Não acompanho novelas,
confesso que o máximo a que assisti foi ainda criança, muitos capítulos da
primeira e longuíssima versão de O Direito de Nascer (1964, video abaixo). Também alguma
coisa daquele violinista, o misterioso Dr. Valcourt, interpretado pelo Sérgio
Cardoso. Bem antes disso, sei que teve Alô, Doçura (1954), com o eterno par
romântico Tarcísio Meira e Glória Menezes. Mais adiante, passados os anos, a
tecnologia moderna passou a permitir a gravação em picadinhos (fatiada?),
montada como quebra-cabeças em ilhas de edição com moderníssimos computadores -
o que desobriga os jovens atores a decorar textos por inteiro.
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domingo, 28 de outubro de 2012
II – A novela, os grandes astros e a origem no teatro.
Com essas facilidades, entram cada
vez mais no ramo gerações de jovens, a maioria formada em oficinas e cursinhos,
que nunca ou pouco teatro de verdade fizeram na vida, mas hoje vão direto, via
wi-fi, para as novelas. Antonio Fagundes, Sergio Britto, Paulo Autran, Fernanda
Montenegro e a mais nova Vera Holtz, experimentados na arte do palco italiano,
levam (ou levavam) na cabeça os textos de cada capítulo, para deles se libertarem,
vestindo o corpo e travestindo a máscara de seus personagens nas gravações. Já
os lindos novos rostinhos tremem diante deles, e torcem para não pisarem em
falso diante dos monstros sagrados que povoaram os sonhos de suas juvenis
ambições artísticas.
III – A TV onipresente e a Carminha que há em cada um.
O fenômeno novela começou, desde
sempre, adentrando lares e mentes. É comum todas as classes sociais
condicionarem seus hábitos às diversas novelas diárias, muitas vezes deixando o
telejornal para o jantar, para não deixarem de viver a intensa realidade
virtual das tramas novelescas. Em muitos lares, a TV fica ligada até durante as
visitas: ela faz parte do cotidiano, aquele ruído permanente que criou um novo
tipo de dependência psicológica, essa presença viva do aparelho no ambiente.
Porém, a última de todas as novelas, a badaladíssima Avenida Brasil, de João
Emanuel Carneiro, pela minha visão, foi um míssil poderoso e sem precedentes.
(Curioso: o nome do autor traz, ao mesmo tempo, o do evangelista, o de Cristo e
o do Cordeiro de Deus, “Agnus Dei”).
Não sei muito bem quem foi
Carminha, mas pelo pouco que vi era uma bruxa maléfica, uma conquistadora vadia
e uma falastrona sem caráter. O tipo da vilã seduziu, pois reunia todos os
defeitos que o público queria enxergar na cunhada, na sogra, na chefe, na
patroa. Enfim, a presença da maldade atrai o povo, que cede ao desejo de
vingança, cada qual a seu jeito, contra as “Carminhas” de todos os tipos e
sexos que atazanam suas vidas. Muitas vezes, ao contrário, o canalha virtual
abre espaço para a realização de outro desejo, a fantasia oculta de ser como o
vilão da TV. [Veja abaixo a famosa surra de Max em Carminha].
IV – As mariposas de novelas e o teatro universal.
Estive
no Rio, há um mês, e em determinado momento da noite, como que por mágica, tudo
começou: as telas dos bares, restaurantes e padarias atraíam, como mariposas ao
redor de lâmpadas, os passantes para os estabelecimentos. Casais entrando de
mãos dadas, gente de todos os tipos e classes sociais que não podia perder um
capítulo sequer, pois cada um deles é único e espetacular, sempre terminando
com grandes conflitos a se resolverem – ou não – no episódio seguinte. Percebi,
naquela hora, o que não tinha constatado em meu dia a dia: a extensão do poder
que a trama televisiva exerce sobre o povo brasileiro.
Equipamentos de última geração,
manobrados por excelentes técnicos, transformaram autores e diretores em verdadeiros
Hitchcocks e Welles, além de abrirem atalhos rápidos para os atores mais
jovens. Os grandes artistas se reciclam retornando, volta e meia, ao trabalho
no palco que lhes deu origem. O teatro lhes é alimento e escola, das arenas da Grécia antiga aos dias de hoje, de Sófocles,
Shakespeare, Molière, Feydeau, Arrabal e Pirandello a Nelson Rodrigues, Plínio
Marcos e Zé Celso. Lembrar-se da arte-mãe faz bem, recicla e enriquece.
V – A literatura e o divórcio consensual entre o futebol e a novela da TV.
Entre outros autores, gosto do
Aguinaldo Silva, até mesmo por causa de suas relações com a literatura,
chegando a fazer sua professorinha chamar a atenção dos telespectadores para
essa arte primordial, essencial, que não pode ser esquecida, a da palavra
escrita. A mídia que traz essas tramas complicadíssimas e nada verossímeis aos
lares do país direciona a programação do futebol, adiando ou antecipando jogos,
para que uma emoção não ouse competir com a outra.
