LIVROS

LIVROS
CLIQUE SOBRE UMA DAS IMAGENS ACIMA PARA ADQUIRIR O DICIONÁRIO DIRETAMENTE DA EDITORA. AVALIAÇÃO GOOGLE BOOKS: *****

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

O QUE ACONTECEU COM A MPB NAQUELE ANO?

Grupo Oficina: Roda Viva

Janeiro de 1968. Estreava no Rio a peça Roda Viva, de Chico Buarque, que com as alegorias de sempre traduziu em desejo de mudar toda a angústia daqueles tempos: “...a gente quer ter voz ativa / no nosso destino mandar / mas eis que chega a roda viva e / carrega o destino pra lá”. E lá ia “roda mundo, roda-gigante, rodamoinho, roda pião”... Tudo, tudo a roda levava: sonhos, ideias, pessoas.
Luther King, Jr.: I had a dream 
Naquele ano, em Memphis, EUA, a roda levou Martin Luther King, Jr., carismático líder negro norte-americano que em 1963 proferiu um dos mais belos discursos da história, “I had a Dream” (“Eu tive um sonho”).  A contralto gospel Mahalia Jackson interrompeu-o da plateia com sua voz possante: “conte-os sobre o sonho, Martin!” King abandonou a leitura e, como os bons oradores  americanos  da Igreja de Lutero, improvisou com verve única frases inesquecíveis.
Cortejo do enterro do jovem Edson Luís
Junho de 68. Cinco anos após o assassinato de seu irmão John F. Kennedy, tomba o senador Robert Kennedy, do clã da matriarca Rose, condessa pelo Vaticano, ambos vítimas da histórica disputa política, da máfia ou da guerra fria. Naquele mês, no Rio de Janeiro, marchou a “passeata dos cem mil”, um protesto pacífico contra a censura e a crescente violação de direitos. A roda levara o estudante Edson Luís, 18 anos, abatido a tiros pela polícia no restaurante Calabouço, centro do Rio. Para o enterro, no Cemitério São João Batista, o esquife foi erguido em revezamento durante quilômetros, a multidão bradando o mantra “mataram uma criança, podia ser seu filho”.
Cota  Silva anuncia o AI-5
A morte do jovem estudante, a passeata de artistas, intelectuais e religiosos de braços dados com o povo e o discurso do deputado Moreira Alves, contra a invasão da Universidade de Brasília, foram os três fios que, unidos, acenderam o estopim para que no dia 13 de dezembro fosse detonada a  promulgação do AI-5, que fechou o Legislativo, impôs censura total, suspendeu direitos e concedeu poderes imperiais ao Presidente da República.
Daniel Cohn-Bendit ("Dani, Le Rouge"
Esses acontecimentos, somados os ecos do movimento estudantil na França sob a égide do franco-alemão Daniel Cohn-Bendit, mais a semente da revolução pop que germinava e floresceu no ano seguinte em Woodstock, encontraram um mundo no ápice de um ciclo de ebulição criativa.
Jobim e Chico, Cynara e Cybele
Naquele cenário, 1968 trouxe pérolas da MPB como “Baby”, de Caetano, encomenda de Betânia para o irmão; Retrato em Branco e Preto”, de Jobim e Chico, um lamento apaixonado: “o que é que eu posso contra o encanto / desse amor que eu nego tanto / evito tanto...”.  “Sabiá”, da mesma dupla, é uma doce canção de saudade - ou uma ode ao devaneio do retorno do exílio: “Vou voltar / sei que ainda vou voltar / para o meu lugar”. O Maracanãzinho tremeu ante apupos e protestos da plateia do 3º Festival Internacional da Canção: a massa não se conformava com o primeiro lugar dado a “Sabiá” em detrimento de sua favorita, “Pra não dizer que não falei de flores”, de Vandré, que se tornaria hino político da juventude. 
E quantos bons sambas nos deu 1968! Destaque para o genial “Samba do crioulo doido”, de Sérgio Porto, samba de enredo que nunca foi à avenida mas desfilou pelos ouvidos do país inteiro: “Foi em Diamantina / onde nasceu JK / que a princesa Leopoldina / arresolveu se casá / Mas Chica da Silva / tinha outros pretendentes / e obrigou a princesa / a se casá com Tiradentes”.
A MPB pós-bossa começava sua fase universal, livre de velhos conceitos e imersa em ricas influências. “Tropicália’, de Caetano, foi a pedra fundamental: “O monumento é de papel crepom e prata / os olhos verdes da mulata” (link no final do artigo). Surrealista, dadaísta, antropofágico, Caetano também compôs “Superbacana”, enquanto Jobim lançava “Wave” (“Vou te contar”), de melodia e harmonia bastante sofisticadas. Gilberto Gil, de braços com o tropicalismo, lançou “Soy loco por ti, America” (“...soy loco por ti de amores”).
Por Hélio Oiticica
No balanço, “Nem vem que não tem”, de Carlos Imperial (“Nem vem de garfo que hoje é dia de sopa / (...) nem vem de escada que hoje o incêndio é no porão”); a Jovem Guarda chega de roupa nova com “Vesti Azul”, de Nonato Buzar, enquanto Marcos e Paulo Sergio Valle falavam de música e luta social em “Viola enluarada” (“... no sertão é como espada”). Nas artes plásticas, Andy Warhol, nos EUA, e Oiticica, no Brasil; na filosofia, Sartre, Marcuse, Adorno, Hubermas; no teatro e cinema, Gláuber, Zé Celso, Pasolini, Godard. Na poesia e prosa, Capinam, Drummond, Bandeira, Cabral e Clarice, a quem Caetano homenageou (“Que mistério tem Clarice”). O Pasquim era gestado enquanto questionamentos, inquietações e medo pululavam. Criava-se, e como se criava!
Se o ocaso do Império Romano viu a “Idade das Trevas”, também houve o Renascimento e o “século das luzes” (séc. 18). Aconteceu também um longo ciclo, barroco-classicismo-romantismo. No século 20 eclodiram duas guerras mundiais, enquanto ideologias extremistas avançavam. Seria má-fé postular que foi o mal que levou o ciclo da cultura ao pico ou creditar ao tsunami repressivo mundial em 1968 a explosão criativa em todos os níveis. Só entristece saber que hoje, no Brasil, com guinadas e retrocessos de toda ordem, mas dentro de relativa normalidade democrática, navegamos na rasante da maré, quase a seco, no ponto de tangência mais baixo de um ciclo.

