LIVROS

LIVROS
CLIQUE SOBRE UMA DAS IMAGENS ACIMA PARA ADQUIRIR O DICIONÁRIO DIRETAMENTE DA EDITORA. AVALIAÇÃO GOOGLE BOOKS: *****

sábado, 29 de agosto de 2020

PARA QUE PESQUISA CIENTÍFICA NO BRASIL?

 

Há mais de 20 anos fui parecerista da Fapesp por uns tempos. Convidado por via eletrônica, não sei quais foram os propositores do meu nome, mas senti-me na obrigação de aceitar. Meu trabalho era nas artes, que nem sei se ainda estão lá devido à atual crise econômica, e cada área de pesquisa tinha seus pareceristas. Eu recebia os projetos eletronicamente e nunca tive contato com quem eu estaria julgando. Analisava desde a razoabilidade financeira da proposta à consecução do projeto, além de sua relevância e, claro, objetividade, clareza e redação. Assim, uma vez julgado, retornava o material por via eletrônica com observações e eventuais ressalvas, aprovando-o ou não.

Há três anos, minha filha Isabela, aos 21, formou-se em Química na USP, recebendo do Conselho Regional de Química o prêmio de melhor aluna do período 2013-2016. Passou a mergulhar com afinco na elaboração de seu projeto de pesquisa com vistas a uma disputada bolsa-auxílio da Fapesp, sua opção preferida, ingressou no doutorado direto (sem necessidade de mestrado) e obteve a cobiçada bolsa. Sua área de atuação é química associada à biomédica, e o objeto da pesquisa foca em próteses biodegradáveis para o corpo humano (dispositivos médicos reabsorvíveis). Pela Fapesp, foi para Ohio, EUA, e com uma pequena equipe de brasileiros e americanos palestrou e pôde dividir conhecimentos. Após o retorno, engajou-se com entusiasmo ainda maior no trabalho, passando dias inteiros no laboratório do Instituto de Química da USP.

Depois dessas duas vivências em épocas distintas passei a conhecer melhor e admirar cada vez mais a Fapesp. Como ex-parecerista, recebo notícias e newsletters da entidade de fomento criada pela Constituição Estadual de 1947, leio sobre as conquistas e avanços tecnológicos em todas as áreas do saber científico, com ênfase para o campo médico. Mais recentemente, os avanços no estudo e combate à Covid-19 -  do isolamento do genoma do vírus à construção de respiradores de baixo custo, testes com o anti-inflamatório Colchicina, no HC-USP de Ribeirão, e, na semana passada, a parceria da Omni-eletrônica com o HC da Faculdade de Medicina da USP para a produção de um aparelho que capta a presença do coronavírus no ar em ambientes com aglomeração (foto acima).

Em 1988, houve uma greve geral das universidades públicas. Um acordo feito entre o então reitor José Goldemberg e o governador, à época Orestes Quércia, foi sacramentado por decreto e anos depois enviado à Assembleia Legislativa para que as três públicas do estado de São Paulo e a FAPESP não tivessem seus orçamentos sujeitos a oscilações políticas, mas baseados em percentuais da arrecadação do ICMS, hoje fixados em 5,0295% para a USP, 2,3447% UNESP, e 2,1958% UNICAMP, totalizando 9,57%. Para a FAPESP, foi aprovado o percentual de 1%, com a salvaguarda da autonomia universitária determinada pelo Art. 207 da Constituição Federal, que diz, em seu caput: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.

Apesar disso e de todas as conquistas mundialmente reconhecidas da Fapesp, no dia 13 de agosto o executivo de São Paulo protocolou na Assembleia Legislativa o Projeto de Lei nº 529/20, que trata de inúmeros assuntos ligados às finanças do estado. Salta aos olhos o Artigo 14, que ou não mereceu os devidos estudos ou simplesmente ignorou como funcionam as entidades de fomento. Diz o caput: “O superávit financeiro (sic) apurado em balanço patrimonial das autarquias (...) e das fundações, será transferido ao final de cada exercício à Conta Única do Tesouro Estadual.”

Entre as mencionadas autarquias e fundações estão as universidades públicas e a Fapesp. Parece que enxergam a Fundação como fosse um órgão da administração direta, que devolve ao Tesouro do estado, a cada chamado exercício findo, eventuais excedentes - assim como acontece com secretarias e outros órgãos da administração direta. Ora, como funciona a Fapesp? Ela recebe a dotação de 1% prevista na Constituição Estadual e a aplica em conformidade com a autonomia determinada pela Constituição Federal.

