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domingo, 23 de dezembro de 2012

O MESSIAS DE HÄNDEL. ALELUIA!!! (Parte 1)



É sabido que muitas das grandes descobertas científicas, obras de arte e ideias de grande envergadura da mente humana foram concebidas, em sua maior parte, sob intenso sofrimento e angústia, o de se estar chegando a uma grande conclusão, uma grande criação, momento em que o criador, artista, filósofo ou cientista leva sua neurose à ebulição, ao final de um trabalho exaustivo e desgastante. Se foi assim com Einstein e a Teoria da Relatividade, também o foi com a 1ª Sinfonia de Brahms, a 9ª Sinfonia de Beethoven e, especialmente, com o Réquiem de Mozart.
Bíblia do Rei James
Assim também foi com a monumental obra Messias, de Georg Friedrich Händel (1685-1759), composta sobre um texto de Jennens sobre a Bíblia do Rei James, acrescido dos salmos do livro de pequenas orações (não constantes da tradução oficial). Com texto em inglês, a obra estreou em 1742, um ano depois de composta e também um ano antes de Händel deixar a Inglaterra, após 40 longe de sua Alemanha natal. A première se deu em Dublin, capital da Irlanda, e acomodou 700 pessoas na plateia, um público recorde. A imprensa do Reino Unido assim saudou a obra: “... de longe, ultrapassa qualquer coisa que tenha sido apresentada neste e em qualquer outro Reino”. Ao final da partitura, Händel faz a dedicatória-símbolo da obra: SDG, Soli Deo Gloria (“A Deus toda a Gloria”, em tradução livre).
Requiem: autórgadfo
O texto passa da Profecia de Isaías sobre a Salvação (Parte 1, Cena 1), à Paixão de Cristo (Parte II, cena 1), Morte e Ressurreição de Cristo (Cena 2), Ascensão e, na Cena 44 da Parte II, o popularíssimo coral Alleluia, de que falaremos adiante. Gloriosa, com trompetes e tímpanos casados (juntos), como era costume na época, este coral passou a ser mundialmente utilizado nas celebrações de Natal, dado o espírito de glória e alegria que evoca. Para o Reino Onipotente do Senhor Deus é cantada pelo coro em uma só voz, potente hino ao Salvador.
A parte final, Rei dos Reis, para todo o sempre, é entrecortada por intermissões de fortes conclamações à alegria, Aleluia!!! O último texto do coral bem exclama: Aleluia! Para o Reino Onipotente do Senhor Deus! O reino deste mundo será o reino do Senhor e Seu Cristo, e Ele deverá reinar para todo o sempre! Rei dos reis, Senhor dos senhores, Aleluia! Quem quiser ver e ouvir o trecho mais conhecido do Messias, o Aleluia!, com duração de apenas 4 minutos: pode clicar abaixo. A apresentação está a cargo da excelente Academy of Ancient Music, sob a regência de Stephen Cleobury:

Interessante lembrar que um grande astro do Rock, George Harrison, dos Beatles, que sempre se envolveu no mundo espiritual, como em sua descoberta do sitarista indiano Ravi Shankar (recém-falecido), também se inspirou na alegria do Coral Aleluia, de Händel, em uma de suas obras primas: My Sweet Lord (Meu Doce Senhor): “Meu doce Senhor / hummm, meu Senhor / (...) Eu quero muito te ver / quero muito estar convosco / eu quero realmente estar convosco / realmente quero vê-lo, Senhor / mas demora tanto, Senhor / (...) Oh, meu doce Senhor / (coro) Aleluia! / humm meu Senhor / (coro) Aleluia! / humm, meu Senhor / (coro) Aleluia! / meu doce Senhor / Aleluia!”. Harrison morreu em 2011, e em sua homenagem uma constelação de músicos se reuniu em show espetacular, contando com o filho de George, jovem guitarrista, o incrível Billy Preston, fabuloso no comando, na voz e nos teclados, Paul McCartney, Ringo Starr, Tom Petty e coro, uma apresentação simplesmente emocionante. Recomendo a audição:

O MESSIAS DE HÄNDEL. ALELUIA!!! (Parte 2)