SEVERIANO, Jairo. MELLO, Zuza Homem de. “A canção no tempo”. Vol. 2. SP: Ed. 34, 1998. SOUZA, Tárik de. “O som nosso de cada dia”. P. Alegre: L&PM, 1983. MOURA, Roberto. “MPB”. Sp: Vitale, 1998.

sábado, 14 de dezembro de 2019

BEATLES, CAETANO, LSD, ABORTO, SATÃ E COMUNISMO


Em Revolution (1968), Lennon e McCartney cantam: “Você diz que quer mudar o mundo / (...) todos nós queremos mudar o mundo / (... e) que vai mudar a Constituição / (...) nós gostaríamos que você mudasse de ideia / (...) Mas se carrega imagens do camarada Mao / não vai conseguir nada de ninguém”.  Um não ao líder comunista chinês Mao Tsé-Tung e outro à ideia de alterar a intocável Constituição inglesa: o rock dos Beatles era apolítico e conservador.

Já em Back in the USSR, a dupla fala da União Soviética: “Peguei um voo da BOAC em Miami Beach / (...) cara, eu tive um sonho terrível esta noite / estou de volta à USSR / você não sabe o quanto é sortudo, garoto”. Viajando pela  antiga companhia inglesa, o personagem diz que passou mal, teve enjoo a noite inteira e se viu de retorno à União Soviética, bradando aos que ficaram “vocês não sabem como são sortudos, caras”.

