Posse é a detenção do uso
ou fruição de alguma coisa ou direito. Ou seja, em termos práticos não equivale
à propriedade – a exemplo de um imóvel, quando esta implica em domínio completo
da coisa. Valho-me desta comparação simplesmente para lembrar que a posse pode
ser um direito, mas não dá, em princípio, o direito do proprietário do bem. Por
analogia, vale aplicar o conceito à investidura em um cargo público de mandatário
da nação, um presidente (muito embora alguns, como os ditadores e
protoditadores, desejem que ter a posse e a propriedade são a mesma coisa). Por
quatro ou cinco anos, o cidadão investido de um cargo eletivo - legisladores,
presidente, governadores - exerce o poder que lhe foi conferido pelo povo na
forma lei de seu país.
Em seu juramento,
conforme o Art. 78 da Constituição Brasileira, ao tomar posse o presidente assume
o compromisso de “manter e defender a Constituição, observar as leis, promover
o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a
independência do Brasil” durante o período para o qual foi eleito.Nos EUA, ao tomar posse, o mandatário diz: “Juro
solenemente que cumprirei com fidelidade o cargo de presidente da República e
que farei o melhor que puder, preservarei, protegerei e defenderei a
Constituição dos Estados Unidos”. Os dois discursos se afinam no cerne da
democracia republicana: a Constituição da República (do latim res publica,
ou coisa pública, palavra que por si deixa claro que a posse, em uma
democracia, não se identifica com a propriedade de uma pessoa).
A posse de um Chefe de
Nação não prescinde de solenidade! No caso dos EUA, isso implica em grande pompa,
protocolos, tradições, respeito, ordem. Ao menos uma dessas tradições foi
rompida no dia 20 de janeiro: o ex-presidente Donald Trump negou-se a transmitir
o cargo – no Brasil, “passar a faixa” – ao eleito Joseph R. Biden Jr.,
preferindo evadir-se para a Florida (foto), deixando claro que, do alto de sua soberba,
ele consideraria a passagem uma humilhação. Em 1801, o segundo presidente, John
Adams, não fez a transmissão para Thomas Jefferson, que o substituiu na ainda
então inacabada Casa Branca. Em 2021, apenas uma tradição, introduzida por
Ronald Reagan, não foi rompida por Trump: deixou sobre a mesa oficial do novo
presidente, repetindo o gesto dos cinco últimos mandatários ao deixar o cargo,
uma carta, que Biden resumiu a um adjetivo: “generosa”. O conteúdo permanece em
sigilo e dá margem às mais variadas ilações.
Soldados e guardas com
seus uniformes de gala e canhões festivos distribuíam-se pelos arredores e
locais onde a caravana de Biden passou ou estacionou. Não houve a aclamação pública
de muitos milhares de cidadãos devido a dois temores, o segundo mais recente: a
Covid-19 e algum ataque de vândalos – isso, apesar dos 20 mil soldados
fortemente armados na área do Distrito de Colúmbia; os seguranças que
acompanhavam a pé a limo presidencial e seu comboio – devendo usar até o próprio
corpo para defender o 46º presidente americano eleito -, os agentes secretos,
atiradores de elite, barreiras e barricadas. Não fosse a deplorável invasão do
Capitólio no dia 6 e a Covid, teria acontecido uma festa popular digna de
memorável “pompa e circunstância” - binômio que dá título a seis marchas
militares do compositor inglês Edward Elgar (1857-1934).
E por falar em música, o
show foi roubado por Lady Gaga, que surgiu esplendorosa com uma enorme saia
vermelha digna de uma nobre do passado, blusa preta e uma águia dourada sobre o
peito. Comedida, sabia quem era o dono da festa, a quem cumprimentou com o
devido respeito e discrição. À curta introdução da Banda, seguiu-se a voz da
cantora como eu nunca tinha ouvido, no o belo Hino Nacional americano Star
Spangled Banner, no espírito original do anthem inglês (e mais lindo
se cantado a cappella, sem acompanhamento). Gaga só destoou na palavra final,
“a terra dos livres / e o lar dos bravos”, quando fez um melisma jazzístico
fora do espírito sóbrio da interpretação.
