LIVROS

LIVROS
CLIQUE SOBRE UMA DAS IMAGENS ACIMA PARA ADQUIRIR O DICIONÁRIO DIRETAMENTE DA EDITORA. AVALIAÇÃO GOOGLE BOOKS: *****

sábado, 25 de julho de 2020

“NADA SERÁ COMO ANTES AMANHÔ

Albert Sabin e suas gotinhas 

Esta música de Ronaldo Bastos e Milton Nascimento parece ter sido feita para a ocasião. Após meses em confinamento, embaçam quaisquer previsões do cotidiano futuro, só devaneamos em uma dança espiral sobre o fim do vírus. Fim do vírus? Cientistas dizem que não, academias do mundo inteiro convergem para a ideia de que ele não será o exterminador do futuro, mas sofrerá um controle periódico, como a pólio e o sarampo. Após as esperadas vacinações em massa, imunizada boa parte da população, poderemos conviver com relativa segurança.
Não haverá um salto de paraquedas sobre a completude de uma liberdade que nunca tivemos (doces sonhares!) A transição para uma fase confiável de controle acontecerá gradualmente, e não por fórmula instantânea como o leite em pó e o macarrão usados e abusados no isolamento. Também não haverá uma bacanal pública com strip-teases de máscaras, ao menos para boa parte dos que não tiverem essa “vertigem de liberdade”, para usar uma expressão de Kierkegaard. Boa parte, eu incluído, continuará saindo de casa com máscara, álcool em gel no bolso, cuidados de praxe por bom tempo.
O que será de nossas vidas após essa tangente imaginária à curva que não achata nunca? Penso sob vários ângulos, iniciando pelo convívio social. No interior de SP, era comum as pessoas se cumprimentarem com a mão um a um, mesmo sem se conhecerem, ritual de cortesia. E o beijo, tão típico dos brasileiros, um para paulistas, dois para cariocas e três para mineiros (“para casar”), como ficará? Surgirão tipos mais seguros de gentileza. E para novos relacionamentos amorosos, serão as aproximações mais lentas, como no velho romantismo do passado? (Ao invés do baby-boom do pós-guerra, haverá uma silenciosa implosão demográfica?)
Protesto de motoboys
Alguns costumes devem permanecer, a preguiça e o conforto nos deixaram mais indolentes: palmas à ociosidade! O delivery será um deles! Supermercados, magazines e redes que vendem de parafusos a motocicletas, de bombons a vinhos de safra continuarão a se expandir no rastro de novos serviços para as classes que podem desfrutar dessas benesses - afinal, a concorrência e a demanda fazem parte do livre-mercado e se multiplicam em oportunidades, tanto que as revendas de motocicletas já não dão conta das encomendas dos entregadores!
A maneira de nos vestirmos poderá ser afetada. É comum falar com pessoas via zap e raro por videoconferência, como outro dia com o gerente de meu banco de São Paulo - ambos em casa, descabelados e de camiseta, todos igual, nada es mejor. Ficaremos menos exigentes com as aparências, vistas grossas ao inevitável sobrepeso do sedentarismo. Às mulheres, talvez fazer as sobrancelhas - “não precisamos mais usar aquela maquiagem”, cantou o Roberto; já Caymmi, dengoso, “não pinte este rosto que eu gosto”.
Ferro de passar, aos que podiam se dar ao luxo de ter empregada ou passadeira, deixou de ser prioridade: passar roupas é tortura (os homens descobrem a tarefa inglória a que só as mulheres, em histórica submissão, se dedicavam no passado). Morei anos nos EUA e não vi sequer uma dessas engenhocas - só lavanderias, o despejar da roupa na máquina, a moedinha; esperar acabar, retirar tudo, encher a secadora, a moedinha; dobrar tudo ainda quente e meia-volta, volver.
Houve até campanhas virtuais contra o ferro de passar, pela aceitação da roupa não-passada – uma delas com o lema “Passar roupa é inútil”, meme das redes (certamente, invencionice de homens ao dividirem tarefas). Haverá preferência por tecidos sintéticos e de fibras mistas e as confecções procederão à substituição gradual dos velhos por novos. Aos ferros que vêm de nossas bisavós, das pesadas geringonças com brasa ardendo aos elétricos, o museu.
Shopping em São Paulo: o "day after"
Haverá receio de grandes ambientes coletivos, mostrou-nos a experiência recente da reabertura dos shoppings, cuja frequência após o primeiro dia apinhado de famintos por consumir caiu a números pífios. O novo já era velho, em um só dia perdeu o charme. Fechando a contabilidade, ao invés da esperada curva do vírus apenas a bancária foi achatada, nos saldos e bolsos dos consumidores.
Que será dos teatros, cinemas, shows, concertos, tudo em que é vital a presença do público, sofreguidão dos artistas? (Já tão prejudicados pela política cega e paupérrima dos órgãos da cultura oficial, relegando os bons cardápios para lazeres fúteis e inócuos). Sem ônus para os cofres públicos, que afinal somos nós que provemos, novos tempos não apenas ditarão modismos como imporão formas de o povo absorver entretenimentos medíocres; os bons artistas, entregues à sorte, tratados como trabalhadores desclassificados.
Em businness, o chamado ‘pá-pum’: “me perdoe a pressa / é a alma de nossos negócios” / “Pô, não tem de que / eu também só ando a cem” (Sinal Fechado, de Paulinho da Viola). Sem aquelas conversas extensas a que nos acostumamos no passado, coisas simples como papear, jogar prosa fora. Os assuntos de hoje não passam de apenas dois: vírus e política.
Esta última já padece de uma divisão acentuada, uma dicotomia radical: ou se é contra ou a favor, perderam-se todos os tons de cinza, o exercício do senso crítico pela coletividade. (Um fenômeno mundial, que já vinha crescendo antes de sua engorda na quarentena). Divisão maniqueísta, luta entre o bem e o mal em que um lado é o certo, e errado – quando não “comunista” - é quem discorda. A história, com sabedoria, haverá de expurgar esses vícios às trevas, nas asas do bom debate e das saudáveis disputas sem fanatismos.
                                                                                  ***
  * Canal do Youtube - Ser Brega:  (clique no link)   https://www.youtube.com/watch?v=VdXYv412hsU&t=20s
* Programas passados: (copie e cole)   https://www.youtube.com/autrandourado 
  * Para  o livro Memórias de Isolamento - Saudosos Velhos Amigos e Outras   Crônicas,  escreva  : memoriasdeisolamento@gmailcom 