Os Beatles receberam a MEB (Ordem da Maior Excelência do Império Britânico) das mãos da Rainha por levarem o nome da nação a píncaros tão altos quanto os da vitória na Segunda Guerra. Os fab four (“quatro fabulosos”) eram bem-comportados em seus terninhos de alfaiate e cabelos bem aparados.
Depois de 1970, desfeito o grupo, Lennon tornou-se um “revolucionário pacifista” que sonhava em transformar o mundo compondo no piano Steinway branco de seu amplo apartamento em um prédio na frente do Central Park nova-iorquino, em cuja calçada seria assassinado em 1980. Seus protestos iam de palavras de ordem confusas a nudes como o famoso duplo traseiro, ao lado da esposa Yoko Ono.
Caetano na passeata dos cem mil
Caetano Veloso atuou em movimentos pacíficos como a passeata dos cem mil ao lado de inúmeros artistas, intelectuais e religiosos de diversas crenças, unindo-se a eles no protesto contra a censura e as prisões.
O quatro religiosos em julgamento

(O AI-5 não poupou da cadeia gente indefesa como um escritor e amigo de meu pai, Hélio Pellegrino, ou um primo, frade dominicano, Carlos Alberto Libânio Christo, ambos por delito de opinião. Com ele, mais três frades - incluindo frei Tito, que se enforcou em um convento em Paris em 1974, vítima de delírios recorrentes após torturas -  amargaram la dura cadena. Carlos Alberto “pagou” quatro anos e ao final foi condenado a dois, restando-lhe um impagável “saldo credor”. Já Caetano e Gilberto Gil, após a prisão, partiram para o autoexílio em Londres, de onde, remoendo-se de saudades do Brasil, faziam das coisas de nosso país temas recorrentes para suas músicas).
Cetano no exílio, em Londres
Nesta altura, lendo o título deste artigo e as preleções sobre os Beatles e Caetano, o leitor bem informado sabe do que vou falar. Daí a indispensável breve digressão sobre o grupo inglês e Caê, um senhor nascido há 77 anos em Santo Amaro, Bahia. Além de compor e cantar, ele é um leitor voraz, apaixonado por Bandeira, João Cabral, Jorge Amado e Fernando Pessoa – ícone da poesia lusitana, de quem musicou  Os Argonautas: “Navegar é preciso” (atribuído a ele. Link ao final do artigo).
Flávio Cavalcanti
Em um programa de TV, o apresentador Flávio Cavalcanti sorteava cartões; vencia o primeiro entre os competidores que apertasse um botão e cantasse música e letra com a palavra dada. Caetano, disputando com Chico e outros grandes nomes, era imbatível: sabia todas as letras, mesmo em outros idiomas. Na vida, sempre que falou sobre literatura Caetano mostrou ser um leitor contumaz.
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
Na primeira semana de dezembro, matéria da Veja trouxe um novo personagem, Rafael Nogueira, que cometeu a frase que serve de título ao assunto: “Presidente da Biblioteca Nacional associa Caetano Veloso ao analfabetismo”. Um disparate sem tamanho e, pior, vindo de uma pessoa desconhecida, atingindo um artista do porte de  Caetano.
Dante Mantovani (O Globo)
Outro “prócer” da Cultura é o novo diretor da Funarte, “maestro” (sic) Dante Mantovani: “Soviéticos infiltrados na CIA distribuíram LSD em Woodstock” (O Globo, 2/12/19) - frase alucinada, como convém ao tema. Por sua vez, na mesma data o Estadão publicou: “rock induz às drogas, ao aborto e ao satanismo”. Mantovani, que havia atacado nossa atriz maior, Fernanda Montenegro, foi empossado no lugar do renomado pianista Miguel Proença, que era titular do cargo e havia tecido elogios à artista - logo, foi exonerado (et pour cause, como se diz). Mantovani delira nas conexões entre “droga, sexo, aborto e satanismo”, ou quando diz que os Beatles teriam sido “invenção socialista para garotas abortarem” (Revista Época, 2/12/19).
Protesto na Fundação Palmares (foto: Brasil de Fato)
Sérgio Nascimento, nomeado presidente da Fundação Palmares, fechou a semana da “nova cultura” negando (detalhe: ele próprio, negro) a existência de racismo no Brasil, dizendo que a escravidão foi benéfica e que o movimento negro deveria ser extinto (ibid.). A Justiça mandou anular a nomeação, mas a União recorreu à AGU.
Richmond, VA
Os três receberam orientação direta ou indireta de Olavo de Carvalho, um ex-astrólogo que se autodeclara filósofo e é chamado de guru por seus seguidores. Sem estudos ou qualquer formação específica, foi comunista na juventude e hoje, renegando o passado, comete equívocos considerados juvenis ou simplesmente falhos pelos acadêmicos de história e filosofia. Dada sua língua ferina, já foi inúmeras vezes réu por crimes de injúria, alvo de processos por instituições, personalidades e jornalistas. De seu Bunker-clausura em Richmond, Virginia, um dos estados do historicamente conservador sudeste dos EUA, elucubra ideias e teorias radicais, excêntricas e polêmicas, objetos de adoração de seus obstinados defensores, que creem estar seguindo um gênio.