Stefani Joanne Angelina
Germanotta nasceu no coração de Manhattan, em 1986. Iniciou-se no piano aos 4
de idade, e apesar de saber ler música preferia tocar de ouvido, talento não
lhe faltava. Aos dezessete, ingressou na Tish School for the Arts da New York
University. Fez sucesso com hip-hop, tornou-se empreendedora, envolveu-se com o
rock e o drama e estourou nas paradas americanas. Talvez por essa ampla experiência
e grande sensibilidade, aliadas à sua formação, tenha cativado tanto as atenções
na festa de Biden. Ao emprestar sua voz magnífica – que confesso pouco ter ouvido
até a cerimônia a que assisti - Gaga sabia que estava colaborando não apenas para
a posse do 46º presidente americano, mas para a esperança de que Biden transforme
seu país, aproxime nações, conforme disse em seu brilhante discurso - que é o
que todos queremos, de lá e cá, além-fronteiras norte-americanas.
Não foi realizada ali, simultaneamente
como de praxe, a despedida de gala de mais um mandatário, apesar da presença de
três dos quatro últimos presidentes, pois Trump voou para a Florida: Bush, republicano,
Clinton e Obama (foto), democratas, com as respectivas ex-primeiras damas (Carter teve
um impedimento e cordialmente declinou). Houve, sim, um ato simbólico maior, o expurgo
moral de um líder abaixo de quaisquer superlativos, um homem que abalou seu
país e o mundo, enevoando o brilho e a honra da nação americana. Resta a Biden e Kamala Harris, agora presidente do Senado, restaurá-lo.
Alquimia
é palavra que vem do árabe al-kīmyiā, dos tempos mais antigos. Refere-se
a práticas protocientíficas, ou seja, não-científicas. (Proto é um antepositivo que quer dizer algo
como pré, como em protótipo, algo que prepara, antecede, como a Protofonia da
Ópera Il Guarany, de Carlos Gomes. Pejorativamente, significa um arremedo, algo
que não pretende ser). Os alquimistas dos primeiros tempos tentavam, sem base
alguma, purificar e transformar metais como chumbo em espécies nobres, como
ouro. Buscavam criar algum produto químico que tornasse os homens imortais, curasse
qualquer doença e encontrasse a Pedra Filosofal, que teria o condão de
transformar materiais e rejuvenescer, razão pela qual era tida como símbolo de
uma bênção universal a se alcançar.
Em
sua música “Os alquimistas estão chegando” (1974), Jorge Ben descreve: “São
pacientes, assíduos e perseverantes / executam segundo as regras herméticas / desde
a trituração, a fixação / a destilação e a coagulação”. Mostrou-os como seres exóticos,
imersos naquelas crendices, ilações e supostos experimentos científicos. Os
pós-alquimistas de Jorge Ben seriam os dos tempos modernos, que persistem com
suas práticas obscurantistas até os dias de hoje, exercendo certo fascínio
sobre quem ouvir explicações rápidas, simplórias e retrógradas sobre assuntos
que deveriam ser analisados e comprovados pela ciência.
Desde
os meus tempos de estudante, o trinômio aplicado à filosofia era basicamente o da
chamada dialética de Hegel: A tese seria uma ideia a ser analisada, a antítese,
como a palavra diz, seu contrário, para colocá-la à prova, e finalmente a
síntese, após esse confronto: uma ideia resumida, ou conclusão. Processo
semelhante acontece com o direito e a ciência, com denominações diversas mas
princípios lógicos comuns.