sexta-feira, 17 de julho de 2020

ELOGIO DA MENTIRA


“Elogio da Loucura”, do neerlandês Erasmo de Rotterdam (1466-1536), padre, humanista e pensador, é um ensaio crítico-satírico sobre os vícios da Igreja Católica Romana e da sociedade da época. Sua versão do Novo Testamento influenciou decisivamente a Reforma Protestante. Assim pensei o título deste artigo: longe de ser uma apologia ao ato de faltar com a verdade é uma irônica digressão crítica sobre a arte de mentir.
"Tudo o que quero é a verdade, dê-me um pouco de verdade"
John Lennon satirizou profissões e contrastes sociais entre ricos e pobres em “I don’t wanna be a soldier, mama, I don’t wanna die” (“Eu não quero ser um soldado, mamãe, eu não quero morrer”), uma dicotomia radical que chega a “Eu não quero ser um advogado, mamãe, eu não quero mentir”. Ora, a função precípua do exercício da advocacia, seja um representante particular ou dativo (cedido pelo Estado), é defender o cliente. Não raro alguns rejeitam uma causa, seja por se julgarem suspeitos ou por razões de foro íntimo, que podem ir da não concordância com o pleito a outros motivos, como os de natureza religiosa.
Uma das mais populares das 201 fábulas catalogadas de Esopo (620-564 a.C.) é conhecida no Brasil como “Pedro e o Lobo” (em inglês, do grego, “The boy who cried wolf!”, “O garoto que gritou lobo!”), que entre nós ficou conhecida com o nome de um menino. Há diversos outros títulos em outros idiomas, como “O pastorzinho e os fazendeiros”, mas todos reportam à ideia inicial de Esopo, a história da criança que toda vez que ia ao bosque retornava gritando “socorro, tem um lobo!”
No princípio, os gritos de Pedrinho apavoravam, mas, não tendo sido encontrado o animal por diversas vezes, passaram a ignorar seus pedidos desesperados. Até que um dia... Crau! (Não poderia faltar a ‘moral da história’ da fábula: aos mentirosos contumazes, se um dia contarem a verdade, não será dado crédito).
Mary "Wilcox" Baker
No século 19, Mary “Wilcox” Baker ficou conhecida como “A princesa Caraboo”. Segundo a história, a moça, de personalidade confusa, mudou-se do interior para trabalhar em Exeter como baby-sitter, onde se tornou famosa como contadora de histórias. Mudou-se para Londres, e, tresloucada, inventou que era uma princesa que fora sequestrada por piratas e tinha logrado fugir nadando até a praia. É difícil hoje aceitar que a história teve credibilidade, mas as pessoas da época, comovidas, queriam crer que tudo era mesmo sincero.
Hitler e Goebbels

