS DA CRIAÇÃO: a catarata criativa de Mozart.


Mozart (1756-1791) compunha com uma facilidade assustadora; carregava suas incontáveis fórmulas prontas na cabeça, e para qualquer tema que imaginasse criava rapidamente uma partitura impecável, sem rabiscos ou correções. A habilidade de Mozart causou a conhecida inveja de Salieri, seu professor, e mesmo Beethoven (1770-1827), cujo pai queria, como Leopold Mozart, fazer do filho máquina de fazer dinheiro, exibindo o virtuosismo desmedido do pequeno prodígio.
Beethoven, ao contrário de Mozart, compunha mais lentamente, demorava muito pensando, rabiscando e riscando. Ora, veja: dois dos grandes gênios da humanidade com métodos tão diferentes! Mozart, com seus múltiplos raciocínios semiprontos, laborados de forma genial e prodigiosa, chegou a escrever três sinfonias completas em apenas um verão.  Do outro lado Beethoven, de labuta calma e elaborada. 

III - NAS VEREDAS DA CRIAÇÃO: o trabalho de carpintaria.


Gráfico de NY Skyline, feito por Villa
Villa-Lobos (1887-1959) servia-se de tudo para criar.  O folclore, as novelas de rádio que ouvia enquanto compunha deitado no chão, os passeios pela música de Debussy e Ravel, o som do trenzinho do caipira, o choro, a silhueta de Manhattan (na obra “NY Skyline” – diagrama ao lado), a vida boêmia. Parece que as ideias lhe caíam como bolhas de sabão, ele brincando, a apanhá-las construindo mais uma peça. Camargo Guarnieri (1907-1993), o genial compositor tieteense da ópera “Pedro Malazarte”, escreveu suas centenas de composições com hora marcada, períodos em que a empregada interceptava, como fosse guarda-costas, os telefonemas e visitas inesperados.
Assim como meu pai, Autran Dourado (1926), que costumava passar algumas horas das manhãs em seu escritório de casa escrevendo metodicamente, antes de sair para o trabalho diário. Ele sempre disse que não acredita em inspiração, e sim em ideia súbita, aquela que lhe cai no colo sabe-se lá o porquê, e vai crescendo como uma pequena teia que ele vai tricotando na mente até chegar ao ponto ideal, o de lançar ideias em pequenos cartões (em taquigrafia espanhola, o método mais rápido de se escrever, diz ele). Depois, a rotina diária era fazer dessa trama já bem concebida um trabalho braçal, que ele chama de carpintaria. 

IV - NAS VEREDAS DA CRIAÇÃO: as pequenas obras de Webern e Caymmi e a preguiça de Rossini.


Anton Von Weber
O vienense Anton Von Webern (1877-1945), em seus 68 anos de vida, escreveu um total de obras que, juntas, somariam pouco mais de duas horas de audição, entre peças curtas para orquestra, canções e música de câmera. Em nossa MPB, Dorival Caymmi (1914-2008), baiano ilustre, em 94 anos de vida compôs apenas 70 canções lindas e extremamente simples e curtas, como “É doce morrer no mar...” ou “Marina, Marina morena, você se pintou...”
Dorival Caymmi
Só consigo imaginar Caymmi deitado na rede, água de coco ao lado, olhando o Farol da Barra e pegando no violão somente quando lhe desse na telha e a ideia lhe viesse pronta, melodia e letra fluindo entre a respiração das ondas do mar e seus dedos, tamborilando as cordas de um violão. O pequeno repertório, tanto em Webern quanto em Caymmi, não lhes diminuiu em nada a grandiosidade.
O italiano Rossini (1792-1868), que escreveu óperas divertidas como “O Barbeiro de Sevilha” (veja e ouça no vídeo abaixo, legendado), é o autor da célebre frase: “comer e amar, amar e beber, são os quatro atos da ópera de vida”. Preguiçoso, diz a lenda que costumava deitar-se, pena e tinteiro sobre o criado-mudo, e se punha a compor sem parar, prosseguindo até quando a preguiça já lhe havia possuído o corpo e passava a cochilar. Certa vez, deitado, deixou cair uma página da partitura; puxou o cordão amarrado na sineta que usava para chamar o criado e, não tendo sido atendido, enfezou-se mas não se levantou: pegou outra folha em branco e escreveu tudo novamente.

