Ouvi
o termo corona poucas vezes, e sempre de regentes italianos. Um deles foi o
maestro Tullio Colacioppo, o único concursado efetivo do Theatro Municipal de
São Paulo (orgulhava-se disso!). Homem histriônico, bom de papo como todo
italiano, ele estava à frente da Sinfônica e Coro quando um palco improvisado
desabou na cidade paulista de Americana, em 1993, com artistas e instrumentos. Retomando
o assunto, corona, em italiano, quer dizer coroa, e por semelhança com o
rico adorno dos monarcas, dá nome a um símbolo musical: um semicírculo com a
parte aberta geralmente para baixo, dentro da qual fica um ponto. Fermata,
também do italiano, quer dizer ‘parada’, e se refere ao mesmo sinal. Em alemão,
diz-se Fermate, assim como em francês (só que com “f” minúsculo). Em
inglês, chama-se hold - parada, suspensão. A fermata pode aparecer sobre (ou sob) uma nota, um acorde (grupo de notas) ou mesmo uma pausa, suspendendo no ar tanto sons
quanto silêncios.
József Joachim
Temos
ainda a GP, ou grande pausa, uma longa parada, frequentemente de um compasso, sempre
a piacere (à discrição) do maestro. Para um solista, o símbolo da corona
pode indicar uma cadenza, de cadentia, em italiano (cadere,
cair, em latim). É o momento de um concerto ou ária em que o instrumentista ou
cantor improvisa, geralmente sobre um trecho escrito, exibindo seu virtuosismo
técnico e interpretativo até “cair” de volta na tonalidade original. Cadenzas
costumam ser compostas pelos próprios compositores para a livre execução dos
solistas, mas há várias famosas cadenzas de grandes virtuoses já incorporadas às
partituras, como a do húngaro József Joachim para o concerto para violino de
Brahms.
Beethoven, 5ª Sinfonia (redução para piano)
O leitor
pode ter acompanhado com alguma estranheza o tema que eu até agora abordava, mas já se
sente confortado em saber que – fino a questo punto – o assunto era
música. Esse efeito da suspensão do tempo de uma única nota ou acorde – ou
mesmo o silêncio – é de suma importância em música. O exemplo mais clássico de
fermata está na introdução da 5ª Sinfonia de Beethoven, dotando a nota suspensa
da extrema dramaticidade, tensão e angústia tão características do compositor. (Veja e ouça, abaixo, Herbert Von Karajan e a Filarmônica de Berlim. Karajan era mestre em criar a devida tensão nas fermatas da introdução)
Agora
uma coloco uma fermata sobre a pausa, dal segno al fine: um dos vírus com potencial mais devastador dos
últimos tempos (Covid-19), popularmente Coronavírus, deve o nome à própria semelhança
com o ornamento real. Agora, pasme! Em outubro de 2007 (grifei) a Revista de
Microbiologia Clínica, da Sociedade Americana de Microbiologia, publicou um
artigo (Vol. 20, nº 4, trecho reproduzido na imagem acima), de pesquisadores chineses e americanos, que deveria ter
recebido a máxima atenção: “Síndrome Respiratória Aguda Grave como um Agente de
Infecção Emergente e Recorrente”. E ressalta: “A presença de uma grande reserva do tipo
SARS-COV em morcegos-ferraduras (Rhinolophidae ), juntamente com a cultura do
consumo de mamíferos exóticos na China meridional é uma bomba-relógio” (grifei). Segue a pergunta: “Estaremos prontos para um ressurgimento?”.
Hubei; vazia
Mais
de doze anos após, a resposta surgiu como rastilho da bomba: não! Autoridades em geral não
se importam com pesquisas e alguns chegam a estrangulá-las. Em Hubei, China, dezembro
de 2019, reapareceu e tomou corpo a Síndrome Aguda Grave Coronavírus 2
(SARS-CoV-2), mas não por profecia dos cientistas e sim um alerta baseado em fatos concretos, o primeiro tique-taque
do que chamaram bomba-relógio. É imprevisível o pico da pandemia até que ela chegue a um
estágio em que haja controle, como acontece com outras moléstias infecciosas de
larga escala. Só que o Brasil, como a Itália, procrastinou as ações necessárias
e profiláticas, aqui mais ainda do que no país europeu.