No
dia 15/01, a revista Isto é noticiou: “Pazuello montou e financiou força-tarefa
para disseminar cloroquina em Manaus”. Seria essa sua alquimia, a que não
precisa de explicações além de obsessão ou mania (aqui, no sentido de
psicopatia) de sua lavra ou de seu chefe, a quem obedece cegamente? O mundo
inteiro não reconhece benefício algum na droga – até pelo contrário, é um
produto danoso à parte psíquica. Ainda no dia 30 de novembro, em Roma, a EMA
(agência de medicamentos da União Europeia) alertou que o uso da medicação, em
qualquer de suas denominações, seria responsável por distúrbios psiquiátricos.
Todas as pesquisas mundiais apontavam não apenas ineficiência contra a Covid, mas
também a periculosidade do produto, já estocado em larga escala pelo governo
brasileiro. Pazuello, fiel servo, deveria saber disso – se não como cientista
ou médico, coisas que ele não é, ao menos como ministro, leitor de jornais por
obrigação, costume que ele parece não ter.
No
mesmo mês de novembro, Pazuello já havia sido alertado para um iminente colapso
no estoque de oxigênio, enquanto sua força-tarefa despejava cloroquina nos
hospitais de Manaus. Privilegiou a alquimia do mandatário da nação em
detrimento do oxigênio e, consequentemente, da vida de inúmeros cidadãos
manauenses.
No
dia 14 de janeiro, um conceituado jornal espanhol, El País, noticiava: “Morrer
sem oxigênio em Manaus, a tragédia que escancara a negligência política na
pandemia”, ressaltando que “após minimizar a crise, Planalto e Governo do
Amazonas correm contra o relógio para transferir doentes para outros estados (...)
Só “nos primeiros dias de janeiro, morreram 1.654 pessoas no estado, mais do
que entre abril e dezembro”. E em 15 de janeiro: “O estado brasileiro do
Amazonas está ficando sem oxigênio durante onda de Covid-19 “, ressaltando que
o Brasil tem o segundo maior número de mortes, depois dos EUA. No mesmo dia, a
CNN americana informava que 60 bebês prematuros foram transportados para São
Paulo, a 3.875 km dali. Ainda naquele dia, o Estadão trazia matéria com o
título: “Entenda o que aconteceu em Manaus”: “capital do Amazonas voltou a
registrar recordes de internações e sepultamentos; situação foi agravada na
quinta-feira quando a falta de estoque de oxigênio levou pacientes à morte por
asfixia”.
No
dia 16, O prestigioso BBC News britânico estampou: “Hospitais do Brasil ficam
sem oxigênio para os pacientes do vírus”, enquanto no dia 17 a americana CNN escancarava:
“Saúde Pública no estado brasileiro do Amazonas em ‘colapso’, enquanto as
infecções por Covid-19 transbordam”. No
mesmo dia, o diário Ouest France deu a manchete: “A Covid-19 asfixia novamente a cidade de
Manaus” - “Já tendo passado pela pandemia na primavera, a capital do estado do
Amazonas se encontra sem leitos de hospital e com falta de oxigênio. A
preocupação se elevou quando uma variante do vírus foi detectada”. E assim multiplicaram-se
notícias aqui e pelo mundo. Brasília distribuiu fortunas em curandeirismo à luz
do dia, com sua enviesada catequese política, ao passo que um número crescente
de mortos se acumulava, conforme se pôde ver nesta breve compilação de matérias
publicadas em apenas quatro dias.
O
compositor Sidney Miller, cult nos anos 60/70, cantou: “Duas doses de ácido
lisérgico / ou uma bomba de gás lacrimogêneo / qual das duas que você prefere /
na sua linda tenda de oxigênio?” A letra era simbólica - claro, tempos de ditadura
-, mas como poesia ela pode ser entendida de várias formas, as palavras se
transmutando na fecundidade do pensamento. Hoje, entre o delírio de uma droga
sem efeitos além da vã esperança em momento de agonia ou a morte certa em tenda
de oxigênio exaurida.