V - NAS VEREDAS DA CRIAÇÃO: música e literatura. A fluidez mozartiana de Villani-Côrtes e o trabalho braçal.

O que podemos concluir, no meio de todas essas diferenças no ofício de criar? Que talvez haja inspiração para os que acreditam nela, mercê, claro, do trabalho de artesão, que é o de organizar e bordar as ideias. A música clássica, até perto do final do século 19, calcava-se sobre a estrutura da apresentação do tema, contratema, desenvolvimento, recapitulação ou reexposição e final, conhecido pela palavra italiana ‘coda’ (cauda).
Um romance construído sobre as boas formas clássicas guarda sérias cumplicidades com a música: as ideias de tema, desenvolvimento, desfecho e fim estão sempre presentes. E as semelhanças não param aí: romance e sinfonia, capítulo e movimento, e dentro de cada um deles repetindo-se em escala menor quase a mesma forma da obra completa. Em ambas as artes, seja nas frases musicais ou nas do texto literário, há pontuações e acentuações, respirações, ritmos, sílabas e finalmente letras ou notas, vogais e consoantes.
Faço esta reflexão sobre minha prazerosa colaboração semanal com artigos para este espaço. Mas qual será o assunto? Às vezes ele me surge na frente, em outras flutuou em sonhos, ou surgiu de algum fato real ou imaginário, tanto faz. Na hora certa, sento-me e escrevo tudo de uma só vez, como o músico que improvisa uma peça em seu instrumento. A partir disso, desenvolvo e vou corrigindo, contornando e moldando o rascunho como fosse argila, para dar-lhe forma. Claro, há breves pesquisas de nomes, datas, pormenores. Trabalho braçal.
Fluidez de verdade tem nosso amigo octagenário Villani-Côrtes (1930): senta-se ao piano e pede a alguém que pronuncie seu nome completo, como Alice Magalhães Freitas da Silva Couto, por exemplo. Ele aproveita os sons e o ritmo das notas e das sílabas do nome, expondo-o como tema musical, que ao piano desenvolve, recapitula para afinal concluir. A maravilha de ouvi-lo fazer esta brincadeira é ver surgir no ar uma partitura extremamente complexa (que nunca foi escrita!) e vai-se perder no espaço após tocada a última nota. Uma vez proposta a ideia, a Villani basta desenvolvê-la livremente e pronto. Eu trabalhava metodicamente quando compunha, e continuo a fazê-lo quando escrevo meus textos. Portanto, modestamente, fico com meu pai e outros tantos, com as recorrentes “ideias súbitas” e muita, muita carpintaria.
[Veja e ouça, abaixo, “Canção de Carolina”, de Villani-Côrtes e Júlio Bellodi, com Villani ao piano e Efigênia Côrtes, soprano].

sábado, 14 de julho de 2012

I - NATUREZAS MORTAS: do barroco ao século 20.

Natureza morta de Salvador Dali

Não quero falar do belo gênero de pintura surgido no período barroco (séculos 17 e 18), das naturezas mortas ornadas de frutas de nosso Guignard, das naturezas de cores vivas de Cézanne, nas detalhistas de Monet e nas sombrias de Van Gogh, e nem nas naturezas em caleidoscópio de Picasso ou das alucinadas de Salvador Dali. As naturezas mortas na pintura representam objetos inanimados: frutas, pães, vaso de flores, mesa, panos, cadeira, livro, uma visão absolutamente estática (e por isso mesmo morta) de um mundo do qual o ser humano só faz parte do lado de fora, observando uma obra que pode ser linda, mas não tem vida – ela apenas expõe coisas e objetos, sem histórias a contar ou a sugerir. 
Rio Tietê, Sâo Paulo
Quero falar da natureza que estamos matando, dos rios onde flutuam lixo, espuma tóxica e garrafas ‘pet’; do solo contaminado, das latas de alumínio, das embalagens plásticas. (A abolição das sacolinhas dos supermercados é um perigo milhares de vezes menor do que o de o volume de plástico que despejamos nas ruas, nas praias, nos campos, nos rios e no ar).
Quero falar das chaminés que resistem ao tempo, dos dejetos industriais, das queimadas, da cultura extrativista de nossas florestas, da quase extinção do pau-brasil, do aborto legal e aparentemente (ao menos em parte) bem-sucedido do extermínio de nossas florestas de mogno nativo. 