Joseph Goebbels, o ministro da propaganda de Hitler, disse: “repita uma mentira muitas vezes e ela se tornará verdade” (vulgo “uma mentira repetida dez vezes...”).  A psicanálise chama isso de ‘efeito de ilusão da verdade’. Imagine um jogo de grupo no qual os participantes, em círculo, têm de dar notas à verossimilhança de certas frases, como “uma ameixa seca é uma ameixa desidratada”. Porém, se a frase for “uma tâmara é uma ameixa seca”, se alguém afirmar que é verdadeira, pessoas do grupo podem crê-la real, daí criando a ‘ilusão da verdade’, que surge facilmente em situações coletivas.
Mao e seus guarda-costas
Grandes ditadores, como Mao-Tsé-Tung, criaram fantasias acerca de seus poderes às vezes quase sobre-humanos. Em 6 de julho de 1966, aos 77 anos, Mao teria atravessado o caudaloso rio Yangtze, sucesso que, ao lado de fotos e outros documentos maquiados e montados, reverteu uma curva de decadência política e o reergueu como o grande líder da revolução chinesa,. Um grande líder tem de demonstrar força, uma quase indestrutibilidade, quando não é tido como imortal, caso de Sebastião I, de Portugal - mesmo morto, ele tinha seu retorno aguardado pelo povo – daí a expressão ‘sebastianismo’.
Estátua de El Cid, em Valencia
El Cid (do mourisco, ‘o senhor’), ou Don Rodrigo, príncipe de Castella, foi um líder guerreiro do século 11 na luta entre cristãos e mouros. Senhor de tantas vitórias, não poderia morrer, seu exército seria derrotado. Reza a lenda que, após seu assassinato em um ataque dos mouros ao seu castelo em Valência, em 1099, sua esposa teria colocado seu corpo em uma armadura sobre um cavalo, empunhando escudo e lança, colocando-o à frente de seu exército. Com El Cid à frente, símbolo de luta e vitórias, os inimigos, apavorados, fugiram, mas foram capturados e mortos – a figura inerte de El Cid liderando a vitória.
O perjúrio (perjury, em inglês), no Brasil é crime chamado falso testemunho, tipificado no Art. 342 do Código Penal: “fazer afirmação falsa, negar ou calar a verdade”, com pena de 2 a 4 anos e multa. Pode-se ficar em silêncio em um inquérito policial, como facultam a lei brasileira e a 5ª emenda americana, mas em juízo o cidadão é obrigado a dizer a verdade.
Já a chamada mentirinha social é aceita, com as devidas cautelas, como quando alguém está com dor de barriga e manda dizer a quem telefona que está em reunião. Há ainda outras, danosas à sociedade, como as fake news. No dia 8 de junho, sob uma pressão bilionária de anunciantes internacionais que retiraram suas contas do Facebook, a maior rede social fechou no Brasil um número enorme de perfis que, juntos, tinham até um milhão de seguidores com potencial de compartilhamento, fato que vem se somar ao inquérito que tramita no STF e à CPMI instaurada no Congresso. O tema: propagação do ódio, do racismo e de informações falsas por meio da Internet. A mentira vai ao banco dos réus, mas há uma precaução a ser tomada no combate a mentiras criminosas: que tomem o cuidado de nunca atropelar a liberdade de expressão em seus limites legais.
                                                                                ***
[Livro:  Memórias de Isolamento  - Saudosos Velhos Amigos e Outras Crônicas. Pedidos pelo e-mail  memoriasdeisolamento@gmail.com ]