Crédito: New York Times
Somos
obrigados ao isolamento social que impõe um prejuízo imenso: tombo na economia, escassez e desemprego; escolas, teatros, comércio e shoppings fechados. O mundo dividiu-se em núcleos familiares
ou eremitas, boa parte pendurada em celulares ou computadores para se sentir
viva e em comunicação com o exterior. Haverá consequências de ordem psicológica
bastante óbvias, como conflitos, estresses, angústia, ansiedade, depressão e síndrome do pânico. Para
a maioria, a solidão é uma novidade cruel, um hiato na vida.
Cabana de Henry Thoureau (reconstruída) no Walden Pond e estátua
Henry
Thoureau (1817-1862), filósofo, poeta e ensaísta norte-americano, publicou seu “Walden,
ou Vida no Bosque”, que se tornou bastante popular ao lado do ensaio
“Desobediência Civil”. Thoreau envolveu-se com ecologia, ambientalismo e abolicionismo e era
considerado um anarquista radical cujos escritos libertários influenciaram de
Martin Luther King, Jr., a Leo Tolstoy. Isolou-se
em Walden Pond, em Concord, Massachusetts - por acaso, local onde eu volta e meia desfrutava
da minha “praia de verão” na Grande Boston, mais de um século depois. À beira
de um lago maravilhoso e bosques sem fim, Thoreau construiu uma cabana de treze
metros quadrados onde se isolou por “dois anos, dois meses e dois dias”. Sobre
sua produção, ninguém poupa superlativos: o poeta Robert Frost disse que “em
apenas um livro ele ultrapassou tudo o que tínhamos na América”, e o escritor e
crítico John Updike declarou que “um século e meio após sua publicação (N.A.: “Walden”),
ele se tornou um ícone do preservacionismo, da desobediência civil (...), um
santo eremita”.
Hoje,
todos vivenciamos nosso lado Thoureau. Meio eremitas, isolados, e para os que
podem, próximos à natureza. A “cabana” de cada um de nós resume-se a coisa de três cômodos de uma casa ou apartamento. São tempos de reflexão, o país
necessita que pensemos nos erros passados para corrigir os presentes, rumo ao
futuro que nos aguarda para o dia em que sairmos de nossos exílios.
(Inventou o relógio, que um dia quis amarrar a música)
A Criação (Michelangelo)
Salmo
90: “Mil anos são aos vossos olhos como o dia que passou, e como a vigília da
noite”. Para o homem, o tempo era chrónos (do grego, “ciência das
medidas do tempo”), e para Deus, kairós (o tempo qualitativo), de magnitude
abstrata. E assim a humanidade sentia o tempo entre dias e noites se
alternando. Mas tudo era muito vago, ele queria subdividir em frações esse longo
tempo entre a luz e a escuridão. E demorou muito até serem concebidos artifícios
para que galgasse os primeiros passos rumo à sua ambição.
A clepsidra
O
primeiro engenho para medir o tempo foi uma espécie relógio de sol, no Egito do
faraó Tutmés III (1479 a 1425 a.C.), e demorou um milênio para que Tales de
Mileto aprimorasse a invenção. A clepsidra, medidor feito de um cone invertido por
cujo ápice vertia um fio de água, era conhecida na Grécia e na Itália até por
volta de 150 a.C. No século 2 d.C. surgiu o tipo hidráulico, que aperfeiçoou o
de
Ctesíbio (285 – 222 a.C.), aproveitando a engrenagem de Arquimedes (297-212
a.C.) para mover um mecanismo de rodas.
Arquimedes, por Domenico Fetti (1620)
Ampulheta
Os
relógios de areia, chamados ampulhetas (dim. de ampolla), mediam tempos curtos
pré-definidos. Em 1088, o chinês Han Kun Lien criou um engenho de 9m de altura movido
a água, e em 1092 seu conterrâneo Sü Sòng empregou o recém-criado mecanismo de
escape em seu modelo, de 10m de altura, no qual a água em movimento movia uma
engrenagem com pás, que fazia girar o eixo do relógio. Recentemente, chegamos
ao modelo atômico, cuja medição absolutamente precisa, a UTC (Coordinated
Universal Time), determina de horas até frações de segundos para o mundo inteiro.