E das motosserras, dos tratores, da violência do homem que flagela sua própria mãe, a natureza. 

II - NATUREZAS MORTAS : na MPB e na parceria Vinicius/Bach.


“Eu vejo esses peixes e vou de coração / eu vejo essas matas e vou de coração / à natureza...”, cantou Milton Nascimento em seu “Milagre dos Peixes” – milagre em que ele, que ama seus amigos, vê esses peixes e os dá de coração. Vai, voa, “Sabiá”! Lamenta a canção de exílio composta por Jobim e Chico: “... vou deitar à sombra de uma palmeira / que já não há / colher a flor / que já não dá...”. É de Chico também “Passaredo”: “Ei pintassilgo, oi pintarroxo, melro, uirapuru / Ai, chega e vira / engole-vento, saíra e inhambu / foge asa branca, vai, patativa.../ o homem vem aí”, alertando as criancinhas aladas, os passarinhos, para o perigo iminente do avanço do bicho-homem predador. A dupla Sá e Guarabyra, na bela “Sobracinho”, já alertava: “O homem chega e já desfaz a natureza / tira gente, põe represa / (...) dá no coração / o medo que algum dia / o mar também vire sertão”.
Vinicius de Morais
Flertando com os clássicos, Vinicius de Morais criou um poema muito feliz, “Rancho das Flores”, sobre a Cantata 147 de Bach, uma letra perfeita que apenas raríssimos poetas no mundo conseguiriam fazer para músicas já eternizadas: “Entre as prendas com que a natureza / alegrou este mundo onde há tanta tristeza / a beleza das flores realça em primeiro lugar/ é o milagre do aroma florido /  mais lindo que todas as graças do céu / e até mesmo do mar...”. 
A singeleza da letra entoada com a melodia, casamento da simplicidade poética de Vinicius com a complexidade da obra de Bach, coral cujas quatro vozes foram bordadas com independência e harmonia incomparáveis. Parceria entre séculos que revela a enorme sabedoria do mestre de Leipzig e a eterna juventude do carioca (“que não seja eterna posto que chama, mas que seja infinita enquanto dure” diria o “Poetinha”, Vinicius).
Um momento de rara felicidade poética ao unir as flores da natureza à melodia do coral “Jesus, Alegria dos Homens” ("Jesus, bleibet meine Freude"). É o enlace perfeito entre a travessa moderna poesia brasileira e uma obra religiosa alemã composta perto de três séculos antes.

III - NATUREZAS MORTAS : da “Floresta” de Villa-Lobos à “Pastoral” de Beethoven.

Floresta amazônica
E já que falamos nos clássicos, temos que lembrar Villa-Lobos com sua “Floresta do Amazonas” (1958), linda suíte do compositor que surgiu a partir da música que escrevera para o filme “Green Mansions” (título brasileiro: “A Flor que não Morreu”), estrelado por Audrey Hepburn e Anthony Perkins. A suíte de Villa foi gravada pela primeira vez em 1959, na voz da nossa grande dama do canto lírico, Bidu Sayão, falecida em 1999. Já “Uirapuru” é uma composição de Villa sobre a lenda do mais lindo pássaro da floresta, cantor das melodias mais sedutoras, entoadas nas mais altas copas das árvores, com direito à conquista de uma bela índia – cujo amor transforma o Uirapuru em garboso cacique (como não deveria deixar de ser).
Bosque de Viena
Beethoven (1770-1827) levou para o campo sua sexta Sinfonia, a linda “Pastoral”, que sugere claramente os sons da natureza (apesar de o compositor afirmar que a obra não era um ‘quadro’). O “Prelúdio à Tarde de um Fauno”, de Debussy (1682-1918), baseia-se no poema homônimo de Mallarmé, e ilustra um fauno errando desvairado pelos bosques, entre flores e árvores de beleza paradisíaca, sob o perfume da mais juvenil sensualidade. O fauno tenta, em vão, seduzir as ninfas nos caminhos e descaminhos do bosque. Já Johann Strauss (1825-1899) fez de sua “Contos dos Bosques de Viena” um convite à dança, plena de valsas alegres e cativantes inspiradas no Ländler austríaco, uma antiga dança campestre de casais. 