Tecnicamente, desconsideraram ainda que nas universidades e na Fapesp é vital a continuidade das pesquisas em curso. Pesquisadores recebem mensalmente bolsas por até três anos, e uma vez aprovados os projetos as verbas são direcionadas à consecução dos trabalhos. Portanto, ao acatar um projeto para esse período, compreende-se desde já uma previsão da verba até o prazo final, o que desarma qualquer tese de superávit, “surplus” ou excedente. Por motivos óbvios, a Fundação não pode suspender ou abortar projetos em curso ao final de cada exercício, pesquisadores sequer usufruem de férias.

Até o presente momento, acumularam-se 623 emendas parlamentares propondo, com justificativas, alterações no texto do PL, incluindo 45 delas sobre o Art. 14, que trata das autarquias e fundações, e especificamente das universidades e Fapesp. É preciso que os parlamentares ouçam a comunidade acadêmica; urge fazer as alterações no mencionado artigo para que a pesquisa no estado de São Paulo prossiga sem rupturas em seu trabalho de vanguarda e excelência reconhecido internacionalmente. Segundo as chamadas “Leis de Rolland”, a doutrina da continuidade dos serviços públicos é a mesma que rege a continuidade do próprio Estado. 
Que haja responsabilidade e sensatez nesta hora por parte do Legislativo. 

                                                                      ***

sábado, 22 de agosto de 2020

EDUCAÇÃO 2020: MISSÃO QUASE IMPOSSÍVEL

Um ano letivo comprometido para a educação em todos os níveis. Por mais que aulas à distância, on-line, possam minorar problemas de disciplinas em classes enormes como muitas da Escola Politécnica da USP (Poli), nunca poderão fazê-lo com matérias que necessitam prática, como as de anatomia e dissecação na medicina, laboratórios químicos, aceleradores de partículas ou prática musical. Uma agravante: já estourando na boca do balão, há uma turma para se formar este ano que deveria ceder lugar à próxima a ingressar. Tentar equilibrar tudo isso diante de uma inexorável nova queda na arrecadação do ICMS em 2021 - tributo responsável pelas universidades estaduais cujos orçamentos, no total, que significam uma fatia de 9,5% do arrecadado -, é como sonhar com um novo milagre da multiplicação dos pães: a se prorrogar os cursos dos que deveriam se formar em 2020, haveria uma leva a mais em todas as áreas das universidades e um colapso orçamentário. Fora isso, um Projeto de Lei (529/20) corre em regime de urgência na Alesp para fazer retornar ao Tesouro cerca de 1 bilhão das três universidades e da Fapesp (petição, com já perto de 80.000 assinaturas contra o PL pode ser assinada no link ao final deste blog). 

Aqui e ali, ouve-se um zunzum de cara ou coroa girando, cada lado com uma hipótese: na primeira, forma-se a alunada assim mesmo – porque sobre a outra turma que virá em 2021 não se poderá criar uma frustração em cadeia de gerações de vestibulandos. Esta primeira opção implica em simplesmente formar todo mundo, e não há como evitar que a maioria dos alunos saiam com preparação incompleta, o que em certas áreas significa grave risco à população, no cotidiano futuro: mais acidentes, desastres, perda de vidas humanas. 

A segunda opção, não menos preocupante, é a não abertura de vestibulares para 2021, sem novas turmas no ano letivo, para “esticar” o último ano, com a inevitável decorrente decepção da massa de candidatos, o que não pode ser negligenciado. Contudo, abrir as portas a novas turmas e prorrogar os cursos em finalização é bomba financeira, organizacional e de espaço no colo das universidades, sem pensar no corte drástico que o governo pretende impor. 

Em viés extremamente delicado estão o ensino fundamental e médio, quando a presença física do professor é essencial. Trata-se de classes, porém o atendimento por aluno é intermitente, e quanto mais novas essas crianças, mais a presença do mestre é fundamental. (Miremos no exemplo de um pequeno país ao sul do nosso, o Uruguai, que forneceu tablets a 100% dos alunos de suas escolas públicas, fato que nos obriga a reverenciá-los como exemplo administrativo, olhando para nosso próprio umbigo com a necessária submissão. Mesmo assim, a transferência eletrônica de informação, tomando emprestado um poema do Drummond, “seria uma rima, mas não seria uma solução”. Ajuda, mas persiste a enorme lacuna presencial). 