sábado, 7 de dezembro de 2019

MÁFIAS NAS GUILDAS MUSICAIS DO PASSADO

Agrupamento de  músicos na Roma antiga.

Bem antes do que se poderia supor, os agrupamentos de músicos em guildas, associações e pequenas máfias corporativas, familiares ou de compadrio já existiam – e isso, muito antes do surgimento do capitalismo, sistema em que a competição acirrada cria, em cada nicho, armaduras de autodefesa e, com elas, hostilidade a estranhos. Sendo o dinheiro primordial à subsistência, é necessário agregar-se para viver da nobre arte.
Árvore genealógica de Bach, plena de músicos
A família de Johann Sebastian Bach era tão numerosa que, entre os séculos 17 e 18, na cidade de Erfurt, foi selado um protocolo estabelecendo multa de cinco táleres (moedas de prata da época) para quem contratasse um músico em cujo sobrenome não constasse Bach, de festas de casamento a funerais (ironizando, Bach em alemão quer dizer riacho, sem cuja água peixe não nada – e em Erfurt  músico não trabalhava). A máfia da cidade era poderosa a ponto de obter do governo uma multa para um conhecido líder musical, Tobias Zabelitzky, que desafiou o protocolo e prestou serviços a outra guilda.
Igreja de Santa Maria, em Lübeck
A disputa entre os músicos na época era tão acirrada que por uma bom emprego valia até casar-se com a filha do Kapellmeister (mestre de capela da cidade). Na aprazível Lübeck, no norte da Alemanha, Händel e Mattheson amargaram perder uma boa vaga porque não simpatizaram com a filha de Buxterhude, um respeitado organista muito admirado por Bach, que com frequência viajava para vê-lo tocar (talvez o empecilho para uma possível união tenha sido a idade um pouco avançada e poucos atrativos da filha do chefe). Dieterich Buxterhude era poderoso e teria, ele próprio, obtido sua posição casando-se com a filha de Franz Tunder, a quem sucederia na função.
Guilda medieval
Os músicos agregados às máfias eram bem organizados: tinham uniformes e distintivos próprios, a fim de não serem confundidos com membros de outras guildas. Na Alemanha barroca, a profissão tinha seus rígidos monopólios, sendo as pagas fixadas entre contratantes e líderes dos grupos.