IV - NATUREZAS MORTAS : o futuro incerto e a necessidade de aprendermos a respeitar a natureza ainda viva desde já.

Da natureza depende o futuro do planeta e de nossa civilização. Se já começamos a ser duramente castigados de uns tempos para cá pelos maus-tratos que a ela impusemos por longos séculos, é natural que daqui para frente as consequências serão cada vez mais devastadoras e de proporções imprevisíveis. É urgente aprendermos a cuidar de nossas matas, nossos animais, nossas madeiras, nosso lixo, nosso ar, nossos mares, lagos e rios.
Caso contrário, um dia seremos apenas uma moldura inanimada, sem vida, de uma natureza morta pendurada na parede até o final dos tempos, retrato de uma grande e estúpida obra sem a menor qualidade artística - apenas uma fotografia em preto e branco da justa punição à ignorância humana, o castigo merecido. Se de um lado somos todos vítimas da nossa própria estupidez, de outro ainda há tempo de salvarmos este planeta - “abençoado por Deus e bonito por natureza”, diria o mestre Benjor.

sábado, 7 de julho de 2012

I - O CUPIM E O VAMPIRO NO PAÍS DO CAFEZINHO E DA LEI DE GÉRSON – O 171, o “plus” do casamento e a canetada oficial

“Sou diplomado, frequentei academia / conheço geografia, sei até multiplicar... / dei vinte mango pra pagar três e trezento / você tem que me voltar / dezessete e setecento...”. Assim cantou Luiz Gonzaga sobre algum troco que recebera – o certo seria “dezesseis e setecentos”. Salta aos olhos (e ouvidos) que o cantor tentava um ‘aplique’, o popular “171”, número famoso do artigo do crime de estelionato. (Que, aliás, os autores da proposta do novo Código Penal pretendem manter, seja para perenizá-lo, seja em honra ao folclore nacional). 
Um garoto aprende a levar um ‘extra’ no troco da mamãe. Um encanador vai ao fornecedor e, dele, consegue uma caixinha por trazer-lhe mais um comprador. O agrado sai do bolso ou do produto com o ‘extra’ agregado. Uma igreja de casamentos de ricaços em São Paulo já tem acertados os seus ‘plus’ com o florista, o carpete, a orquestra, o buffet, o padre,  a limusine e outros luxos. 
Só se vende ‘pacote fechado’, brincadeira que pode facilmente extrapolar a faixa dos R$ 100 mil, valor do qual em certa monta escorrem os ‘acertos’. No Congresso, há os que têm a caneta para nomear cargos em comissão; fazem um cambalacho para no fim do mês pagar ao seu apadrinhado apenas uma parte e ficar com o resto. 

II - O CUPIM E O VAMPIRO NO PAÍS DO CAFEZINHO E DA LEI DE GÉRSON – O último malandro e a mescalina de Huxley.

Chico Buarque quis exaltar a velha malandragem e decepcionou-se: “Eu fui fazer um samba em homenagem / à nata da malandragem / (...) Eu fui à Lapa e perdi a viagem / que aquela tal malandragem / não existe mais”. Mas Chico, o samba de breque “O Último Malandro”, de Moreira da Silva, foi apenas uma licença poética: o ‘malaco’ vive, e bem, apenas troca amiúde de endereço. [Veja e ouça abaixo].
Talvez esse costume do ‘toma-lá-dá-cá’ tenha aportado no Brasil com as caravelas, os indígenas recebendo espelhos em troca de passagem para os portugueses; tempos depois, viria a ‘recompensa’ dos senhores de engenho ao escravo ou mucama servil e obediente – dois réis, um escapulário, um retalho de linho. Essa cultura chegou à legalização informal com a famosa “Lei de Gerson”, ‘sancionada’ em 1976 por uma propaganda de cigarros em que estrelava o  meia-armador da Seleção Brasileira, campeão mundial de 1970. Até hoje, a “Lei de Gerson”, em seu parágrafo único, dispõe o mote da antiga propaganda, em que o jogador mostrava um pacote de cigarros e afirmava: “o brasileiro gosta de levar vantagem em tudo!”. [veja e ouça abaixo a propaganda]
Arte sob efeito da mescalina: Max Reed. 
Assim, quem é ‘espírito de porco’ joga para o espaço a ética e os direitos dos demais. Essa é a filosofia de introdução aos maus caminhos, “as portas de corrupção” (brinquei com o título de um livro de Huxley, “As Portas de Percepção”, e não por acaso: o escritor inglês relata que ingeriu mescalina, droga alucinógena, e viu portas se abrindo para o infinito, onde tudo é possível, e as coisas materiais existem apenas por si). 