Na música, batemos de frente com o quase impossível. Fora poucas aulas como história da música, que poderiam seguir on-line, há problemas insuperáveis nas práticas e individuais: o maior deles, técnico, é a absurda perda da qualidade de áudio. Se o mundo um dia viu surgir o estridente fonógrafo, e dele geringonças de maior pureza, o LP e o HI-FI (alta fidelidade), houve a invasão do mercado pelo MP3, que é um tipo de áudio que se pode gravar ou transmitir em formato comprimido – tome-se como exemplo toda a discografia dos Beatles, que cabe em um único CD. 

Depois, surgiu o MP4, formato que traz um vídeo agregado ao som. A fração de espaço da duração de uma mesma música em MP3 em comparação com outra em disco se deve a essa tecnologia surgida em 1993, técnica que comprime – e elimina várias - faixas de frequência, o que significa perdas especialmente nos extremos, os graves e agudos. Pior do que isso, hoje coqueluche, é o som via streaming (de stream, correnteza, onda), a transmissão fracionada de sons e imagens, tornando-a ainda mais leve. E pobre. 

Na área musical, esta é apenas uma parte do problema. O pior é a falta da presença do professor, o carisma pessoal, o respirar o mesmo ar, o ouvir a voz do mestre, o interagir olhos nos olhos com o aluno de instrumento ou canto, nada passível de ser transmitido on-line. Em exemplo extremo, lembro-me de ter assistido a master classes com grandes nomes, como o gênio do violino Yehudi Menuhin (foto), para uma classe lotada. A cada participante que tocava, ele o presenteava com suaves e comedidas palavras. Mas com que efeito! 

O contrabaixista da Juilliard School David Walter (foto), aos 90 anos, após a execução de um Bach por um aluno fechou os olhos, criando um silêncio sepulcral que fez parte fundamental da cena. E foi somente após ficar calado por meio minuto, após o fim da peça, que ele narrou uma sedutora visão poética da obra, que lhe fora dada pelo lendário violoncelista Pablo Casals. Instado a tocar novamente, o aluno fez emergir com suas mãos naquelas mesmas notas uma outra música, ante participantes e professores embasbacados com a transformação. Coisa que nunca aconteceria por ondas de rádio, fios ou frequências comprimidas. Só quem já lidou com isso é que sabe. Que para iniciantes e leigos, aulas individuais on-line, nessa altura do campeonato, podem ter sua serventia, isso nós sabemos. E para ajudar no sustento dos professores, idem. Porém, mais uma vez, apesar da pandemia, pode ser outra rima, mas não uma solução. 

E qual seria a solução? Não sei, e nem quem saiba. Lembrando a célebre anedota do Chacrinha, o “filósofo” de massas favorito da Tropicália: “Eu não vim para explicar, mas para confundir” (e eu aqui não quero confundir, apenas abrir espaço para reflexão). Nós, educadores, temos por obrigação compreender algo complexo por natureza, mesmo que não consigamos propor alguma solução a contento. Fora isso, é procurar em delírios futuristas alguma tecnologia holográfica por teletransporte com olfato e toque físico no próximo século. Mas a realidade é hoje, e é outra. E dói. Na área federal, as perspectivas são ainda piores. Perderemos um ano, mas a vida humana vem primeiro.

***
Petição contra Projeto de Lei do corte nas universidades do estado de SP e Fapesp: http://chng.it/nHgjNgJN
Canal do Youtube: https://www.youtube.com/user/autrandourado
Para adquirir o livro Memórias de Isolamento - Saudosos Velhos Amigos e Outras Crônicas: memoriasdeisolamento@gmail.com