(Breves parêntesis: em meus tempos de EUA havia concertos denominados Union gigs, para afiliados à AFM, e non-Union gigs, para não afiliados; quem tocava nos primeiros não tocava nos outros, sob pena de ser multado pela União).
Anúncio da estreia de Benvenuto Cellini, de Berlioz
Esse tipo de organização não era privilégio dos alemães. Também existia na Itália, mas com certa liberalidade músicos podiam aqui e ali pular a cerca e 
“dar uma palinha” em outra guilda. Benvenuto Cellini, ainda no século 16, era um artista tão completo que o francês Berlioz, dois séculos depois, dedicou-lhe uma ópera cujo título traz o nome do italiano. Além de ourives, pintor e projetista, Cellini era flautista, cornetista, cantor e compositor; famoso, transitava livremente em diversas guildas. Não bastasse a música, era entalhador de marfim e construtor de alaúdes, címbalos e diversos tipos de viola. Apesar disso, o trânsito de seu pai na corte de Piero de Medicis certamente o ajudou a obter permissão para o acúmulo de cargos.
Basílica de San Marco, em Veneza
Em Veneza, embora fosse possível atuar em guildas diferentes, os músicos da igreja de San Silvestro rivalizavam com os da San Marco na disputa pelos trabalhos musicais. E havia divergências contábeis sobre o que seria objeto dos cachês: apenas a cerimônia ou também os festejos posteriores, como bufês ou jantares.
Claudio Monteverdi
O célebre compositor Claudio Monteverdi (1567-1643), pioneiro no gênero operístico, acumulava as funções de mestre de capela na San Marco com as de músico oficial do doge (espécie de juiz plenipotenciário escolhido por votação, em Veneza). Após uma discussão com um ressentido e furioso músico, chegaram às vias de fato e o mestre quase teve sua barba arrancada.
Trompa da caccia
Dentro das próprias guildas, as funções, por classes de instrumentos, tinham suas especialidades: os saquebutes (antigos trombones) eram mais afeitos a funções religiosas: juntos, tinham o poderoso apelo de um órgão de tubos. Trompetes e clarins eram palacianos, serviam à pompa e circunstância dos poderosos, enquanto as trompas, originárias da tradição dos caçadores (por isso mesmo, da caccia), tinham seus tubos enrolados para possibilitar aos músicos carregá-las a tiracolo, em seus cavalos. Por causa dessa mobilidade, prestavam-se a outras funções além de sinalizadores da caça. O shawm (antecessor do oboé), com seus agudos cortantes, anunciava de cima das torres quando alguém se aproximava do burgo. Mas os trompetistas, com trânsito nas cortes devido ao privilégio de suas funções palacianas, tinham regalias especiais e, claro, cachês mais altos nos serviços.
Esquadra inglesa
Havia disputa até “no macro”, entre países, pelo domínio da música: no séc. 17, a Inglaterra era uma grande potência, e singrando mares invadia e conquistava terras em todos os cantos - de meras ilhotas a continentes - onde pudesse fincar as âncoras de seus navios. A armada real levava também valioso auxílio à consolidação de seu poder:  lições de economia, agricultura e arte, com destaque para a música. Trazia na bagagem farto material de Henry Purcell, organista da Royal Chapel e da Westminster Abbey, que compunha em todas as formas e estilos. Mesmo assim, a coroa inglesa nunca chegou a ameaçar a hegemonia musical dos alemães, muito menos a dos italianos. O escritor francês Stendhal (1783-1842) chegou a afirmar que parecia ser proibido compor em lugar que não fosse à sombra do Vesúvio!
O Vesúvio, próximo a Nápoles
[Fontes: DOURADO, Henrique Autran. Pequena Estória da Música. SP: Vitale, 1999. RAYNOR, Henry. História Social da Música. RJ: Zahar, 1981]