O Messias cristão
Voltando a Händel. Messias é tradução do hebraico Mashíach, “abençoado”, “consagrado”, texto que se refere à chegada de um descendente de David, que veio para ajudar o povo de Israel a reconstruir sua nação e restaurar a paz.  Entre os Cristãos, o Messias é o Salvador, e assim tem sido louvado nos escritos e cânticos. Händel era famoso pela velocidade com que compunha: ele surpreendia até mesmo os copistas, encarregados de escrever as partes para coro e orquestra. O enorme Messias, mesmo em sua versão original mais simples, era, como vimos, uma obra muito extensa, e foi composta em pouco mais de três semanas. Após escrever o célebre Aleluia, Händel teria dito aos que o cercavam, em pranto desesperado, que não sabia se estava em si, em seu próprio corpo, quando escreveu aquilo, tão transcendente que foi seu envolvimento: só Deus deve saber, disse ele.
A última aparição pública de Händel se deu, exatamente, com uma apresentação do Messias, em 1759. Passou mal no palco, de onde foi carregado para casa, levando em sua memória aqueles últimos acordes, e veio a falecer uma semana depois. Já havia composto uma obra enorme e de suma importância, uma das mais preciosas contribuições à música universal. Entregou-se a ela e ela ao Senhor. Händel foi sepultado com toda a pompa na Abadia de Westminster, cercado por um cortejo de milhares de cidadãos.
Para os que querem ouvir a Parte I do Messias, com sua linda abertura, esta ótima gravação (apenas áudio) pode ser ouvida abaixo, com a London Symphony Orchestra e Coro, regência de Sir Colin Davis. Como essa gravação tem quase 2h25, vale ligar o áudio e refletir. Ou lembrar-se de ouvi-la na noite de Natal, envolvendo-se na grandeza dessa contribuição espiritual à humanidade. E aproveite para desejar também a todos um feliz 2013, com muito boa música. Esqueçamos por ora o Jingle Bells! Viva o Messias! Aleluia! Aleluia!

[Obs.: esta postagem foi escrita a pedido da leitora Marília Hessel Gardenal, e agora publicada no momento devido: o Natal]

domingo, 16 de dezembro de 2012

ANEDOTÁRIO MUSICAL - I



Como ocorre em diversas profissões, o músico não poderia ficar de fora da brincadeira, da ironia e, às vezes, claro, da simples maldade de um ou outro profissional. Coisa de instrumentistas e destes sobre os cantores, e todos juntos sobre os maestros. Algumas anedotas nasceram verdadeiras, mas passaram à história como parte do folclore musical.
Spalla cumprimenta regente
Na orquestra, no primeiro posto, logo abaixo do maestro, está o spalla (“ombro”, em italiano), ou o violino solista. Aí vem aquela série de piadas sobre lâmpadas, como aquela que diz que necessários 30 violinistas para se trocar uma lâmpada: um de pé sobre a cadeira e 29 para discutir o melhor jeito de fazê-lo (os movimentos de arcos e os chamados golpes, maneiras de executá-los, etc.).
Viola e violino
Depois dos violinos, temos as violas, primos pobres cujo som fica espremido (apesar de, a bem da verdade, encorpando todos) entre violinos, contrabaixos e violoncelos. Por seu tamanho maior, ante a pergunta sobre qual é a diferença entre a viola e o violino, a anedota diz que “são de igual tamanho, a cabeça do violista é que é menor”. Já os contrabaixos são alvo nato de boa parte das ironias, entre os instrumentos de cordas, como por exemplo “qual a diferença entre o contrabaixo e o caixão? É que no contrabaixo o defunto fica de fora” (aliás, cá entre nós, é o meu instrumento). E “ao se jogar um contrabaixo e uma viola de cima de um prédio, qual se arrebenta primeiro? E que diferença faz?”, seria a resposta.
Prokofiev
Uma verdadeira: um contrabaixista estrangeiro de São Paulo preparava-se para o famoso solo do Tenente Kije, de Prokofiev. Como não ouvia o instrumento, o maestro, italiano, volta-se para o músico e pergunta: contrabasso, che succede? Tu sei protagonista!” Irritado, o músico deixa seu contrabaixo no chão e caminha para o pódio, dedo em riste, devolvendo ao maestro: “protogônio é sua mãe!”.
Entre os sopros, as trompas são as principais vítimas.  Pululam piadas do gênero “como você faz uma viola soar como uma trompa? Faça-a errar todas as notas”. “Por que a trompa é um instrumento divino? Porque quando o músico a sopra, só Deus sabe o que vai sair”. A maldade também se estende à percussão: “como você chama os que acompanham os músicos nas baladas?” Resposta: “percussionistas”.
Sir Thomas Beecham
Cantores também são alvos, especialmente os solistas, e mais ainda sopranos e tenores. As primeiras, por serem divas, os segundos, estrelas um pouco sufocadas por elas em boa parte dos papeis. Outra verdadeira: o grande maestro Sir Thomas Beecham, inveterado piadista, recebe após um ensaio uma reclamação do tenor a respeito da longuíssima morte de Violetta, papel da soprano da ópera La Traviata, de Giuseppe Verdi. Abaixo, assista à morte de Violetta, com Renée Fleming (soprano). Los Angeles Opera, 2006. Regência: James Conlon.