Nunca fui fã daquele tipo de
enlatados americanos como SWAT (Armas Táticas e Especiais) e Miami Vice, mas confesso
que, na falta de sono, qualquer thriller serve: o suspense, ironicamente, me
embala até o ponto de desligar a TV e cair como criança nos braços de Orfeu. Filmes
épicos, sim, Sansão e Dalila e El Cid, sempre me prenderam a atenção de forma
especial, em parte porque versados sobre fatos históricos, outro tanto porque
costumavam ser muito bem feitos.
A história da humanidade já é
emocionante por si, apesar de sempre sangrenta e carregada de violências de
todos os tipos. Desde 1240, em tempos de barbárie da invasão contra o Tibet,
foram dezenas de ataques da Mongólia a outros países e territórios, tendo como
bandeira a fome insaciável por conquistas. Em 1296, o ataque da Escócia sobre a
Inglaterra, e já em 1480 o avanço sobre Rhodes pelo Império Otomano, que também
atacou a Áustria em 1596. Em 1693, a Mongólia é tomada pela China, e em 1792 a
Polônia toma a Rússia. A lista é imensa, até chegarmos à barbárie moderna: duas
grandes guerras, o genocídio dos nazistas sobre o povo judeu e de armênios
pelos otomanos. A conquista e o domínio de um povo sobre outro pela força bruta
parece remontar ao tempo de Neandertal.
Um corte e uma pergunta: o que
aconteceu naquele dia 6 de janeiro de 2021 entre as avenidas Constituição e
Independência – nomes tão simbólicos! – em Washington DC? O Capitólio, símbolo
americano e casa do Legislativo, iria ratificar o nome dos recém-eleitos Joe
Biden e Kamala Harris como presidente e vice. No dia 8, a editora-chefe do famoso
jornal USA Today organizou nomes, fatos e personagens, muito além de simples
provocação de jovens baderneiros.
Rudolph Giuliani (foto), ex-prefeito de NY e
homem forte de Donald Trump, naquele dia 6 subiu em um palanque no National
Mall exigindo mais dez dias para investigar a eleição americana – como se
investigar não fosse um processo sobre dados concretos e reais, e sim passar uma
peneira até em água para ver se surge uma fraude. Aos gritos de “acabou a
conversa!”, buscava radicalizar de vez a já formada balbúrdia. A seguir, o
presidente Trump ergue-se para a multidão, já estimulada por mentiras e gritos
de guerra como os de Giuliani - “julgar pelo combate!” E o próprio presidente, suposto
guardião da República e dos ideais americanos, conclama a massa a seguir para o
Capitólio para levar à cerimônia “alguma ousadia e audácia”.
Trump no comando: “Vamos descer a
avenida Pennsylvania rumo ao Capitólio (...) falar com nossos republicanos – os
fracos, porque os fortes não precisam de nossa ajuda – nós vamos tentar dá-los
o tipo de orgulho e ousadia de que eles precisam para que nos devolvam o país”
(registrado pelo USA Today). Havia até manifestantes pendurados em árvores, e o
trajeto delineado por Trump foi seguido à risca. O show estava feito. O jornalista
Chris Quintana revela ter ficado chocado com a festividade da cena,
comparando-a a um festival de música ou algo parecido. Muitos faziam selfies em
frente ao Capitólio antes de invadirem o prédio.
Um louco com uma capa que trazia o
lema Keep America Great posava ao lado de uma rústica forca engrossando
o coro “parem o roubo”. Outro, de chifres como um viking, aboletou-se em um
gabinete. Jornalistas descrevem a imagem de fanatismo e insanidade, tão avessos
à democracia simbolizada pelo enorme monumento a George Washington, ali à
frente do prédio do Capitólio. Manifestantes ensandecidos foram recebidos por
forças do Congresso de forma descrita por repórteres como “suave” e
“complacente”, até convidando a guarda a juntar-se a eles. Não, nem The Capitol
é Das Kapital e nem esse mob a revolução russa - unindo
proletários, líderes políticos e soldados em prol de um ideal. Mesmo porque não
havia um ideal, apenas um presidente debatendo-se em causa própria e seus
fanáticos seguidores. Um invasor, perguntado pela jornalista do Congresso
Chrystal Hayes se a Polícia havia tentado contê-los, simplesmente deu uma
gargalhada: “eles foram derrotados”; “os agentes foram muito corteses conosco,
nós passamos direto por eles”. A descrição do USA Today foi de que a repressão
teria sido “suave”.
