Albert Sabin e suas gotinhas |
Esta
música de Ronaldo Bastos e Milton Nascimento parece ter sido feita para a
ocasião. Após meses em confinamento, embaçam quaisquer previsões do cotidiano futuro,
só devaneamos em uma dança espiral sobre o fim do vírus. Fim do vírus? Cientistas
dizem que não, academias do mundo inteiro convergem para a ideia de que ele não
será o exterminador do futuro, mas sofrerá um controle periódico, como a
pólio e o sarampo. Após as esperadas vacinações em massa, imunizada boa parte da
população, poderemos conviver com relativa segurança.
Não
haverá um salto de paraquedas sobre a completude de uma liberdade que nunca
tivemos (doces sonhares!) A transição para uma fase confiável de controle acontecerá
gradualmente, e não por fórmula instantânea como o leite em pó e o macarrão usados
e abusados no isolamento. Também não haverá uma bacanal pública com strip-teases
de máscaras, ao menos para boa parte dos que não tiverem essa “vertigem de
liberdade”, para usar uma expressão de Kierkegaard. Boa parte, eu incluído, continuará
saindo de casa com máscara, álcool em gel no bolso, cuidados de praxe por bom
tempo.
O
que será de nossas vidas após essa tangente imaginária à curva que não
achata nunca? Penso sob vários ângulos, iniciando pelo convívio social. No
interior de SP, era comum as pessoas se cumprimentarem com a mão um a um, mesmo
sem se conhecerem, ritual de cortesia. E o beijo, tão típico dos brasileiros,
um para paulistas, dois para cariocas e três para mineiros (“para casar”), como
ficará? Surgirão tipos mais seguros de gentileza. E para novos relacionamentos
amorosos, serão as aproximações mais lentas, como no velho romantismo do
passado? (Ao invés do baby-boom do pós-guerra, haverá uma silenciosa implosão
demográfica?)
Protesto de motoboys |
Alguns
costumes devem permanecer, a preguiça e o conforto nos deixaram mais indolentes:
palmas à ociosidade! O delivery será um deles! Supermercados, magazines e redes
que vendem de parafusos a motocicletas, de bombons a vinhos de safra
continuarão a se expandir no rastro de novos serviços para as classes que podem
desfrutar dessas benesses - afinal, a concorrência e a demanda fazem parte do livre-mercado
e se multiplicam em oportunidades, tanto que as revendas de motocicletas já não
dão conta das encomendas dos entregadores!
A
maneira de nos vestirmos poderá ser afetada. É comum falar com pessoas via zap e
raro por videoconferência, como outro dia com o gerente de meu banco de São
Paulo - ambos em casa, descabelados e de camiseta, todos igual, nada es mejor.
Ficaremos menos exigentes com as aparências, vistas grossas ao inevitável sobrepeso
do sedentarismo. Às mulheres, talvez fazer as sobrancelhas - “não
precisamos mais usar aquela maquiagem”, cantou o Roberto; já Caymmi, dengoso, “não
pinte este rosto que eu gosto”.
Ferro
de passar, aos que podiam se dar ao luxo de ter empregada ou passadeira, deixou
de ser prioridade: passar roupas é tortura (os homens descobrem a tarefa
inglória a que só as mulheres, em histórica submissão, se dedicavam no passado).
Morei anos nos EUA e não vi sequer uma dessas engenhocas - só lavanderias, o despejar
da roupa na máquina, a moedinha; esperar acabar, retirar tudo, encher a secadora, a moedinha; dobrar tudo ainda quente e meia-volta, volver.
Houve
até campanhas virtuais contra o ferro de passar, pela aceitação da roupa
não-passada – uma delas com o lema “Passar roupa é inútil”, meme das redes
(certamente, invencionice de homens ao dividirem tarefas). Haverá preferência por
tecidos sintéticos e de fibras mistas e as confecções procederão à substituição
gradual dos velhos por novos. Aos ferros que vêm de nossas bisavós, das pesadas
geringonças com brasa ardendo aos elétricos, o museu.
Shopping em São Paulo: o "day after" |
Haverá
receio de grandes ambientes coletivos, mostrou-nos a experiência recente da
reabertura dos shoppings, cuja frequência após o primeiro dia apinhado de famintos
por consumir caiu a números pífios. O novo já era velho, em um só dia perdeu o
charme. Fechando a contabilidade, ao invés da esperada curva do vírus apenas a bancária
foi achatada, nos saldos e bolsos dos consumidores.
Que
será dos teatros, cinemas, shows, concertos, tudo em que é vital a presença do público,
sofreguidão dos artistas? (Já tão prejudicados pela política cega e paupérrima dos
órgãos da cultura oficial, relegando os bons cardápios para lazeres fúteis e inócuos).
Sem ônus para os cofres públicos, que afinal somos nós que provemos, novos
tempos não apenas ditarão modismos como imporão formas de o povo absorver entretenimentos
medíocres; os bons artistas, entregues à sorte, tratados como trabalhadores desclassificados.
Em
businness, o chamado ‘pá-pum’: “me perdoe a pressa / é a alma de nossos
negócios” / “Pô, não tem de que / eu também só ando a cem” (Sinal Fechado, de Paulinho da Viola).
Sem aquelas conversas extensas a que nos acostumamos no passado, coisas simples
como papear, jogar prosa fora. Os assuntos de hoje não passam de apenas dois:
vírus e política.
Esta
última já padece de uma divisão acentuada, uma dicotomia radical: ou se é
contra ou a favor, perderam-se todos os tons de cinza, o exercício do senso
crítico pela coletividade. (Um fenômeno mundial, que já vinha crescendo antes de
sua engorda na quarentena). Divisão maniqueísta, luta entre o bem e o mal em que
um lado é o certo, e errado – quando não “comunista” - é quem discorda. A história,
com sabedoria, haverá de expurgar esses vícios às trevas, nas asas do bom debate
e das saudáveis disputas sem fanatismos.
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