O tenor estava inconformado porque a cantora se estendia demais na ária final, agonizando vítima da tuberculose que acometera sua personagem. E reclamou que assim a soprano “roubava” a cena. Sir Beecham respondeu, com paciência: “senhor, infelizmente nenhum cantor morre tão rápido quanto eu gostaria”. E mais uma sobre os tenores: em uma loja de cérebros (existem tantas nas anedotas!), o freguês pergunta: “por favor, pode me explicar essas placas? Cérebro do Einstein, mil dólares, cérebro de tenor, cem mil? Como pode?” O vendedor: “é que o do tenor nunca foi usado”. 

ANEDOTÁRIO MUSICAL - II



Finalmente, os maestros. Ah, esses divinos líderes expostos à fúria crítica dos músicos, apesar dos leves sorrisos nos lábios! Em certa loja, estavam à venda dois canários. A primeira gaiola trazia uma placa: canário cantor, R$ 100. A segunda: canário mudo, R$ 1.000. Instado por um freguês curioso sobre o porquê de um canário mudo custar dez vezes mais do que um que canta, ouve a explicação do vendedor: “não canta, mas rege”. Do lado verdadeiro, Franz Strauss, trompista pai de Richard Strauss (de “Assim falou Zaratustra”), ao chegar um novo maestro sempre se dirigia ao estreante de forma agressiva: “ao entrar em um palco, pelos passos a orquestra já sabe quem vai mandar, ela ou o regente. No seu caso, somos nós”. Eis uma famosa pergunta: “por que o regente deve ser enterrado vinte pés abaixo da superfície? Porque no fundo, no fundo, ele é bom”. E “por que todo regente vai para o Céu? Porque quando chega lá, já havia cem músicos orando por ele”.
Happy hour after concert
Tudo não passa de uma brincadeira sadia. Nem de perto o fanatismo doentio e agressivo de alguns torcedores de futebol. Ao terminar o concerto, músicos costumeiramente se reúnem para uma pizza ou um chope. Isso faz parte da necessidade de se comemorar uma boa apresentação, um bom show, queimando os últimos restos de adrenalina que vêm necessariamente com a ansiedade, coisa de que nenhum artista se livra. Ali, todos compartilham, e quando o maestro se junta, é sempre sem a batuta, porque diante de um bom vinho, como já fazia o velho Bach, há séculos, todos são iguais. Tudo é permitido, claro, mas só até o próximo ensaio.
Eleazar
Eleazar de Carvalho, ao reger pela primeira vez a Filarmônica de Nova Iorque, ouviu de um músico que havia um certo clima desfavorável ao brasileiro: “maestro, toda orquestra tem um líder. Isso é fato. “Aqui, por exemplo, é o primeiro oboé”. Pague-lhe um café. Assim fez Eleazar, e depois do ensaio ambos saíram para algum drinque. Brincadeiras, abraços... No ensaio do dia seguinte, o maestro subiu no pódio, ante  a aprovação do oboísta, dirigiu palavras gentis à orquestra, deixando escapar uma ou duas de sua coleção de anedotas. Com isso, seduziu esse verdadeiro polvo de cem tentáculos que é uma sinfônica.
Programa de concerto: Eleazar de Carvalho
Consta que foi um belíssimo concerto (veja ao lado o  programa: 5 de novembro de 1959, no Carnegie Hall, com Casadesus como solista). Eleazar foi um homem que pouquíssimo espaço deixava para anedotas: primeiro, pela sua competência inquestionável. Segundo, porque ele mesmo era o melhor piadista, dentro e fora do palco, nos ensaios e até mesmo, acredite, em concertos. Foi uma anedota viva.
Parnassus
O músico é um artista que reclama, critica e faz brincadeiras por natureza. Ora, que mais pode um sujeito que passa a vida em busca do gradus ad parnassum? (“degraus para a perfeição”). Ele cobra, de todos e de si mesmo, e por isso sofre. Mas tem a diversão da vida que escolheu e a alegria de transmiti-la aos outros.