III e IV - O CUPIM E O VAMPIRO NO PAÍS DO CAFEZINHO E DA LEI DE GÉRSON – Os 10% do café e o cigarro do campeão.

A cultura dos 10% não se fixa nessa cifra exata, que é apenas referencial: ela é o símbolo da gorjeta, da “taxa de administração” do ‘mediador’, que pode chegar aos 20% ou bem mais. Viva o ‘rolo’! Salve o cambalacho e a chicana! (parece bradarem). A cultura dos 10, 1.000% enraizou-se em parte da administração pública, onde, como se diz, é comum se criarem dificuldades para venderem facilidades. Basta um “agrado”, que pode ser um vinho chileno, um uísque e até um apartamento no Guarujá ou emprego para “amigos e parentes, os vivos e defuntos”, como dizia a ladainha. Negócios enviesados engordam malas e cuecas e trazem retorno fácil via contratos com empresas de compadres ou familiares, estufando ‘cofrinhos’ de campanha - ou de champanha.
Dez por cento é uma cifra simbólica. Claro, de mil reais, são cem, e de um bilhão... Conforme o aporte obtido pelo intermediário ou do depositário da verba pública ou do alheio, o pilantra pode levar um título elegante, como “lobista” (“meu marido faz lobby no Planalto”, diria a ‘socialite’). Já o “laranja” é o idiota muitas vezes inocente de quem se suga o bagaço e se joga fora a casca. O país do cafezinho é zelosamente pavimentado: uma rodovia subterrânea percorre vários gabinetes onde o ‘lobista’ tem trânsito sem radares, e cujo tráfego é sinalizado pela malfadada “Lei de Gérson”. (Pobre campeão mundial, imortalizado não pelo chute certeiro e pelos ouros de seus títulos, mas por uma infeliz propaganda a que acedeu em fazer por dinheiro, tornando-se ele mesmo a primeira vítima de sua própria ‘lei’).

IV - O CUPIM E O VAMPIRO NO PAÍS DO CAFEZINHO E DA LEI DE GÉRSON – O pai relapso, o especulador e a sina do vampiro.
Resort em Miami
Um cidadão rico que descumpre sentença judicial por não pagar a devida pensão à sua filha menor pode tornar-se um herói, uma vítima, ‘pai honesto e trabalhador’, que consegue comprar um belíssimo apartamento no Morumbi e dar todos os ‘mimos’ para sua filhinha e a mãe, que tem a guarda da menor. Computadores, Ipads e Iphones, viagens ao Havaí e a Miami... mas esse pai, coitado, diz não poder honrar a pensão acertada em juízo. Ele prefere ser preso e não pagar, porque tem um papai para lá de famoso que obtém amplo espaço na TV para tentar comover a massa, ignara e crédula, que o assiste.
Da mesma forma, uma respeitável atriz brasileira sofre na TV com a prisão de seu filho, nos EUA (segundo ela, por “preconceito”), condenado por ter demonstrado rendimentos contraditórios para gerar grandes lucros com negócios imobiliários para lá de nebulosos. Lá fora, assim como no Brasil, sonegar é crime, mas aqui se dá um jeitinho: políticos e ‘lobistas’ acusados de sonegação - aliás, o menor dos crimes que lhes são imputados – seguem a regra e tentam retornar à cena do crime (quem sabe para dessa vez julgar seus réus?). 
Cupim
O país é vítima dessa doença incurável, infectada no sangue dos amorais, a vantagem declarada em ‘lei’ que parece impossível de ser revogada. O inseto do “país do cafezinho”, sob a Lei de Gérson, é o cupim - que rói o bolso do cidadão no dia a dia e cava o ralo do dinheiro público ao longo do ano. E a sina é a do vampiro: se deixar-se morder uma vez, você também vira um.