No Bolero aprendi que a noite, além
da boemia e do meretrício, é pródiga em malucos, vigaristas e vendedores de
coisas e almas. Uma negona gorda, com roupa tribal afro, raspando seu afoxé com
uma jiboia enrolada no corpo, recebia gorjetas dos fregueses sentados nas mesas
da calçada. Mas o melhor da noite é coisa de inexplicável origem: a mentira.
Como se mentia, deslavada e descaradamente, história de pescador era bagrinho
no puçá perto daquela lábia. De gol da linha de fundo a sair com a Sofia Loren,
quando ela esteve no Brasil, de ter sobrevivido a acidente aéreo a atravessar a
praia a nado, tudo era possível: mentia-se sobre tudo e todos.
Outra doença noturna era o
esquecimento. Os mais velhos de casa, com décadas de serviço tocando, chegavam em
casa na Pavuna ou coisa que o valha já sob a luz do dia, e acordavam às dez da
matina para comer, pegar trem e ônibus para voltar para trabalhar, coisa que
matava qualquer um. Havia um trompetista, um sujeito de rosto cadavérico e
enormes olheiras, que tinha por hábito uma extrema precaução com o
esquecimento. Em tom de chacota, o baterista logo no primeiro dia me contou que
o Wilson era tão esquecido que tinha mania de voltar, depois de ir embora, para
conferir se não havia deixado nada. E assim foi: terminada a apresentação, nós
ainda desmontando ou empacotando nossos instrumentos, chega o Wilson e
inspeciona o seu lugar, abre o estojo que carregava, confere seu trompete e vai
embora, ante a indiferença aparente de todos – que logo depois transformou-se
em sonora e divertida gargalhada geral.
Bibi Ferreira como a Medéia, na Gota d'Água: insuperável |
Não foram tempos muito longos, pois
logo passei a atuar em peças musicais, como Mais Quero Asno que me Carregue do
que Cavalo que me Derrube, auto do Gil Vicente com Tereza Raquel e Otávio
Augusto, e A Gota d’Água, do Chico Buarque e Paulo Pontes, direção musical do
Dori Caymmi. Depois, minha opção definitiva pela música clássica e a mudança
para os Estados Unidos transformaram tudo. Mas cresci muito nas noites cariocas, foi
uma ótima escola. “Ai, que saudades que eu tenho / da aurora da minha vida / da
noite carioca querida / que os anos não trazem mais”. (Obrigado, mestre
Casimiro!).
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