domingo, 9 de dezembro de 2012

A MÚSICA NA BÍBLIA SAGRADA - I



Jeremias, por Aleijadinho
Há nos textos religiosos diversas menções à maneira de se cantar e executar os Salmos. Muitos desses remetem a harpas, flautas e instrumentos de cordas (falaremos sobre os nomes desses instrumentos mais adiante). A Bíblia é pródiga em referências à música e seus instrumentos, parte que era da cultura religiosa judaica desde os tempos do Antigo Testamento. Logo no Gênesis (4:21), há a primeira referência: “e o nome de seu irmão era Jubal, que foi pai  [N.A.: leia-se: professor] dos que tocam cítara e órgão1”. Em Jeremias (7:34), está escrito: “e farei que não se ouça nas cidades de Judá e nas praças de Jerusalém voz de gozo e voz da alegria, voz de esposa e voz de esposo, porque a terra será posta em devastação”.
Samuel: Hann Elkanah
Samuel (II, 1:17) faz referência à música funeral: “Fez pois David este cântico fúnebre sobre Saul, e sobre Jônatas, seu filho, e ordenou que ensinassem aos filhos de Judá o arco2, conforme está escrito no livro dos justos”. 
Shofar
Instrumentos como trombetas sempre tiveram um significado bélico, de comunicação entre soldados. A saudação de um trompete servia para anunciar um novo rei, como em Samuel2 (II, 15:10): “Então Absalom mandou mensagens secretas às tribos de Israel, dizendo: quando ouvirem o som dos trompetes, podem dizer que Absalom é o rei de Hebron!” Em Levíticos (23:24), a música triunfal: “Fala aos filhos de Israel: no sétimo mês, o primeiro dia do mês será para vós sábado, eles devem ter o descanso do Sabbath, memorável pelo soar das trombetas3 tocando, e se chamará santificado” (o dia).
Isaías por Aleijadinho
Trompetes e trompas também são associados à presença de Deus, assim como ao poder. Isaías (27:13): “Também acontecerá que naquele dia soará uma grande trombeta4,  e os que tinham ficado perdidos virão da terra dos assírios, e os que se achavam desterrados na terra do Egito, e adorarão ao Senhor no monte santo, em Jerusalém”. No Novo Testamento, Mateus (9:23): “e depois que Jesus chegou à casa daquele príncipe, e viu os tocadores de flautas e uma multidão de gente que fazia reboliço...”. Ainda em Mateus (24:31): “E Ele vai mandar Seus anjos com um som forte de trompetes, de um lado do céu ao outro”.
Kinnor
Na verdade, quando há referência a instrumentos, desde o Gênesis (4:21), não se trata de instrumentos como conhecemos hoje (harpa, trompas e trompetes e flautas, conforme algumas traduções bíblicas). David arpejava seu kinnor, e estabeleceu as regras da música judaica em Jerusalém quase mil anos antes de Cristo. Os cantores principais eram chamados chazanim. O que hoje se traduz por harpa era o nevel, pequena lira de seis a dez cordas, ou o kaithros.
Abraão, Isaac e o carneiro
A hazozra hoje é mencionada como trombeta, por guardar certa semelhança com o instrumento mais recente, cujo nome é popular. O shofar, tocado nas cerimônias do Hosh há-Shaná (Ano Novo judaico), é feito com chifre de carneiro – simbolizando o animal que foi sacrificado no lugar de Isaac, filho de Abraão -, mas costuma ser traduzido como trompa, pela semelhança no modo de se produzir o som. Já entre os árabes, no Alcorão Sagrado há normas para os cânticos, chamadas Haddith lahwa, mas a própria Haddith determina que, fora esse limites restritos, a música era proibida nas mesquitas, pois estava associada a “beber vinho e fornicar” (sic).
Notas: [1] Outras versões diferem da de Almeida, mas entre as traduções é comum a referência ao órgão, o que é nada provável. O órgão de fole foi introduzido por Bizâncio, já no século 10. Já a cítara mencionada no texto se refere ao nevel. [2] Nas fontes do hebraico, não existe menção a instrumentos de arco, apenas aos de cordas dedilhadas. Nem mesmo entre sumérios, egípcios e gregos. Provavelmente os textos se referem a arcos de guerra, mesmo, como se pode depreender da frase “e ordenou que ensinassem aos filhos de Judá o arco, conforme está escrito no livro dos justos”. Na tradução de Almeida esta referência ao “arco” não aparece.  [3] Provavelmente a hazozra, semelhante a uma trombeta. [4] Aqui as traduções se referem com certeza ao ùgav, algo como um pífaro, mas em forma ainda mais primitiva de flauta. [5] Kinnorot e Nevalim, grandes trombetas.