Johann Joachim Quantz
Mestre
do período barroco, Quantz registrou que os andamentos musicais na época tinham
como parâmetro os batimentos cardíacos de uma pessoa em estado de descanso,
cerca de 80 b.p.m. (batidas por minuto). Daí surgiram as subdivisões, como 40
ou 120 b.p.m., mas foi apenas no romantismo que surgiu um artefato chamado metrônomo.
O pêndulo de Galileo Galilei
Para
falar dele, precisamos voltar a Galileo Galilei, que em 1581 descobriu o
isocronismo (do grego: o mesmo tempo) do pêndulo, que oscila em movimentos iguais. Em meados do século 17, Christian Huyghens e George Graham adaptaram
pêndulos a relógios, mas faltava o chamado escape, algo que provocasse impulso constante
ao pêndulo, e este foi o grande avanço no mecanismo. Baseado no pêndulo, o
primeiro metrônomo foi construído por Etieune Loulié, em 1696, e possuía calibragem
dos andamentos, mas ainda não o escape para mantê-lo em movimento.
Meu Maelzel
A
lista de inventores que aperfeiçoaram o metrônomo, a partir dessa época, é
enorme: uma dúzia de nomes, de Suvert, em 1711, a Smart, em 1821. Em 1812 o
relojoeiro Dietrich Winkel, de Amsterdam, já havia desenvolvido um pêndulo com
dois pesos, um em cada extremidade do eixo, possibilitando marcações mais
precisas mesmo em andamentos mais lentos. Utilizando-se da ideia de Winkel, em
1816 Johann Mëlzel (diz-se Maelzel, com contração das vogais) iniciou a
fabricação de metrônomos portáteis que levavam seu nome – sofrendo à época fortes
críticas por ter usurpado o modelo do holandês. Tenho um desses metrônomos dos
tempos da manufatura do próprio Maelzel em Paris, uma beleza de adorno, e apesar
de não muito preciso repete bem o “pa-pa”, vai e volta oscilando.
Ilustração de Johann Maelzel e sua máquina de jogar xadrez (fraude)
Maelzel,
que já havia sido acusado de fraude, fascinou Beethoven, com quem colaborou em
1813 para uma composição chamada “A Batalha da Vitória”. Houve apresentações em
que Maelzel roubava a cena, apresentando nos intervalos seu aparelho como um
instrumento à parte (bem depois, Ravel e Villa-Lobos chegaram a empregar o
metrônomo como instrumento de percussão).
Em
1814, Beethoven processou Maelzel por apropriação indébita de sua obra,
reclamando inclusive da qualidade da transcrição musical empregada. Descreveu o
inventor como “um homem rude e grosseiro, inteiramente desprovido de educação
ou cultura”. Em 1856, o “Livro do ano dos fatos da ciência e da arte” (pág. 94, acima),
ao mesmo tempo em que qualificava Maelzel como “briguento, extravagante e
inescrupuloso”, lamentava que “se ele possuísse cultura e consciência poderia
ter prestado serviço à grande arte”.
Maelzel
estabeleceu-se em Paris em 1816, e em 1817 transferiu-se para Munique. Meio que
deslumbrado, Beethoven, já completamente surdo, reaproximou-se do inventor, e chegou
a pensar em retirar de suas partituras indicações de tempo como “andante” e “alegro”,
substituindo-as pela precisão numérica das subdivisões do metrônomo. O próprio
compositor passou a anotar em suas partituras o que hoje se convencionou chamar
metronome markings, como MM=68 e MM=120, por exemplo.
Metrônomo eletrônico moderno
O
metrônomo é um aparelho de grande utilidade para exercícios graduais de velocidade
e técnica, uma espécie de ginástica, e suas gradações de tempo servem também
como referência para os andamentos. Pessoalmente, sou contra o uso do aparelho para
estudo de uma obra, que pode ser engessada com a repetição dessa prática. Tremo
ao imaginar o que seria do primeiro movimento da Sonata ao Luar, de Beethoven, se ouço o inimitável Horowitz (link no final do artigo).