sábado, 11 de julho de 2020

UM PERSONAGEM EM BUSCA DE SEUS DIPLOMAS

Fefierj, na Praia do Flamengo

No início dos anos 1970, cursei Licenciatura em Música na Fefierj (Uni-Rio). A escolha se deveu à oportunidade de estudar com Hélio Senna e Silvio Mehry, ambos formados pelo Conservatório de Moscou, e Marlene França, ex-aluna de Ginastera. Também tive liberdade para escolher o professor de instrumento de minha preferência. Certo dia, uma porta se abriu para mim nos EUA, e corri para Boston.
New England Conservatory
Estudei por um ano no Berklee College, enquanto me preparava para ingressar em minha opção primeira, o New England Conservatory, conhecido como uma das três melhores instituições dos EUA. (Berklee ajudou-me na parte de escrita e arranjos para jazz, foi uma grande vivência). Preparei-me ao máximo, e obtive por prova um Financial Aid Award do New England, fundamental à minha sobrevivência. Lá, estudei contrabaixo por poucos meses com William Rhein, até o encontrarem morto em circunstâncias sinistras - mas previsíveis. Fiz prova para ingressar em uma das três vagas na classe especial de Edwin Barker, solista da Sinfônica de Boston, e passei a estudar ainda mais.
Formei-me após um pré-recital com banca e um recital público externo. Surgiu então um convite para trabalhar no Brasil em uma organização sob a liderança de um grande nome, proposta irrecusável. Decidi-me e comecei a organizar a papelada. Em uma viagem ao Brasil estive no MEC, no Rio, e a funcionária responsável pela revalidação de diplomas do exterior me fez uma série de exigências, como um documento, à parte do diploma com a assinatura do presidente da entidade, no qual deveria constar uma confirmação da autenticidade do título (pelo mesmo presidente que assinara o diploma anexado!) Ambos deveriam ser colados com um selo inviolável com a marca d’água da instituição e outra de um “notary public” – o correspondente a um tabelião, prática inexistente nos EUA. Sem resistir, o presidente do NEC deixou escapar: “o país da fitinha vermelha”.
(Foto: qconcursos)
Retornando ao Brasil, segui as instruções do MEC e da burocracia. A papelada teve tradução juramentada, carimbos e selos de acordo com as normas do Ministério. Para encurtar os dois ou mais anos previstos, protocolei o pedido de revalidação na Unicamp, fugindo do MEC. Um professor visitante da Universidade de Indiana, Mel Carey, chamado para atestar a qualidade do curso, resumiu: “fabulous!” Não tardou a burocracia apontar que faltava em meu currículo escolar um semestre de Problemas Brasileiros, que a ditadura, já agonizante, havia travestido da velha Educação Moral e Cívica. Inscrevi-me, fiz o paper  final da disciplina e, após quase três anos de via crucis burocrática, em 1985 recebi a chancela final, assinada pelo reitor da Unicamp, então Aristodemo Pinotti, número devidamente carimbado.
USP (jornal.usp.br)
Ingressei como professor na USP em 1988: tal qual os outros, eu só tinha um diploma superior. Logo, a Reitoria publicou no Diário Oficial o meu ingresso na carreira, dando-me até seis anos para apresentar o diploma de mestre. Fiz duas disciplinas de pós-graduação como aluno especial que foram aproveitadas no curso. Ingressei oficialmente na área de Artes Plásticas, uma vez que ainda não havia mestrado em música na USP. Preparação de dissertação, o temível exame de qualificação e finalmente a defesa pública – ambas perante uma banca já no Departamento de Música, com mestrado na área já oficializado. Concluí o curso em Artes Plásticas: sete disciplinas de três horas semanais cada - o tal “superdoutorado”, enquanto um candidato a doutor tinha o ‘privilégio’ de concentrar-se a fundo no trinômio pesquisa-tese-defesa e a exigência de apenas quatro disciplinas.
Após breve recesso, vi que teria de enfrentar o doutorado, desta vez em Artes Cênicas. ainda não existia o curso na Música. Disciplinas, muitas horas de trabalho e um projeto de pesquisa bem mais amplo, com mais exigências e bem mais  árduo: muita bibliografia, correspondências, entrevistas, idas a bibliotecas, procuras por fontes, etc. Tudo isso para um certo dia, material pronto, submeter-me à decisiva banca de qualificação. Um semestre depois, preparando a oratória e estudando com muito afinco, imprimi os dez exemplares, cada um com quase trezentas páginas, e fui à banca em audiência pública com a participação de convidados estranhos ao corpo docente da Universidade. Foi uma longa sessão de perguntas, questionamentos, olhares clínicos e pequenas armadilhas, mas estava preparado para a ocasião.
Vinte e um anos depois da expedição do diploma de doutorado, sempre lendo e pesquisando, achei que talvez fosse hora de um grande alto, o pós-doutorado, ou simplesmente pós-doc. A ideia me fascinou, mesmo sabendo do trabalho árduo que teria pela frente: informações sobre minha atuação profissional e acadêmica, publicações, tudo desde o início da carreira até os dias de hoje, qualificado e quantificado. Softwares para contabilidade de citações de meus trabalhos em livros e produções acadêmicas, detalhes de toda uma vida. E um projeto em que se privilegia a pesquisa no mais alto nível, algo que possa ser útil ao país, à comunidade acadêmica e à pesquisa em geral.
Adicionar legenda
A obtenção de títulos verdadeiros e reconhecidos no Brasil não é brincadeira. Não é um pendurar de papeis sem lastro e emoldurados na parede e o decorar do currículo com títulos para fazer bonito. Como dizia meu professor nos EUA, nada é feito para ser fácil, muito pelo contrário. Mas há um caminho a ser evitado: falsear e plagiar são habilidades fúteis e traiçoeiras: é como armar uma bomba-relógio que um dia lá na frente vai estourar na sua mão.
***
Para todos os programas: youtube.com/autrandourado
Livro (encomenda): Memórias de Isolamento - Saudosos velhos Amigos: memoriasdeisolamento@gmail.com