A MÚSICA NA BÍBLIA SAGRADA - II

Händel

Já Lutero, bem mais para cá, foi também um compositor com rígida formação musical e cultural na escola de Eisenach, onde veio a estudar J. S. Bach. A música Luterana talvez tenha sido a mais prolífica das igrejas de todos os tempos, de Buxterhude a Bach e Händel, entre tantos outros. Milhares de obras fabulosas do passado ainda existem e nos são conhecidas, parte delas musicando textos de Lutero, cantando salmos ou ilustrando as mais importantes passagens bíblicas, como as Paixões de Cristo e o Oratório de Natal, ambos de Bach, além do grandioso Messias, de Händel. Abaixo: audição recomendada: O Messias, 1ª Parte, com o Brandemburg Consort e o Coro do King’s College de Cambridge, regência de Stephen Cleobury e solistas Ailish Tynan (soprano), Alice Coote (mezzo), Allan Clayton (tenor) e Matthew Rose (baixo).

Trecho do Antigo Testamento em Hebraico
A bíblia sagrada foi registrada em diversos materiais em cinco idiomas, e sua escrita traduzida para diversas línguas, e aqui nos chega tanto quanto alterada de seu original (textos que somente raros especialistas podem compreender). Cada religião ou Igreja optou pela versão que acha correta, e assim interpreta o Livro Sagrado segundo suas convicções; essas traduções costumam fazer referência a nomes de instrumentos modernos, obviamente para facilitar a compreensão dos textos pelos seus fieis.
João Ferreira de Almeida
A primeira tradução da bíblia dos cinco idiomas (grego, aramaico, hebraico, latim e sânscrito) feita diretamente para o português é da autoria de João Ferreira de Almeida, e foi publicada em dois volumes em sua edição final, de 1748.
Texto em Aramaico
Almeida, um menino prodígio católico que começou a traduzir trechos bíblicos do latim aos 12 anos de idade, tornou-se um especialista em idiomas bíblicos e converteu-se ao protestantismo aos 14, na Holanda, onde provavelmente foi parar fugindo da Inquisição em Portugal. Empreguei neste artigo a versão de Almeida, republicada pela Difusão Cultural do Livro, e para os termos musicais judaicos, além de breve histórico, meu Dicionário de Termos e Expressões da Música (Editora 34, 2003, 2ª ed.).
Bíblia do Rei James original
A bíblia usada na língua inglesa é, geralmente, a do Rei James, de 1611, traduzida do hebraico (Antigo Testamento) e do grego  (Novo Testamento). Algumas versões em português foram traduzidas do inglês da Bíblia do Rei James. 

domingo, 2 de dezembro de 2012

NOITES CARIOCAS - I


O Beco das Garrafas
Já em Copacabana havia o Beco das Garrafas, onde cresceu a bossa-nova, parida nos apartamentos do bairro e de Ipanema, nascida chorando com a voz miúda do João Gilberto e da Nara Leão, quase sussurrando, a bateria econômica de toque suave no aro da caixa, acompanhando a batida do violão, quase uma caixinha de fósforos dedilhada para não incomodar a vizinhança. De boate em boate do Beco, o inesquecível e inteiramente louco Edison Machado, baterista que ficou “queimado” na noite porque não aceitava conversa de fregueses enquanto tocava – chegou a atirar suas baquetas em um casal falante na boate Flag. Ficou fora da noite e foi para os EUA.
Dom Um Romão
Do Beco também saiu Dom Um Romão, fabuloso percussionista que incendiava e roubava os shows do famoso grupo Weather Report, liderado por Zawinul, em NY também. Bastava pegar no berimbau ou sentar-se na bateria tocando diversos instrumentos ao mesmo tempo, e a mágica acontecia. Criou seu estúdio, o Black Beans, e permanece no coração de Manhattan, tocando como sempre aos setenta e tantos. E tinha Novelli e Edson Lobo, contrabaixistas, Luís Carlos Vinhas, pianista, e tantos outros que varavam a madrugada alegrando corações e ouvidos!
Zerró Santos
Contrabaixista também era o Zerró Santos, paraense que chegou no Rio com a Fafá de Belém. Talento fenomenal, Zerró começou a fazer arranjos sem estudo técnico algum, e tocava tão bem de ouvido que um dia, no famoso Antonio’s, do Leblon, a plateia do bar lotada com Jobim, Vinicius e a fina flor da bossa, atreveu-se a pegar no contrabaixo enquanto o lendário pianista Bill Evans dava uma “canja” de graça, para babação geral. Após alguns compassos, o pianista americano, com aquelas mãos cheias de dedos, mãos enormes e maravilhosas espalhando no teclado acordes dissonantes intricadíssimos, volta-se para trás, vê Zerró brilhando “de orelha”, e depois pergunta: gente, quem é esse cara?
Ah, entre as lendárias casas noturnas, Copacabana tinha o famoso Bolero, perto do orla da praia ao lado do Copacabana Palace, onde trabalhei por uns meses. Ali, enquanto tocávamos, havia vedetes, cantores, atores, e um monte de mocinhas de família quase boa aguardando companhia para dançar, esvoaçando seus vestidos para gáudio de fazendeiros, turistas americanos e marinheiros a desfrutar de um belo filé picadinho com cebola e uísque (de terceira, que era servido somente após a segunda dose do escocês ao incauto frequentador). O lugar era tão antigo que diziam que Pedro Álvares Cabral, ao chegar ao Brasil, logo perguntou: onde fica o Bolero? Às vezes eu saía de lá e ainda ia dar uma “canja” no Mikado, especialista em receber turistas japoneses. Ali, na brincadeira, revezavam-se comigo no contrabaixo o Zerró Santos e o Bruxa.
MIkado
O Bruxa tem uma divertidíssima: enquanto aguardávamos, eu e ele, no ponto de ônibus, na Avenida Copacabana, debaixo de uma chuva de canivetes, um caminhão passa sobre a poça d’água, enlameando o pobre contrabaixista (eu já debaixo da marquise). Aos berros, Bruxa xingou ascendentes e descendentes do motorista com os piores palavrões que já ouvi. Problema: o caminhão para, o motorista abre a porta, desce, chega perto do meu colega e senta-lhe um murro que o jogou no chão. E vai-se embora sem olhar para trás, enquanto Bruxa se limpa e resmunga: comigo é assim, resolvo no cacete! (Cai o pano). 