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

O MESSIAS E MOISÉS

O Juízo Final, segundo Michelangelo

O nome Messias vem de Messiah, do hebraico romanizado Mashiash; para os judeus, refere-se ao Salvador, que virá redimi-los. Entre os cristãos é Jesus Cristo, que morreu para nos salvar, e na parusia conduzir o Juízo Final, “de onde haverá de julgar os vivos e os mortos”. ‘Messias’, no caso deste artigo, é a conjunção do belo e do perfeito, acima do bem e do mal.
Stradivarius
No auge de sua carreira, em 1716, Antonio Stradivari, ou Antonius Stradivarius, de Cremona (latinizado à moda dos luthiers da época), construiu um violino tão próximo da perfeição quanto humanamente possível. Apaixonado por sua obra-prima, com ele permaneceu durante 21 anos, até morrer. Seu filho Paolo vendeu-o ao conde Cozio di Salabue, conoisseur e colecionador de reputação pouco ilibada, que batizou o instrumento com o nome da cidade de seu título nobiliárquico, Salabue. O preço, corrigido monetariamente, teria sido hoje de meros R$ 62.250.
Jean-Baptiste Vuillaume
Mais de um século após a morte de Stradivarius, Luigi Tarisio, outro voraz colecionador italiano, adquiriu o instrumento e, começando a tradição – ou sina -, ficou com ele também até morrer, em 1854. Outro colecionador e especulador, o grande luthier francês Jean-Baptiste Vuillaume, adquiriu não apenas a obra-prima, mas toda a coleção de Tarisio, o dono da preciosidade. Jean-Delphin Alard, grande violinista e genro do então finado Vuillaume, adquiriu o violino da família pelo equivalente hoje a R$ 1.811.000, uma pechincha. Atualmente, um leilão do instrumento reverteria em tumulto, e com uma grande interrogação: o violino, em princípio, não tem preço.
Conde Cozio di Salabue
Foi em uma conversa entre Tarisio, Vuillaume e Alard sobre a perfeição daquele instrumento, que o último cunhou uma frase decisiva: “certamente, senhor Tarisio, este violino é como o Messias dos judeus, que por ele sempre esperaram, mas nunca chegava”. Bastou para o instrumento ser rebatizado com o nome pelo qual o conhecemos hoje.
A antiga loja e luteria Hill & Sons
A família do especialista Hill, luthier e poderoso colecionador de Londres, adquiriu-o para o Ashmolean Museum de Oxford, onde até hoje é mantido em perfeito estado de novo, e serve de paradigma para todos os luthiers do mundo. Raros tocam ou tocaram o violino, destacando-se o virtuose Joseph Joachim, que declarou por escrito nunca haver tocado em um instrumento de som e volume a um só tempo tão suave e poderoso, opinião dividida com Nathan Milstein, fabuloso solista.
O Parnassus, por Rafael
O ‘Messias’ ficou, assim, a um passo da perfeição, o Gradus ad Parnassum. Parnaso é uma deslumbrante montanha perto de Delfos, na Grécia. Na mitologia, lá morava Apolo, deus da perfeição, da harmonia e da beleza, ladeado pelas musas inspiradoras das artes; também habitava Dionísio, deus das festas, do vinho e do prazer. Nada mais apropriado.
O Papa Julio II, por Rafael
Inspirado em capítulos do Êxodo segundo a Vulgata, tradução latina da bíblia da época, o florentino Michelangelo Buonarroti, gênio da Alta Renascença, começou a construir em 1505, por encomenda do papa Júlio II, uma estátua de Moisés em puro mármore para ser colocada na igreja de San Pietro in Vincoli, em Roma. Ornamentação de pompa, circunstância e vaidade para a própria sepultura papal, foi concluída apenas 32 anos após sua morte, em 1545, tempo de trabalho que o escultor levou para a finalizá-la. Júlio II era conhecido como “o papa guerreiro”, dado o seu histórico exército de muitos embates militares.
Michelangelo interpretou a seu jeito, como os italianos de seu tempo, trechos do Êxodo na Vulgata: Moisés com as tábuas da lei e dois chifres na cabeça, atribuídos a uma tradução equivocada da palavra keren que se referiria a dois raios fulgurantes, a sabedoria que lhe teria sido dada por Deus para sua missão de legislador divino. Uma obra tão perfeita que, segundo se conta, teria feito um Michelangelo raivoso exclamar, depois de atirar sua marreta de trabalho sobre o joelho da estátua: perchè non parli? Por que não falas? (puro folclore popular, segundo especialistas como Antonietta Bandellonni, em Michelangelo Buonarroti è tornato).
Em seu ensaio “O Moisés de Michelangelo”, Freud, admirador do artista, interpreta a obra com detalhes que  descrevem o espírito da escultura com a perspicácia do grande psicanalista e observador apaixonado: “Moisés está sentado, o corpo voltado para a frente, a cabeça com sua volumosa barba para a esquerda, o pé direito apoiado sobre o chão e o esquerdo elevado para que apenas os dedos do pé toquem a base. Seu braço direito apoia as Tábuas da Lei com algo na palma da mão que se parece com um pequeno livro, junto a uma mecha de sua longa barba. O braço esquerdo descansa sobre seu colo”. A obra é tão perfeita, no rosto, nas mãos, nas vestes, na expressão, na simbologia peculiar a Michelangelo – como o as diferenças entre as mãos, as veias da direita saltadas, contrastando com a esquerda, da sabedoria e expressão, em suave repouso. Segundo Freud observou, Moisés teria acabado de descer do Monte Sinai, onde fora expulsar adoradores do Bezerro de Ouro (Êxodo, 32), razão da mão direita sofrida por carregar as Tábuas de pedra.
O Gradus de Debussy
A escolha dessas duas altas figuras bíblicas, Messias e Moisés, como paradigma de obras de arte próximas à perfeição, não foi por acaso, vai além da ligação religiosa dos títulos. Ambas representam a busca pelo perfeito artístico, ideia que dá título a várias peças e estudos de virtuosismo musical, representando os degraus da escalada para a perfeição (Gradus ad Parnassum) - que nunca será atingida.
                                          ***
Canal do Youtube: https://www.youtube.com/user/autrandourado