sábado, 4 de julho de 2020

A ARTE DA FUGA

Bach no leito de morte: compondo

Johann Sebastian Bach (1685-1750) deixou uma obra inestimável para a música ocidental. Nos últimos dez anos de vida, entregou-se a ela com grande devoção (estudou, dois séculos depois, na mesma escola de Lutero em Eisenach). Naquela década, talvez antecipando sua hora, Bach dedicou ao Senhor várias obras, a exemplo de corais, cujo tema rondava a falência do corpo: a morte.
Nesse período, compôs A Arte da Fuga (Die Kunst der Fugue), sem indicar instrumentação, uma generosidade para com os intérpretes: piano, órgão, orquestra ou quarteto de cordas, quem sabe.
Silhueta de Stokowski e Mickey Mouse, em Fantasia
Bach empregou o binômio Prelúdio e Fuga, a exemplo do Cravo Bem Temperado, e outras combinações, como a Tocatta e Fuga (BWV 565) para órgão, em ré menor, transcrita para orquestra por Leopold Stokowski (conhecida do público leigo pelo magnífico filme de animação de Walt Disney, Fantasia, de 1940).
Seções de uma fuga
A fuga é uma técnica que vem da Idade Média. Diversas vozes trabalham em imitação ou replicação, dando impressão de que elas ‘fogem’ entre si. Em A Arte da Fuga, Bach compôs 14 delas – na última, parou no compasso 239, para depois morrer. O filho caçula Johann Christian Bach marcou e anotou as quatro notas que o pai usaria na fuga (ver ilustração abaixo), antes de expirar: Si bemol, Lá, Dó e Si, em alemão representadas por B-A-C-H!

Há ainda quatro cânones em que as vozes se repetem, cada uma tendo início em compasso diferente - quem nunca brincou de cantar “Frère Jacques” na infância? No citado compasso 239 (ver ilustração),
Alcatraz
Agora salto para outras nada canônicas artes da fuga, como as da prisão de segurança máxima de Alcatraz, ilha da baía de San Francisco (EUA), palco de 14 tentativas, a mais espetacular em 1946.
NY Times e "A Batalha de Alcatraz"
Na chamada ‘Batalha de Alcatraz’, seis internos, em violenta tentativa de fuga, dominaram carcereiros, invadiram e assaltaram o depósito de armas e roubaram chaves de celas. A marinha americana abortou a fuga, com saldo de dezenas de feridos e seis mortos. Dois dos líderes foram condenados à câmara de gás e outro, de 19 anos, à prisão perpétua, pela pouca idade.
Outra tentativa, elaboradíssima, foi a ‘Fuga de Alcatraz’: até cabeças imitando as dos rebelados foram moldadas em “papier marché”. Entre mortos na água gelada do mar e desaparecidos, o FBI encerrou o caso inconclusivamente.
Livro de Manoel Leães
No Brasil, após o golpe que o depôs em 1964, João Goulart foi enviado por Leonel Brizola para o Uruguai, onde tinha propriedades; tentou articular um contragolpe com militares, mas falhou, evadindo-se um mês depois para o Uruguai. Nessa fuga, diz o folclore político, estava usando peruca e vestindo roupas de mulher. Contudo, o piloto que o levou para o exílio, Manoel Leães, detalhou a fuga em livro, com requintes de filmes de espionagem: Neusa, esposa de Brizola, lhe dera metade de uma cédula de dinheiro, e a pessoa que o encontrasse com a outra parte seria o elemento-chave para a fuga.