Cinco pessoas morreram, sendo que uma
pela Polícia e outras quatro vítimas de ferimentos. Um desses, oficial do
Capitólio, veio a falecer na sexta, dia 8. Porém, mesmo com a certificação da
chapa Biden-Harris na Presidência, após a evacuação de autoridades e seu posterior
retorno, ficaram perigosamente feridas a República e a democracia americanas.
Tudo isso provocado por um fanático orador e aliciador da extrema direita dos
EUA, o próprio presidente, que deveria defender os valores mais caros à nação.
Surpreende-me especialmente – lembrando a espetaculosa SWAT, que citei no
começo deste texto - a quase inação das forças policiais no episódio – por ter
vivido naquele país, sei que é um lugar onde com Polícia não se brinca. À parte
a costumeira truculência dos agentes nesse tipo de manifestação, um carro que
desobedeça à ordem de parar é uma sinalização para agentes atirarem.
Bloqueado pelo Twitter e Facebook por
incitação à violência, contra as normas das redes, um presidente já mudo e
imobilizado aguarda o dia 20 para amargar, com frustração, a diplomação de
Biden-Harris à Casa Branca. Esperamos agora ver uma América grande de verdade,
digna de seu patrimônio: (...) “a terra dos livres e o lar dos bravos” (do hino
Star Spangled Banner) – e sob o império da lei.
A Argentina é um país amigo que apesar
das diferenças culturais tem em comum conosco a bagagem latina. Algumas diferenças:
dominada pelos espanhóis, a Argentina proclamou sua independência em 9 de julho
de 1816. O Brasil, “descoberto” e colonizado pelos portugueses, tornou-se
independente seis anos depois, em 7 de setembro de 1822. A Argentina é um
vasto país: 2.800 mil km² (8º maior do mundo), quase 33% de nosso território,
8.510 mil km² (5º).
Demograficamente, não se repete tal proporcionalidade:
com quase 212 milhões de habitantes, o Brasil tem 4,86 vezes a população do
país vizinho, de 43,6 milhões. Na música, porém, somos bem chegados: o
imponente teatro Colón (1908), de Buenos Aires, Meca da ópera na América Latina
que passou a receber as grandes companhias, inspirou a ideia de fundação dos teatros
Municipal do Rio (1909) e de São Paulo (1911). Aqui é terra de Villa-Lobos e
Guarnieri, lá, de Maurício Kagel e Ginastera; esbarrando nas tênues fronteiras entre
o clássico e o popular, cá temos Jobim, eles Piazzolla. E se exaltamos o samba
e a bossa nova, lá eles desfrutam do maravilhoso tango. Cá se toca violão e
sanfona, lá violino e bandoneón. Enquanto falamos e escrevemos em português, entre
eles é o espanhol, belo idioma, tão similar!
O futebol é paixão nos dois países! A
seleção argentina levou duas copas do mundo (1978 e 1986), aqui colecionamos cinco
(58, 62, 70, 94 e 2002), longe de uma equivalência em termos populacionais. Em
ídolos somos parceiros: Pelé (80 anos), o mestre perfeccionista, vigoroso e
temido pelos adversários, e o mago Diego Maradona, um artista simplesmente venerado,
um ícone de sua terra, para tristeza do povo falecido em 2020 aos 60 de idade. Ambos
célebres por escreverem a história do futebol recente com gols, dribles e
lances homéricos.