Para adquirir o livro "Memórias de Isolamento - Saudosos Velhos Amigos e Outras Crônicas": memoriasdeisolamento@gmail.com



sábado, 8 de agosto de 2020

2020, O ANO QUE AINDA NÃO TERMINOU


Tão, tão cedo, e já ouvimos falar do réveillon que não vai ter, à parte os imprudentes grupos a dar os sete pulinhos da sorte nas ondas das praias. As vagas do mar continuarão indo e voltando, e os habitués se preparam para beijos, abraços e juras, apesar dos riscos. A passagem do ano no dia 31 de dezembro é uma convenção cristã, que ocorre em datas diferentes em outras religiões e calendários. Após o réveillon, saudemos o carnaval que não haverá, talvez soníferas reprises na TV, como nas novelas. E não há como prorrogar esse deus-dará para além do carnaval: de hoje a tantos meses, a imprevisibilidade dá tom e compasso.
Mais comedidos, celebremos um Natal diferente, que poderá acontecer sem maiores rega-bofes nas pequenas famílias confinadas: uma ceia ” com mínimos riscos, mesmo que entre poucos familiares. Os mais ricos e prudentes terão gordas festas on-line, têm cacife para tais repastos e tecnologias. Aos mais pobres, um frango com arroz, grandes famílias se amontoando em um cômodo - alijadas, por exclusão social, além dos banquetes, das toneladas de advertências despejadas sobre nós pela mídia.
Jean Cousin: A parusia e o Juízo Final
Pelo calendário gregoriano, celebra-se o nascimento do Salvador no dia 25 do mês. Que venha a parusia, segunda vida do Senhor na Terra, conforme o apóstolo Paulo. Que seja logo, o mundo padece demais: a natureza que o Pai criou, as florestas, a flora e a fauna. E, Senhor, não nos esqueça, pecadores a sofrer as provações deste ano.
Baile funk
Não, Chico, não dá pra cantar “aqui na terra tão jogando futebol / tem muito samba, muito choro e roquenrol” (talvez só a parte do samba que diz “mas o que eu quero é lhe dizer / que a coisa aqui tá preta”). Futebol? Nas praias, ou bola de meia na periferia, por conta e risco. Samba? Dançam o funk em bandos, despreocupados. Só não nos faltará uma parte da letra da música: o choro! (Não aquele das notas musicais, mas as lágrimas que molham os lenços de uma imensidão de famílias enlutadas).
Mas o Brasil deve continuar! Precisamos eleger nossos edis e alcaides, pois sem eles perderemos de vez as rédeas do futuro, em meio à desordem constitucional. Venceremos esta etapa da postergação do pleito por um mês, para novembro, e quem sabe então veremos a reta pandêmica ascendente se curvar, apesar das desobediências e inobservâncias - ingênuas ou estimuladas - a que assistimos.
Há um lado positivo no provável escrutínio por voto manual, sem os botões que seriam apertados incontáveis vezes pelos cidadãos, entre eles os contaminados (luvas cirúrgicas para quase 150 milhões de eleitores estão fora de cogitação!). Aos mesários convocados, sonho de proteção por cabines acrílicas bem vedadas na frente, nos lados e em cima, saunas em tempos de calor. Um ar condicionado ajudaria muito, mas quantos parcos municípios poderão arcar com o acrílico, quantas as raríssimas seções dotadas de refrigeradores de ar no país? Perfeccionismo impossível, desconfortos por um dia a poupá-los de maiores riscos.
Foto: agazeta.com.br
Votaremos sem o tão sonhado biométrico, mas, mesmo assim, caberá sufragarmos com consciência, longe dos perigosos cantos das sereias e discursos ensandecidos. Com o voto manual, ao menos serão frustrados os velhos arautos de alegadas fraudes nas urnas eletrônicas, que justificavam suas futuras ou passadas derrotas eleitorais.
Índice Infomoney
Trump faz bandeira de campanha sua guerra particular contra a poderosa China, que antes raspava nos 7% de PIB ao ano, e neste 2020 tem previsão do FMI para 1,2%. Pior ainda, se na guerra de factoides o Brasil continuar a seguir o líder, perderemos os parceiros chineses, responsáveis por mais de 1/3 dos nossos negócios internacionais.
Mas não nos rendamos ao popular ‘senta e chora’. Médicos de hoje não mais iludem e passam a mão na cabeça de pacientes desenganados dizendo ‘está tudo bem’, camuflando a verdade. Tal qual, um país que sobrevive com respiradores não pode ser enganado: o panorama não é alentador, é sombrio. A busca permanente por informações, a injeção de realidade e a visão crítica de um panorama em que, do lado pandêmico, sonha-se com promessas de vacinas que em breve serão bem-sucedidas, mas nem tão cedo aplicadas em larga escala. Há os vaivéns econômicos, um navegar sem rumo visando a um delirante mercado 100% livre e uma economia quase nada regulamentada, à moda do surrado “deixai fazer, deixai passar”, que ainda sobrevive mais de um século depois.
Gérard de Nerval
Decepciona inexistir correlação de forças para alguém apresentar planos, programas e caminhos a seguir, fora das moléstias ou sequelas políticas a serem enfrentadas com o debelo da melancolia – que, como disse o francês Gérard de Nerval (1808-1855), é passividade mórbida, “uma ‘doença’ que consiste em vermos as coisas como elas realmente são”.
Como partes de um todo, resta-nos prosseguir juntos e de cabeça erguida, lembrando Magrão e Sá na voz do Milton: “Nada a temer, senão o correr da luta / nada a fazer, senão esquecer o medo, medo / abrir o peito à força, numa procura / fugir às armadilhas da mata escura”.
***
Canal no Youtube: https://www.youtube.com/user/autrandourado
Livro: Memórias de Isolamento - Saudosos Velhos Amigos e outras Crônicas: memoriasdeisolamento@gmail.com