NOITES CARIOCAS - II


No Bolero aprendi que a noite, além da boemia e do meretrício, é pródiga em malucos, vigaristas e vendedores de coisas e almas. Uma negona gorda, com roupa tribal afro, raspando seu afoxé com uma jiboia enrolada no corpo, recebia gorjetas dos fregueses sentados nas mesas da calçada. Mas o melhor da noite é coisa de inexplicável origem: a mentira. Como se mentia, deslavada e descaradamente, história de pescador era bagrinho no puçá perto daquela lábia. De gol da linha de fundo a sair com a Sofia Loren, quando ela esteve no Brasil, de ter sobrevivido a acidente aéreo a atravessar a praia a nado, tudo era possível: mentia-se sobre tudo e todos.
Outra doença noturna era o esquecimento. Os mais velhos de casa, com décadas de serviço tocando, chegavam em casa na Pavuna ou coisa que o valha já sob a luz do dia, e acordavam às dez da matina para comer, pegar trem e ônibus para voltar para trabalhar, coisa que matava qualquer um. Havia um trompetista, um sujeito de rosto cadavérico e enormes olheiras, que tinha por hábito uma extrema precaução com o esquecimento. Em tom de chacota, o baterista logo no primeiro dia me contou que o Wilson era tão esquecido que tinha mania de voltar, depois de ir embora, para conferir se não havia deixado nada. E assim foi: terminada a apresentação, nós ainda desmontando ou empacotando nossos instrumentos, chega o Wilson e inspeciona o seu lugar, abre o estojo que carregava, confere seu trompete e vai embora, ante a indiferença aparente de todos – que logo depois transformou-se em sonora e divertida gargalhada geral.

Bibi Ferreira como a Medéia, na Gota d'Água: insuperável
Não foram tempos muito longos, pois logo passei a atuar em peças musicais, como Mais Quero Asno que me Carregue do que Cavalo que me Derrube, auto do Gil Vicente com Tereza Raquel e Otávio Augusto, e A Gota d’Água, do Chico Buarque e Paulo Pontes, direção musical do Dori Caymmi. Depois, minha opção definitiva pela música clássica e a mudança para os Estados Unidos transformaram  tudo. Mas cresci muito nas noites cariocas, foi uma ótima escola. “Ai, que saudades que eu tenho / da aurora da minha vida / da noite carioca querida / que os anos não trazem mais”. (Obrigado, mestre Casimiro!).