Cena de "Ensaio de orquestra", de Fellini
O
filme "Ensaio de Orquestra", de Federico Fellini (1978), é uma alegoria política em
que músicos e seus sindicalistas terminam por derrubar o poder do maestro,
trocando-o por um enorme metrônomo. Após o fracasso da sublevação, o regente reassume,
soberano, ensaiando em meio aos escombros do salão.
Que
fascínio, que charme gauche, que atração é essa que a malandragem exerce sobre
a nossa MPB? Será a convivência nos morros, como exaltou Jorge Ben (1969) em “Charles,
anjo 45”?“Robin Hood dos morros / rei
da malandragem”. E ainda: “Então os malandros otários / deitaram na sopa”, uma
verdadeira ode ao vadio, ao bandido? (Antigamente, a vadiagem era contravenção,
a “dura” prendia e jogava na viatura. Lendária é a história do famoso delegado
Padilha, tema um samba de breque do malandro de “liforme” branco Kid
Morengueira. Andar sem Carteira do Trabalho assinada era coisa de vadio mesmo.
Imagine hoje, com o desemprego oficial nas barras dos 12%). Jorge Ben, em 1975,
já havia feito uma incursão no tema em “Se segura, malandro”, uma breve lição
de como se assumir malandro, como o malaco deve se se virar com classe.
Continua: “pois o malandro que é malandro não se estóra (sic) / malandro que é
malandro não se devora”.
Bezerra
da Silva (1927-2005) era um carioca aficionado de vários gêneros, do coco ao
samba de partido alto: “Malandro é malandro, mané é mané” (por mané entenda-se
otário ou trouxa, vítima do pilantra).Ele
exalta as “virtudes” dá conselhos ao bom malaco – que também atende por vagabundo –,
como em “Malandro não vacila”: “Malandro não cai, nem escorrega / malandro não
dorme, nem cochila / malandro não carrega embrulho / e também não entra em
fila”. 1985 foi um ano pródigo em exaltação ao pilantra: “Malandro Rife”, de
Otacílio e Ari do Cavaco, gravado por Bezerra em um LP em cuja capa ele exibe um tesoitão: “O malandro de primeira / sempre foi considerado / em qualquer
bocada que ele chega”. Naquele ano cantou-se até disputa de pilantragem, como em
“Malandro sou eu”, de Arlindo Cruz, Sombrinha e Franco: “malandro que sou / eu
não vou vacilar”, e até lembrou até Júlio César, mandando contar ao Senado
romano sobre a batalha de Zela: Veni, vidi, vici. Claro que com erudição
“de ouvido”, pegou a frase no ar e mandou ver: “malandreando eu vim e venci”.
Bezerra
da Silva fala até sobre maconha, em “Malandragem dá um tempo”, botando ordem no
terreiro: “Vou apertar / mas não vou acender agora / se segura, malandro / pra
fazer a cabeça tem hora”. O samba menciona até mesmo três artigos do Código
Penal: “é que o 281 foi afastado / o 16 e o 12 ficou no lugar”. (Em 1976 o Art.
281 foi revogado, e dividido entre os de nº 16, porte, e 12, tráfico de
entorpecentes).
Elevando
em grande estilo o nível do tema, Chico Buarque escreveu, em 1975 – que parece
ter sido o ano do grande culto à "classe" -, o musical “Ópera do Malandro”, que ele,
com aquela erudição de berço, buscou em John Gay, um dramaturgo inglês do séc.
18, na peça “Ópera dos Mendigos”, e, mais recente, a “Ópera dos três vinténs”,
dos alemães Bertod Brecht e Kurt Weill. A “Ópera do Malandro” do Chico passeia
entre prostitutas, um cafetão, “corretores” do bicho e um traveco, Geni – cujo nome,
coincidentemente, é título de uma música que fez sucesso à parte da peça, “Geni
e o Zepelim” (que parece falar de uma prostituta, e não do transformista
da peça). O papel de Geni coube a Emiliano Queiroz.