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

O ARCO: ELO PERFEITO ENTRE FORMA E FUNÇÃO

Ponte medieval em Plön, perto de Lübeck, Alemanha

O arco teve, desde sua origem, uma aura de simbolismo, mistérios e virtudes que remontam à antiguidade. Nas construções, a forma em arco evita o estresse em um ponto só, a força de sustentação é distribuída por toda a estrutura do vão, haja vista inúmeras obras que resistem ao passar dos séculos. Fator de grande importância na sustentação de pontes, às vezes até mesmo sem uso de qualquer tipo de massa ou cola entre as peças, quer sejam elas de pedra ou produzidas com outro material, aproveitam-se da gravidade, todas as forças convergindo, distribuídas em direção ao centro.
Mstislav Rostropovich (The Telegraph)
(Nas aulas de música, era pensando nisso que eu mostrava que os dedos dos instrumentistas de cordas devem trabalhar arqueados como se a mão estivesse em repouso. Assim, eles se movimentam com a tensão bem dividida entre os músculos, ao invés de quando os dedos estão retos ou se curvam para trás, esforço concentrado que dificulta o relaxamento).
(Sobre o arco desde os longínquos tempos no extremo Oriente, para todas as áreas de interesse, da filosofia à música e relaxamento físico e espiritual,  recomendo a leitura de um sábio livrinho, "A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen", de Eugen Herriger , Ed. Pensamento)

Não há como deixar de falar no Arco do Triunfo, de Paris, um dos mais famosos monumentos do mundo. Erguido em homenagem aos heróis da Revolução Francesa e das Guerras Napoleônicas, sua construção abriga, também, a tumba do soldado desconhecido da I Grande Guerra. Inspirado no Arco de Titus (ano I d.C.), de Roma, o de Paris fez história: outros o seguiram, como o Monumento à Revolução Mexicana (início do séc. 20) e o Arco do Triunfo de Pyongyang, Coreia do norte (1982), entre muitos.
No Brasil, os belos Arcos da Lapa, no centro do Rio, são a maior obra de arquitetura dos tempos da colônia. Na verdade, trata-se um empreendimento a priori não  urbanístico: servia para sustentar um aqueduto para trazer água do Rio Carioca. Foi planejado no início do séc. 17, e as obras se arrastaram de 1660 até a conclusão, em 1723. O aqueduto dos Arcos sofreu diversos problemas ao longo dos anos; com a República, novas formas de abastecer o Rio de Janeiro foram sendo encontradas e, por feliz iniciativa, cinco anos após a Proclamação aqueles Arcos, já um símbolo da cidade, foram destinados aos bondes da Cia. de Carris Urbanos, levando passageiros à aprazível Santa Teresa, hoje bairro simples mas badalado e sempre na moda – uma espécie de Greenwich Village de Manhattan ou Vila Madalena em São Paulo. Com lindas vistas chacoalhando na subida do bonde, é cartão-postal e faz parte do roteiro turístico da cidade.
Um ravanastron e seu arco
Na música, arte em que é personagem fundamental, o arco dos instrumentos de cordas nos primórdios em tudo se assemelhava ao seu homônimo usado para arremessar flechas: vareta curvada em forma de meia-lua entre cujas extremidades era atada algum tipo de corda ou cerda retorcida. Há 2.500 anos, os nômades do Mar Cáspio já tocavam o rebab, ancestral da nossa rabeca, mas o ravanastron (tributo ao rei Ravana, de Lanka) da Índia e Sri- Lanka, é o que guarda mais semelhanças com a diversidade de instrumentos atuais.
Arcos barrocos
Com o tempo, o arco sofreu diversas transformações: das grandes curvaturas côncavas passou por uma silhueta quase retilínea até chegar ao formato atual, ligeiramente convexo. A família das antigas violas de arco era grande: a partir das chamadas da braccio, tocadas como violinos, passando pelas da gamba, entre as pernas, como no violoncelo, e o violone, que deu origem ao contrabaixo.
Giuseppe Tartini
No século 18, o relojoeiro e depois grande archetier (fabricante de arcos) François Tourte concluiu que o pau-brasil ou uma de suas variedades, como o Pernambuco, seria a madeira ideal, dada sua flexibilidade, densidade (afunda n’água) e pelos veios perfeitos, sem nós. E assim permanece até hoje. Depois, Tourte curvou a antiga vareta ligeiramente côncava ao contrário, em suave forma convexa, dotando-a de um tipo de flexibilidade que possibilitou muitos novos golpes técnicos e arcadas. O virtuose Giuseppe Tartini (1692-1770) idealizou o parafuso interno à vareta que serve para puxar uma peça de madeira chamada talão e retesar um feixe de crina de cavalo, esticada entre a ponta e a extremidade inferior. O arco passou a ser uma ferramenta até mais importante para o músico do que o próprio instrumento. Ouvi grandes solistas dizerem que preferem um violino mediano e um ótimo arco do que um ótimo instrumento e um arco ruim.
Por Debret
Poderíamos continuar a discorrer interminavelmente sobre o arco, sua importância e vasta utilização na música, abrir o leque para as centenas de instrumentos de arco e suas peculiaridades, do passado longínquo ao presente.  Poderíamos falar no arco (ou verga) do berimbau, que, por isso mesmo vergado por um fino cabo de aço e percutido com uma vareta, usa uma cabaça na parte inferior como caixa de ressonância – instrumento da capoeira: música, dança e esporte que devemos aos africanos que para cá vieram escravizados. (Recomendo de coração a leitura de um livrinho mágico, A Arte cavalheiresca do Arqueiro Zen, de Heinz Herriger). 
Violeta Parra (1917-1967)
Além de tudo, a forma do arco também é poesia, e como letra também serve à criação musical, como na linda canção de protesto “Volver a los 17”, da chilena Violeta Parra: “...el arco de las alianzas / ha penetrado em mi nido / (...) se ha paseado por mis venas / y hasta las duras cadenas / con que nos ata el destino” – música gravada por uma infinidade de artistas, de Mercedes Sosa a Joan Baez.
Falando de um arco, Chico Buarque descreve a saudade com uma imagem brilhante em “Pedaço de Mim”: um sentimento a um só tempo doce e perverso, lindo e doloroso, de alguém que nunca voltará: “Ó, pedaço de mim / Ó, metade exilada de mim / leva os teus sinais / que a saudade dói como um barco...” Para concluir: “que aos poucos descreve um arco / e evita atracar no cais”
(Com Chico Buarque e a linda e melancólica voz de Zizi Possi)