Contudo, há um viés belicista que frequentemente
extrapola todos os limites do razoável, tanto entre brasileiros e argentinos
quanto entre estes e uruguaios, uma rivalidade ferrenha que se pode creditar ao
passado histórico, desde as guerras do Prata e da Cisplatina (1825-1828), quando
da disputa territorial entre o Brasil e a Argentina envolvendo a província onde
hoje fica a República do Uruguai.
Há uns 20 anos, fui participar de um
debate na Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), em São Leopoldo, RS.
Logo no princípio da conversa reparei que na plateia um grupo menor sentava-se isolado
em uma área à esquerda. No intervalo, indaguei a um colega debatedor, que me
explicou: meio à parte, sentavam-se os uruguaios. À direita, a partir do meio
para cima, os argentinos, e, na frente, um bom número de brasileiros. Assaltou-me
uma sensação desconfortante. Ora, éramos todos músicos, e naquela mesa eu me sentia
à vontade com um uruguaio, um argentino e talvez outro brasileiro.
Terminadas nossas exposições, fomos
levados a uma bela churrascaria. Lá chegando, sentei-me à mesa onde já estavam alguns
uruguaios. O papo começou bem, à nossa frente uma imensa ‘costela no bafo’ - à
argentina, aliás -, assando bem ali no chão para nos provocar, até que entra um
grupo maior, com certa euforia. Da cadeira do lado, meu vizinho uruguaio
perguntou: ¿son los argentinos? Respondi que sim, e no ato, após
trocarem poucas palavras entre si, retiraram-se. Até em nosso meio musical essa
rixa transparece, especialmente em ‘ringue’ livre, o trabalho, e aqui, mesmo entre
os residentes e os naturalizados.
Voltando à Argentina, temos muito em
comum: ambos sobrevivemos a violentas ditaduras durante longos períodos (10
anos, eles, e 21, nós) - tortura, mortes, censura e até ‘acordos’ entre as
repressões dos dois países, tristes laços que 'desapareceram' de um hotel até com nosso
pianista Tenório Jr. No passado, ambos tivemos líderes populistas com um pé no
fascismo mussolinista, Perón e Getúlio.
Em 2020, na saúde, o presidente
argentino Alberto Fernández anunciou que na terça-feira, dia 5 de janeiro de
2021, daria início à vacinação em massa com a Sputnik-V russa contra a Covid-19.
O Brasil ainda claudica, entre o negacionismo e a inércia, deixando o povo
mercê de uma nova e imprevisível onda da doença. Enquanto isso, o Senado
argentino – sem entrar em discussões ideológicas ou de credo – aprovou, por 38 contra
29 votos e uma abstenção, o aborto espontâneo até a 14ª semana de gravidez.
Racismo e Xenofobia andam de braços
dados, preconceitos que têm como mote a ideia de supremacia e superioridade de
uma raça ou país sobre outro (entre regiões atende nos dicionários pelo nome de
regionalismo). São eles os instigadores do ódio, das guerras, das violações aos
direitos dos cidadãos e obstáculos ao diálogo pelas conquistas sociais entre países,
regiões e cidades. Surgem como muralhas de preconceitos entre Sul e Nordeste, brancos e
pretos, cariocas e paulistas ou mesmo uma cidade e outra - genericamente, todos
os que se considera fora do seu time.
Temos o que admirar nos argentinos, pois
se em várias coisas os superamos, em outras por eles somos superados - trata-se de nobreza
de hermanos vecinos estendermo-nos as mãos. Afinal, há que se reconhecer que em
1936 a Argentina já havia recebido o Nobel da Paz, com Saavedra, enquanto o de
1970 foi desviado de Dom Hélder Câmara por uma guerra de informações tendenciosas e falseadas do
presidente Médici com seus diplomatas em Oslo e Paris. A Argentina voltou ao Nobel da paz com Esquivel em 1980. Salve, latinos! Como tal, devemos nos orgulhar também de Jorge Mario Bergoglio – Francisco, o Papa – um líder sábio, pluralista, generoso
e à frente de seu tempo.