É
para esse bas-fond, essa marginália moderna, que Chico transporta Brecht e sua
“Ópera dos três vinténs” (Die Dreigroschenoper), e abre espaço para a
exploração do culto, do mito, da exaltação à malandragem, lembrando o artista
plástico carioca Hélio Oiticica (1934-1980), que em uma serigrafia de 1968, feita
em homenagem ao famoso bandido Cara de Cavalo estampou: “Seja marginal, seja
herói”. Daí, no musical proliferaram variações sobre o malandro, como a letra que
Chico fez a seu jeito para a música de Kurt Weill: “O malandro / na dureza /
senta à mesa / do café / bebe um gole / de cachaça / acha graça / e dá no pé”. Mas,
pasme, em “Homenagem ao malandro”, Chico descobre que aquela figura caricata de
pilantra acabara: “Eu fui fazer um samba em homenagem / à nata da malandragem /
que conheço de outros carnavais”. Mas qual não foi sua decepção, ao ir à Lapa, gueto
da malocagem carioca, e ver que “aquela tal malandragem não existe mais”! E
prossegue, agora levando esse malandro agora “oficial’ a outras instâncias, coisa bem atual: “malandro
candidato a malandro federal / (...) com retrato na coluna social / (...) com
contrato, com gravata e capital” – e faz a ressalva: “que nunca se dá mal”. (Veja e ouça no final do texto)
Madame Satã
Com
certeza, criar um charme especial na malandragem é algo que os franceses
diriam ser pour épater la bourgeoisie (para chocar a burguesia). Guetos de
malandros há muitos no país, apesar de a velha Lapa carioca ser um panteão dos
sambistas. Era o reduto da boemia da classe C, gente como o velho e perigoso
transformista Madame Satã, com longa folha corrida de processos e assassinatos
– matou com um soco no fígado o grande sambista Geraldo Pereira, parceiro de
Wilson Batista no clássico samba “Acertei no milhar”.
Existe
também o malandro caipira, Pedro Malazarte, um pilantra cínico importado do
folclore português da Idade Média - que no Brasil virou ópera cômica de Camargo
Guarnieri e Mário de Andrade, história do trapaceiro do gato de vinte contos de réis. O tema pegou Cazuza e retornou com Cassia Eller, em “Malandragem”:
“Eu só peço a Deus / um pouco de malandragem / pois sou criança e não conheço a
verdade”, mostrando em tempos mais recentes que certa dose da tal malandragem seria
necessária para defendê-la dos trambiques da vida.
“Quando vem a
madrugada ele some / ele é quem quer / ele é o homem / eu sou apenas uma
mulher”. Nesta lindíssima canção, “Esse cara” (1973), Caetano retrata a mulher
submissa, mero objeto de um homem que faz na vida o que quer, enquanto ela apenas
o aguarda. Ele se coloca exatamente no lugar dela, ao cantar, apesar de a
irmã Bethânia também ter gravado uma linda versão. Essa transmutação de um
homem cantando os sofreres de uma mulher não é incomum, Chico Buarque também a fez
duas ou três vezes, a exemplo de “Com açúcar, com afeto” (“fiz seu doce
predileto / pra você parar em casa”). É a autocrítica do homem por sua culpa pela
condição da mulher daqueles tempos, ela que aceitava com resignação os caprichos
e desígnios do companheiro.
Sendo homens a
grande maioria dos compositores e as mulheres os modelos para suas criações,
claro que no passado prevalecia o ponto de vista masculino, o lado mais forte, de quem contaa história. Para o cabra-macho
Virgulino Ferreira, o Lampião, sua companheira de cangaço tinha de ser
submissa, mas oferecer-lhe paixão como bem cantou Volta Seca, homem do grupo do Rei do Cangaço, em
gravação de 1957, dezenove anos depois da morte da amante do chefe: “Acorda,
Maria Bonita / levanta, vem fazer café / que o dia já vem raiando / e a polícia
já está de pé”. Em jornada dupla, ela participava do cangaço, preparava a boia
e o café, arrumava a tenda, limpava e areava as panelas de fundos encarvoados pela
lenha das refeições. E ainda namorava.