domingo, 25 de novembro de 2012

BACH E SUA CATEDRAL DE SONS - I



Johann Sebastian Bach, nascido em Eisenach em 1685 e falecido em Leipzig em 1750, foi um dos chamados três “bês” germânicos da música universal, ao lado de Beethoven, essencialmente clássico, e Brahms, já verdadeiro romântico. (Como o mapa da Europa mudava volta e meia, o que hoje é Alemanha na época de Bach fazia parte do Sacro Império Romano-Germânico). Bach trabalhou exaustivamente, indo muito além de sua missão de Kantor da Igreja luterana de Santo Tomás, de Leipzig. Seu trabalho era não apenas compor, cantar, tocar órgão, cravo, violino, dirigir orquestra e coro e ensinar. Para complementar sua renda também fazia por fora seu “extra”, para ajudar a sustentar sua prole: teve 20 filhos. O próprio Bach veio de uma extensa genealogia de ascendentes musicais, havendo dezenas deles registrados. Assim como na família, o mestre de Leipzig foi prolixo em sua obra, deixando uma coleção imensa de grandes composições.
Igreja de São Tomás
Talvez por isso mesmo, assumindo esse perfil de operário da música, Bach tenha escrito, entre outras obras, três Oratórios, quatro Paixões (das quais restam duas: Segundo João e Segundo Mateus, esta última com 78 seções e horas de duração), 4 suítes orquestrais, centenas de cantatas, 53 concertos, sonatas, partitas, 48 prelúdios e fugas, inúmeras suítes, e por aí vai. Enquanto mestre de capela em Leipzig, Bach compôs uma peça para cada domingo ou feriado do ano.
Lutero
Para tomar posse do cargo, Bach passou por uma sabatina absurda, que incluía, além de música, claro, exigências como domínio de línguas e diversos outros assuntos – o que não foi difícil, pois o compositor havia estudado desde os oito anos de idade na Escola Latina de Eisenach, mesmo lugar onde Lutero, dois séculos antes, obteve sua formação. Dominava o alemão, o grego, o latim, o hebraico, além de geografia, história, lógica, prosódia, retórica e filosofia, disciplinas da rígida escola de sua cidade natal.
Partitura original da Paixão Segundo Mateus
Dentre as composições citadas, sugiro uma audição da Paixão Segundo Mateus (Bach escreveu o título em latim: Passio Domini Nostri J. C. Secundum Evangelistam Matthaeum), a agonia e morte de Cristo. A obra foi estreada na sexta-feira da paixão de 1727 na Igreja de São Tomás, em Leipzig. Para quem não conhece, vale a pena ouvir ao menos um pouco. Para quem já é iniciado, esta primeira parte leva 1h16 e foi gravada pelo Concentus Musicum de Viena e o Coro do King’s College de Cambridge, sob a regência de Nikolaus Harnoncourt, um expert no gênero (veja e ouça abaixo).

BACH E SUA CATEDRAL DE SONS - II



Aposentos de Bach, hoje assim como há 4 séculos
Necessitando de uma renda a mais, Bach escrevia para qualquer ocasião, de casamentos a funerais. Mas deixou de lado certos princípios da rígida doutrina luterana quando escreveu a um amigo, Erdman, em 1730, queixando-se da saúde pública e do saneamento da cidade, que lamentavelmente, segundo ele, haviam melhorado muito: por essa razão, começaram a ficar mais escassas as encomendas para enterros solenes e obras fúnebres. Com tamanha volúpia artística e facilidade absurda para compor, dizia que qualquer um que trabalhasse o tanto que ele trabalhou obteria o resultado que ele conquistou. Sobre as letras de seu nome - B (si bemol), A (lá), C (dó) e H (si natural), compôs nada menos do que 37 obras).
O Duque de Sachsen-Weimar
Apesar de sua enorme religiosidade –“tudo o que fiz dedico a Deus”, disse ele-, Bach às vezes esquecia os conselhos de paz divinos: era meio brigão. Não aceitava aquela baguncinha de músicos-funcionários-públicos tão típicas de algumas orquestras estatais. Certa vez, durante um ensaio, Bach travou uma discussão com um fagotista, Geyersbach, e o repreendeu perante os colegas. Na praça, partiu para cima do rapaz, brandindo sua espada no ar, enquanto o jovem músico tentava se defender com um pedaço de pau, até que a briga fosse apartada. Fora isso, ia para a cervejaria ou café de sua preferência, após os ensaios, e se esbaldava bebendo e improvisando com os músicos. Em 1717, requereu uma licença para o Duque de Sachsen-Weimar (ilustração), para quem trabalhava há 4 anos. Pedido negado, Bach tentou exigir a regalia à força, razão pela qual foi expulso do palácio e preso por um mês.
Bach com alguns de seus filhos
O compositor morreu cego e apoplético. Para tentar salvá-lo da morte, havia sido chamado às pressas um famoso médico inglês, John Taylor, mas a cirurgia foi malsucedida (dois anos depois, o mesmo cirurgião foi chamado para tentar salvar o compositor Händel, que morava na Inglaterra, mas também falhou). Pouco antes de se encontrar com Aquele a quem dedicara toda a obra, o Salvador, trouxeram-lhe o neto, filho de Johann Christian Bach e Elizabeth, para que o conhecesse. Ao genro, Johann Christoph, também músico, pediu que tomasse um papel de música e uma pena, passando a ditar-lhe cada nota, cada figura rítmica das quatro vozes com que ia construindo na cabeça o coral Com Isto me Apresento diante do Vosso Trono.
Antes de partir, pediu aos presentes que cantassem, com ele, Todos os Homens Deverão Morrer, obra coral composta sobre versos de Lutero. Finalmente, os olhos cegos brilhando, disse que em breve conseguiria ver o Senhor. Bach estava bem preparado para aquele momento, pois tempos antes, em seu livro de notas, havia escrito a seguinte dedicatória à amada esposa: “Estando tu junto de mim, irei com alegria para a morte e o descanso eterno. Como será lindo o meu fim, se tuas belas mãos me cerrarem os olhos!”
A bela Anna Magdalena Bach

