CADENZA DO VIOLINO, A CADÊNCIA DO SAMBA
E O CURURU: COMO ACABAR COM UMA TRADIÇÃO
Tanto ‘cadenza’ quanto ‘cadência’ são termos saídos do latim cadentia, do verbo cadere, que quer dizer ‘cair’. Na cadenza do violino, a orquestra para e o solista exibe sozinho sua arte, demonstrando virtuosismo musical e técnico; a cadenza é geralmente executada sobre o acorde que a disciplina harmonia chama ‘dominante’, ou seja, um acorde em suspenso, em tensão, para enfim resolver (ou ‘cair’) na tônica, acorde que por sua vez induz à sensação de repouso. Assim, concluída a cadenza do solista, a orquestra retorna em tutti (todos).
A ‘cadência’ do samba são outros quinhentos, diria o sambista. É a regularidade do ritmo, o balanço: “Quero morrer / numa batucada de bamba / na cadência bonita do samba”, melodia de Ataulfo Alves em parceria com Paulo Gesta. É, portanto, coisa inteiramente diferente de cadenza, e sabe-se lá como explicar de que jeito o termo foi parar no samba. Mas é por aí que começamos a conversar.
Após o surgimento da primeira escola de samba, a Estácio de Sá (1927), novas agremiações começaram a pipocar no Rio de Janeiro, à sombra dela. Noel Rosa criou esta jóia: “Eu sou diretor da Escola do Estácio de Sá / felicidade maior nesse mundo não há / já fui convidado para ser estrela do nosso cinema / ser estrela é bem fácil, sair do Estácio é que é / o ‘xis’ do problema”. Com o tempo, os chamados sambas de enredo passaram a ficar mais complexos; as fantasias, antes simples, transformaram adornos e ornamentos em exibição de luxo; os carros alegóricos traduziam-se em shows à parte - a ponto de começarem a surgir, ainda no passado, críticas como a do especialista em música brasileira Vasco Mariz (1921) em seu livro “A canção popular brasileira”: segundo ele, as escolas de samba estavam começando a parecer festejos carnavalescos “de negros norte-americanos do Harlem” – reportando ao grande gueto nova-iorquino, com seus carnavais trazidos de New Orleans, cujos antepassados, ainda durante a escravidão, os criaram a partir da festança chamada “Mardi gras” (terça-feira gorda), tradição por sua vez introduzida na região pelos imigrantes franceses.
Sérgio Cabral e o rigoroso Ramos Tinhorão, especialistas em samba de raiz, em uma série de estudos publicados no ‘Jornal do Brasil’, registraram que o Departamento de Turismo do Rio, em 1960, proibiu a entrada de violinos nos desfiles; não seriam eles, no entanto, nem a orquestra, os únicos algozes futuros dos desfiles – quem sabe, os últimos -, e sim a televisão, com o surgimento da Tupi, fundada quase dez anos antes. A proibição em arte é perniciosa, tanto quanto o corte profundo nas raízes populares. A festa do povo começou a se transformar em espetáculo após o advento da TV Globo, em 1965, o espírito das escolas de samba corrompendo-se gradativamente. Se antes elas tinham riqueza na criação e simplicidade nos desfiles, logo se transformaram em espetáculos da Broadway, o máximo de luxo com enredos cada vez mais pobres e temas mais alheios à origem (e muitas vezes absurdos); cada vez menos roupa e cada vez mais lindas modelos e atrizes que nunca antes haviam pisado na ‘Avenida’ (a do Rio Branco, centro do Rio), depois levada ao Sambódromo.
As manifestações populares, quando dialogam com outros gêneros e formas de arte, não comprometem sua essência, e vice-versa; no entanto, se ao invés de ocasional esse diálogo passa a ser uma intromissão permanente, por puro interesse econômico, fere-se de morte tradição e raiz, o que vai eliminar aos poucos os vestígios das origens. Chico Buarque chega a ser cáustico , em “Vai passar”: “...ao lembrar que aqui passaram sambas imortais / que aqui sangraram pelos nossos pés / que aqui sambaram nossos ancestrais”.
O Cururu tem ressurgido no Médio Tietê paulista, o que é comentado pelos seus próprios artistas, e promete crescer, uma vez que, com visibilidade, desperta mais interesse, atrai, e daí por diante, em um círculo... ‘virtuoso’. Porém, é preciso o necessário apoio, pois a arte popular sobrevive apenas por paixão, não sustenta sequer o trabalho de seus criadores.
Por isso, para acabar com o Cururu, basta fazer o que fizeram com as Escolas de Samba: elitizaram-nas, vestiram-nas roupas caríssimas, cortaram na carne a tradição popular, internacionalizaram-nas e venderam-nas para serem consumidas como sabonetes, automóveis e cervejas. Para sufocá-lo, de vez, bastaria afastar a tradição oral (ou seria ‘aural’?), introduzindo a leitura de partituras e ensinando aos cantadores que é errado rimar com ‘gambá’ com ‘casá’, e que a afinação ‘cebolão’ deve dar lugar à do violão, que possibilita ‘novas técnicas, harmonias e maior versatilidade’. E para enterrá-lo de vez, levem-no à TV com aquelas dançarinas de programa de auditório.
Nada disso! Nos dias 17, 18 e 19 de novembro teremos o III Torneio Estadual de Cururu, no Teatro Procópio Ferreira, em Tatuí. Compareça! Abrir as portas para a cantoria, sim, aplaudi-la, ajudá-la e divulgá-la, sim, mas colocar um pingo sequer na criação, nunca. Cuidemos das sinfônicas e da modernidade, mas preservemos a tradição brasileira, ou o que ainda resta dela! “Cansei de ser moderno, agora quero ser eterno”, disse Carlos Drummond.