Assim como em Caetano
e Volta Seca, com aguçado espírito crítico “Cotidiano”, de Chico Buarque, mostra
o homem cantando o dia a dia da mulher companheira, que labuta na casa e vai esperá-lo
pontualmente na entrada quando ele chega: “Todo dia ela faz tudo sempre igual /
me sacode às seis horas da manhã”. No retorno do trabalho, doze horas depois, segue
a rotina: “Seis da tarde, como era de se esperar / ela pega e me espera no
portão”. Se na partida o beijo da mulher tinha o gosto da hortelã da pasta de
dentes, na volta do batente o sabor que o recebia era o da paixão.Genial é a “Feijoada Completa”, também do
Chico, uma receita que desce aos detalhes, um roteiro para a companheira fazer o
agrado aos compadrios do homem: “Mulher / você vai gostar / tô levando uns
amigos pra ‘cunversar’”. Como o dinheiro anda curto, ele diz para botar água no
feijão, mas pede cerveja ‘prum’ batalhão (que não pode faltar, claro!). “Bota a mesa no
chão que o chão tá posto / e prepare a a linguiça pro tira-gosto”, tarefas a
que ela deve se dedicar com especial deferência.
Em 1974, participei
da temporada de “Mais quero asno que me carregue que cavalo que me derrube”,
auto do português Gil Vicente (1456-1536) extraído da “Farsa de Inês Pereira” e
adaptado aos tempos modernos por Carlos Alberto Soffredini. Estrelava a atriz
Tereza Rachel, que cantava um fado com direito a sotaque lusitano, vestida a
caráter. Eu e o violonista Gaetano Galifi a acompanhávamos: “Pois se espelhe
aqui comigo / eu que não tenho marido / e sou por aí falada como
desavergonhada”. Era um sofrimento a mulher estar solteira, e um desterro viver
separada. E é cantando que ela dá um conselho: “Mulher tem que ter um homem / que lhe
abrace e lhe dê nome / sem homem mulher é nada / e acaba desesperada”.
Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sarte em Pequim, 1955
Desde o fado do auto
do Gil Vicente, de 500 anos atrás, passando pela “Maria Bonita” do cangaceiro
Volta Seca, e pelo Caetano e Chico do século 20, a música tem sido uma boa
maneira para analisarmos o caminho trilhado pela mulher rumo à tão cobiçada independência.
Da Santa Jeanne D’arc à inglesa Mary Shelley e a francesa George Sand, ambas do
séc. 18, chegando à contemporânea Simone de Beauvoir, a também inglesa Virginia
Wolf (virada do século 20), a mexicana Frida Kahlo e dela até as americanas
Gloria Steinem, Betty Friedan e Oprah Winfrey, sim, mulher, como tem sido longa
e dolorida a sua luta!
Havia um anúncio de uma marca de cigarros em revistas americanas em que uma linda mulher, sempre muito bem
vestida, aparecia em primeiro plano em pose elegante, fumando um daqueles slims. No fundo, em preto e branco ou sépia, uma cena mostrava o passado, mulher enchendo uma carroça com feno ou alguma ilustração que mostrasse a
submissão de que ela teria, enfim, se libertado. Sempre trocando a ilustração do anúncio, o mote da série era “You’ve come a long way, baby”, algo
como “Você vem de longe, garota”. Essa propaganda da Philip Morris para o
Virginia Slims, voltada ao público feminino, teve início em 1968, fazia o marketing do vício e tinha a luta das mulheres como oportuna estratégia.
Clara Zetkin e Rosa Luxemburg em 1910
A todas as mulheres,
aplaudimos a celebração deste seu dia, por terem feito tanto pelo mundo, rumando à posse do merecido espaço de justa igualdade, embora ainda longe de ser
conquistada. Em um 8 de março, em 1884, Susan Anthony propôs à Câmara dos
Representantes dos EUA uma emenda que garantisse às mulheres o direito ao voto.
Simbolicamente, a data serviu para uma conquista de Clara Zetkin, militante
feminista alemã, durante a Conferência Internacional das Mulheres Socialistas
de NY de 1910. Em 8 de março de 1910, a francesa Raymonde de Laroche foi a
primeira mulher a receber um brevê de piloto de avião, e na mesma data, em 1911,
eclodiu o primeiro movimento pelo voto feminino.Não é uma data qualquer, ela é símbolo de sofrimentos,
lutas, história plena de significados. O dia 8 de março continua a ser dedicado a elas em
grande parte dos países do mundo. You’ve come a long way, baby.