sábado, 1 de agosto de 2020

O SONHO

Dante Marchetti
“Os sonhos mais lindos, sonhei / de quimeras mil, um castelo ergui...” Gravação eternizada em 1976 na voz incomparável de Elis Regina, “Fascinação” já havia sido cantada por meio mundo, a partir da composição de 1905 do francês Maurice de Féraudy e Dante Marchetti, que no Brasil recebeu letra de Armando Louzada. A autoria a César seja dada, pois nesta terra vale para o compositor o ditado “papagaio come milho, periquito leva a fama”, e cantores passam a ser autores na boca do povo.
Em 1965, o grupo Mamas and the Papas gravou “California Dreamin’”, sonho de saudade do calor de Los Angeles em um duro inverno em NY. Mais tarde, John Lennon cantou o fim do sonho Beatle de uma geração em “O sonho acabou, o que posso dizer?” (The dream is over, what can I say?), de onde a ‘casquinha’ de Gil em “O sonho acabou / quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhou”.
William Blake, circa 1786
“Um Sonho de uma Noite de Verão” (A Midsummer Night’s Dream) é uma espirituosa amálgama de romance, cenas cômicas, mágicas e plenas de jovialidade escritas por William Shakespeare em 1595, sonho que descreve o casamento de Teseu, rei de Atenas, e Hipólita, filha de Ares, neta de Zeus e rainha das amazonas, na mitologia grega. Em ambiente envolto por véu onírico em um bosque habitado por fadas, seis jovens atores apresentam, durante a cerimônia nupcial, a peça “Píramo e Tisbe”, contada por Ovídio.
Quase dois séculos e meio após, em 1826, Felix Mendelssohn, ainda jovem, compôs uma linda abertura orquestral que leva esse título de Shakespeare, mas apenas dezesseis anos depois, em 1848, viria a escrever a música incidental para a peça, sob a bruma de um clima de sonho. A obra inclui a popularíssima Marcha Nupcial, executada em nove entre dez casamentos nos dias de hoje.
Em “A interpretação dos sonhos”, Sigmund Freud estabeleceu conexões entre o estágio do sonho, que hoje sabe-se acontecer na fase do “movimento rápido dos olhos” (REM, ou Rapid eye movements), e o subconsciente do indivíduo, tendo como pano de fundo  desejos, frustrações e traumas sexuais. Nas sessões de psicanálise, Freud anotava os sonhos relatados pelo paciente e interpretava significados, que considerava de grande importância para suas conclusões clínicas.