sexta-feira, 22 de novembro de 2019

O FUNDAMENTALISMO POLÍTICO E RELIGIOSO


O Estadão publicou, no dia 12/11, matéria que acende a luz vermelha: “Até que ponto chega o ódio cego e visceral, quando não patológico” (link da TVT logo abaixo). Palavras do ministro do STF Celso de Mello, indignado com a alucinada incitação de uma advogada gaúcha: “estuprem e matem as filhas dos ordinários ministros do STF”.  Ela protestava contra a decisão da Suprema Corte pela inadmissibilidade da prisão em segunda instância, antes de esgotados todos os recursos e o trânsito em julgado. A advogada se referia, claramente, à decisão que teve como consequência a soltura do ex-presidente Lula. Sem entrar no mérito da questão, que é coisa julgada, sirvo-me desse gravíssimo incidente de possíveis desdobramentos penais para uma digressão a partir do que Mello chamou “fundamentalismo político”.

O então deputado Moreira Alves, em seu pronunciamento
Para mim, foi imediata a associação das palavras da advogada a um discurso do passado, guardadas as proporções e o contexto histórico. Em setembro de 1968, em Brasília, o então deputado Márcio Moreira Alves fez um pronunciamento, no Congresso, com teor naïve se comparado ao tom da advogada contra o STF. Longe de ser uma ameaça criminosa, a fala de Alves foi uma atitude até pueril naquele momento crítico do país.
UnB, 1968
A Polícia Militar do Distrito Federal havia invadido a Universidade de Brasília (UnB) e Alves subira à tribuna para pedir o boicote ao desfile de 7 de setembro, que seria um artifício para incutir no povo um “falso instinto patriótico”. E estendeu o pedido “às moças, aquelas que dançam com cadetes e namoram oficiais”. O governo Costa e Silva, via STF, exigiu do Congresso a cassação de Alves, que terminou rejeitada. Foi o estopim: em dezembro, três meses depois do discurso e seus desdobramentos, era baixado o hediondo AI-5; Alves fugiu do país, retornando somente com a anistia, em 1979.
Karen Armstrong
A inglesa Karen Armstrong (1945), formada em Oxford e ex-professora da Universidade de Londres, conseguiu uma façanha: chegou a ser freira durante sete anos, no Sagrado Coração de Jesus, hoje leciona Judaísmo e Treinamento para Rabinos na escola superior Leo Baeck e é membro honorário da Associação de Estudos Sociais Muçulmanos. Seu precioso livro “Em Nome de Deus¹” remete a 1492, ano em que, segundo ela, aconteceram três fatos de suma importância para Cristãos, Judeus e Muçulmanos: “a descoberta da América, a conquista de Granada e a expulsão dos Judeus da Espanha”, quatro décadas após a queda de Constantinopla.
Muhammad XII se rende aos "reis católicos" (F. Pradilla)