Brizola em entrevista
Indagado por uma repórter durante a campanha presidencial de 1994, o ‘engenheiro’ respondeu indelicadamente que teria escapado como mulher, sim, usando as calcinhas da entrevistadora.
Abraham Weintraub (Wikipedia)
Abraham Weintraub, ministro deste governo por pouco mais de um ano (abril de 2019 a junho de 2020), é daquelas figuras polêmicas que ressurgem aqui e ali na política brasileira. Na pasta da Educação deixou a desejar:  Grafa ‘suspenção’, ‘imprecionante’ e ‘paralização’; trocou ‘asseclas’ (do PT) por ‘acepipes’ – talvez um tira-gosto para suas farpas. E não distingue ‘onde’ de ‘aonde’.
A troça absurda com os chineses
Não tem papas na língua para atacar, como fez com o presidente da França Emmanuel Macron, nem com o povo chinês, nosso maior parceiro comercial. Ironizou o sotaque de sino-brasileiros com o do Cebolinha, da Turma da Mônica, que troca as letras ‘r’ por ‘l’. De seus ataques não escaparam os nossos indígenas – logo ele, judeu, descendente de um povo perseguido, dado a arroubos xenofóbicos contra nativos brasileiros e parceiros orientais!
Fala de Weintraub na reunião de 22 de março
Mas foi em uma reunião ministerial, em 22 de maio, exibindo grande verve, que Weintraub cometeu suas derradeiras diatribes. Apontando para o lado oposto da Praça dos Três Poderes (a Suprema Corte), disse “eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia, começando pelo STF” (G1). O vídeo ficou em posse do decano do Supremo, Celso de Mello, e foi tornado público com alguns cortes de trechos constrangedores a nações amigas.
Foto "de Miami"
Encurralado por tantos lados e vendo-se em trapalhadas legais, Weintraub anunciou que sairia imediatamente do país, manobra de invulgar habilidade: no dia 20 de junho já chegava em Miami. E como burlou os critérios extremamente rígidos dos EUA para ingresso de brasileiros no país? (Até dos viajantes de países ‘liberados’ exigem isolamento sanitário por duas semanas!) Simples: usou sua condição de ministro com passaporte diplomático - isento, portanto, de todos os embargos da Imigração. Desceu em Miami livre, leve e solto.
O truque foi ter sua exoneração do cargo retificada após a chegada em Miami. A data do decreto original vigorou até sua entrada nos EUA, mas por pouco tempo: no dia 23, em edição extra (nº 118, seç. II, pág. 1), novo decreto presidencial retificou o ato, fazendo retroagir a exoneração para “a partir de 19 de junho de 2020”.
A sede do Banco Mundial
Divulgou-se que Weintraub assumiria uma cadeira na diretoria executiva do Banco Mundial - cargo para cuja investidura não se é nomeado, mas eleito, confirmando indicação do país, e só  dali a três meses. Para Lucas Furtado, subprocurador do TCU, a alteração na data “confirma fraude” (Estadão, 23/06). Desde logo houve reações, de intelectuais brasileiros e nações estrangeiras à Associação de Funcionários do Banco Mundial.
Sim, já houve escapadas mirabolantes na história. Mas nenhuma fuga logrou o final perfeito. Nem as do devoto Bach.
                                                                             ***
Livro: Memórias de Isolamento - Saudoso Amigos e Outras Crônicas: memoriasdeisolamento@gmail.com
Canal do Youtube - A Vida de Eleazar de Carvalho: https://www.youtube.com/watch?v=LpQs_7vwewY&t=5s
Para procurar em todos os programas, copie e cole: https://www.youtube.com/autrandourado