Rêverie, por Paul César Helleu
O daydreaming, ou rêverie, em francês (algo como ‘sonhar acordado’) é o sonho em plena vigília, um mergulhar acordado em devaneios, tão frequente na vida que chega a nos ocupar uma parte significativa do tempo, nos dias modernos. Não há consenso sobre o daydreaming entre as diversas correntes da psicologia, mas os freudianos parecem associar o estado onírico na vigília aos sonhos durante o dormir: instintos reprimidos. O escritor americano Mark Twain (“As aventuras de Tom Sawyer”) longe dessas teorias, resumiu esse vagar da mente em sua meninice, lamentando a fantasia desfeita: “Quando criança, lembrava-me de tudo: do aconteceu e do que nunca havia acontecido. Hoje, lembro-me apenas do que realmente acontecera”. Sonho e realidade se andavam de mãos dadas.
Martin Luther King Jr.: I have a dream
Fora do ambiente psicanalítico ou onírico, também chamamos sonho uma vontade intensa de que um futuro de grande vulto se realize, como foi o caso de Martin Luther King Jr, pastor batista e líder afro-americano em sua luta contra o racismo e pelos direitos civis. Com “Eu tenho um sonho” (I have a dream), proferiu um discurso histórico em 28 de agosto de 1963, na famosa “Marcha sobre Washington por emprego e liberdade”. O sonho de King era pela igualdade racial, pelo dia em que seus filhos pudessem viver em equidade de condições com os dos cidadãos brancos. Protestou por suas crianças serem “despojadas de sua identidade e privadas de dignidade”, e o negro “vítima dos indizíveis horrores da brutalidade policial”. King Jr. foi assassinado cinco anos depois.
Quais seriam os sonhos de hoje, voláteis como nuvens que são? Talvez o maior, em todos nós, seja o dos mais simples arbítrios. A liberdade de emoldurarmos velhas máscaras como símbolos de um tempo que não queremos viver novamente; a de poder sair, abraçar, beijar, fazer novas amizades, erguer juntos copos de chope em celebração à vida, gargalhar. Ou ir a um concerto, ouvir músicos de volta à sua paixão e labuta, queremos a liberdade de poder sair com o cuidado de antes - evitando sermos atropelados por um ônibus, dândi embriagado ou trem; de sermos assaltados, vítimas de bala certeira ou perdida, coisas do velho cotidiano, como se o antigo dia a dia se tornasse poço de desejos e conquistas. “Navegar é preciso”, disse o poeta Fernando Pessoa citando os navegadores, como se a vida, em si, não o fosse.
Muitos, por fanatismo ou ignorância, correm o risco e nos colocam em perigo. Vale trazer à cena agora um grito de lucidez de Caetano Veloso, em “Janelas abertas”: “Sim, eu poderia abrir as portas que dão pra dentro / percorrer correndo os corredores em silêncio / (...) Até que a plenitude e a morte coincidissem um dia / o que aconteceria de qualquer jeito / Mas eu prefiro abrir as janelas pra que entrem todos os insetos”. Entre os milhares que nos braços da morte, na plenitude da vida, foram levados deste mundo por desprezarem o fato de que não há mágicas a serem feitas - ao menos tão cedo - nem drogas miraculosas de falsos curandeiros modernos. Cabe principalmente nos irmanarmos às incontáveis famílias em luto pelos que entraram nessa mórbida contabilidade não por risco consciente - mas vítimas de um acaso fortuito rumo ao trabalho para não perder o emprego que provém o pão de cada dia aos seus familiares.