Baruch Spinoza
Com seu cabedal e ecletismo, Karen tornou-se uma das maiores especialistas sobre o fundamentalismo nas três grandes religiões monoteístas. O livro traz uma caudalosa bibliografia como suporte, incluindo textos de Nietzsche e os teológico-filosóficos de Spinoza, e é primordial para quem quer compreender o fundamentalismo político ou religioso (ou ainda ambos em convergência) nos dias de hoje.
Embaixada da Venezuela invadida
Dias após a investida afrontosa da advogada contra as filhas dos ministros, um grupo de 30 militantes favoráveis a Juan Guaidó, autoproclamado presidente da Venezuela, invade a embaixada de seu país em Brasília. Segundo declarou à Revista Forum o deputado Paulo Pimenta, que lá esteve, não lhe parece que o governo brasileiro tenha relação com o episódio em si, mas foi notório o acirramento de ânimos após o declarado apoio do Brasil a Guaidó contra o presidente Maduro. Detalhe importante: todos os invasores venezuelanos portavam mochilas com celulares, carregadores, baterias e... uma bíblia - o que nos leva à certeza de que o fenômeno que acontece no Brasil não nos é exclusivo, está presente em vários outros lugares. Além de cristãos de diversas ordens e seitas, incluindo as obscurantistas como os católicos “Arautos do Evangelho” e “Opus Dei”, são tão fundamentalistas quanto alguns núcleos ortodoxos judeus e muçulmanos, seguindo a ótica equidistante e imparcial de Karen Armstrong.
Sempre em nome de Deus, é inegável que o fundamentalismo político e religioso vem avançando no Brasil. Sem qualquer nexo, a ministra Damares Alves (também  já alvo de críticas do ministro), em um seminário sobre a “cura gay” (Estadão, 12 de novembro), disse que “o Estado é laico, mas não é laicista”. No dia 2 de janeiro já havia declarado ao mesmo jornal: “O Estado é laico, mas esta ministra é terrivelmente cristã”. Laicista é um termo que não está no VOLP (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa) nem no Houaiss, há uma referência  no Priberam . Damares na verdade quis contrapor-se a quem compreende a laicidade, “qualidade do que é laico ou leigo”. Todas essas palavras que remetem à mesma coisa. Ou seja, têm a ver com o antigo secularismo e o lema revolucionário francês “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” identificado, em 1905, com a lei que determina a separação entre Igreja e Estado. Hoje, políticos tentam seduzir certas correntes religiosas que, além de lhes proporcionarem o apelo hoje sedutor do extremo conservadorismo, representam números bastante significativos na contabilidade eleitoral.
A indignação do ministro Celso de Mello com a provocação da advogada não é só dele, que de pronto resolveu manifestar-se à luz de sua vasta cultura jurídica e universal, à parte das possíveis consequências de uma denúncia criminal. Na verdade, ele representou todos os brasileiros que pensam um país mais justo, mais digno e sob plena democracia. Quem diria, o discurso de Moreira Alves virou história da carochinha.

[¹AMSTRONG, Karen. Em Nome de Deus (O fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo). Trad. Hildegard Feist. SP: Ed. Schwarcz,  2001]