sábado, 17 de novembro de 2012

A MARÍLIA DE JOSÉ DIRCEU – I

Marília, por Alberto da Veiga Guignard

Marília: “Ali Dirceu esperava / para me levar consigo / e ali sofreu a prisão. / Mandarás aos surdos deuses / novos suspiros em vão”. Dirceu: “Por morto, Marília, aqui me reputo / mil vezes escuto / o som do arrastado e duro grilhão”. Os célebres versos de Tomás Antonio Gonzaga (1744/1810), grande poeta do arcadismo luso-brasileiro nascido em Portugal, figura ímpar da Inconfidência Mineira, foram endereçados a Maria Dorotéia Joaquina de Seixas, sua “Marília de Dirceu”, no ano em que o poeta foi exilado e partiu para Moçambique, onde viria a morrer.


Marília é cantada como a pastora Amarilis desde Virgílio, poeta romano (70/19 a.C.),  e recontada pelo italiano Guarini (1538/1602), cuja “Marília” o havia ensinado a “amar amargamente”! O nome Marília já fora, bem antes de Gonzaga, o da musa inspiradora de um século inteiro.
Veja e ouça a diva Cecilia Bartoli, cantando a Amarilli de Giulio Caccini (1551-1618)

Dirceu: foto Abril/Veja
José Dirceu de Oliveira e Silva, nascido em Passa-Quatro, MG, é homem estudado: cursou direito na PUC/SP, embora não tenha concluído. Mas a paixão do jovem, na verdade, inclinava-se fortemente para a política. Seduzido pela resistência à ditadura desde 1965, leu Marx, Engels, Lênin e Trotski, e deixou-se encantar por Carlos Marighella, afinado com a guerrilha de Fidel e Che.
O incendiário Daniel Cohn-Bendit, "Le rouge"
Tendo como ídolo o alemão Daniel Cohn-Bendit (conhecido na França de 1968 como “Dany, o vermelho”), que ateou fogo nos estudantes de todo o mundo com seu charme revolucionário, Dirceu, então presidente da UNE, foi preso no Congresso de Ibiúna - um encontro de organização tão incompetente que se esqueceu de que o comércio local não daria conta da explosão absurda da demanda por pães, margarina e provavelmente muita mortadela e cerveja para mais de 1.200 jovens, o que chamou a atenção da polícia.
A prisão dos estudantes no congresso da UNE em 1969
Preso ali, em 1968, ele foi moeda de troca do resgate do embaixador americano Charles Burke Elbrick, ação espetacular de um grupo armado que culminou com a libertação de 13 presos políticos. (Dirceu, portanto, nunca foi “expatriado”, como diz, e sim libertado para Cuba por seus companheiros de luta).
Clara Becker,. a "Marília" de José Dirceu. Foto de  Marco Rodrigues
Em 1971, reingressou ilegamente no país, mudando de feições após uma cirurgia plástica feita em Havana. Com novos documentos, foi para Cruzeiro do Oeste, no Paraná, onde se casou com Clara Becker – com o mérito absurdo de, com frieza e inteligência, com ela ter convivido maritalmente sem revelar seus segredos, tarefa praticamente impossível para qualquer homem comum. Pois Clara foi, por anos, a Marília de José Dirceu. Clandestino, o dândi da estudantada nunca deve ter empunhado uma arma.