No caso de famílias pobres, à
frente de um único aparelho, há o benefício do efeito colateral dessa partilha
de horários – ela evita brigas domésticas, já que a TV é espaço do jogo de
futebol, mais afeito aos maridos, mas também das esposas com suas novelas
favoritas, muitas vezes a única diversão e distração nos entreatos do trabalho
do lar ou da jornada dupla. A novela também é peça de conversação
(conversation piece, como dizem os americanos) quando falta assunto: “como
ela está bem nesse papel”, “ele trabalha muito bem”, e por aí vai. (A crítica
das novelas é tão democratizada nos lares quanto os milhões de técnicos de
futebol dos bares, que têm palpites para tudo).
VI – Brasil: terra em transe e o pico de energia.
O transe nacional foi tão intenso
que, para o último capítulo de Avenida, a ONS colocou em operação nas
termelétricas turbinas movidas a diesel, cujo custo é seis vezes maior do que o
das tradicionais, como reforço para suportar o pico de consumo (Folha, 19/10,
B1). E onerando as contas dos
contribuintes, claro, que pela primeira vez, quem sabe, pagaram para assistir à
TV aberta. Bares, festas e até paróquias em São Paulo colocaram telões para não
perderem clientes e crentes, além de bolões de apostas (Folha, 17/10, notícias)
durante o gran finale.
VII – A Avenida Brasil, a política e a Sorte e Azar, do Cazuza.
Por fim, a novela avança e
domina a política: enquanto o ator Marcello Novaes gravava as cinco
possíveis mortes de seu personagem, Max – sim, novela também é obra aberta! -,
Dilma pediu um telão para o povo assistir ao último capítulo após o comício de
sexta, dia 19 de outubro, em Salvador, no afã de alavancar a campanha de seu
candidato Nelson Pelegrino (foto ao lado). Já o adversário, ACM Neto, entrou na Justiça para
tentar impedir, por liminar, o poderoso telão, isca de camarão fino para o
populacho, faminto pelo grande espetáculo (o da novela, cabe ressaltar). Ao
mesmo tempo, por não ter o condão divino da onipresença ou da ubiquidade, Dilma
cancelou sua participação no comício de Haddad, em São Paulo, dia 19,
transferindo-a para sábado, dia 20 de outubro. Pois será Sorte e Azar
(música-tema de Cazuza na nova atração global das 21 h, Salve Jorge!) - para
todos os candidatos que disputarão o segundo turno. [veja e ouça Cazuza abaixo]
BLOG ATINGE 30.000 ACESSOS EM 15 MESES
Sem contar os acessos do blog anterior, “A Surdina” (4.000 acessos), este
blogspot foi acessado mais de 30 mil vezes dos seguintes países, pela ordem
(Brasil à frente, claro): EUA, Alemanha, Portugal, Rússia, Reino Unido, França,
Itália, Canadá, Espanha, Emirados Árabes, Peru, Paraguai e Austrália.
domingo, 21 de outubro de 2012
MAQUIAVEL E O PRÍNCIPE: ETERNOS ENSINAMENTOS
I - SUGESTÃO DE
LEITURA AOS POLÍTICOS, PRETENDENTES OU A QUALQUER UM: O PRÍNCIPE.
Maquiavel |
II – A REPÚBLICA DE FLORENÇA.
Palácio de Florença |
Em 1498, Maquiavel
era o Secretário, o cargo mais poderoso do governo, algo como um Chefe da Casa
Civil do regime republicano instaurado na bela Florença em 1494, que veio a
cair com ele próprio em 1512, soldado fiel que era ao seu senhor. Mas vamos aos
pensamentos do autor, para que não fiquemos roendo a casca, ao invés de
saborear a polpa daqueles escritos geniais, os conselhos para seu amado
príncipe Lorenzo de Médicis.
Lorenzo de Médicis |
Antes disso, porém, cabe esclarecer que o povo entende erroneamente por
“maquiavélica” qualquer coisa demoníaca, do mal - mas esse sentido do termo é
só um costume popular, não tem cabimento na grande lição política do gênio
florentino. Pelo contrário, Maquiavel deixou a grande lição da arte da
estratégia, uma rica análise que sobrevive há mais de quinhentos anos.
Jean-Jacques Rousseau |
Para o pensador
italiano, cultor da ideia de virtù e fortuna, a primeira é o dom de
“realizar grandes obras e feitos (...) o
poder de efetuar mudanças, controlar acontecimentos, pré-requisitos da
liderança”. A fortuna, segundo ele, seria o destino, o fado, a história em seu
curso. Seriam esses os dois polos a nortear todo acontecimento político –
embora Maquiavel proponha que prevaleça sempre que possível a virtù sobre a
fortuna. Não foi à toa que Rousseau (1712-1788), em seu magnífico Du Contrat Social ou, Principes de Droit
Politique (Do Contrato Social ou, Princípios de Direito Político), elegeu O
Príncipe como o livro maior de todos os republicanos.
III – O PRÍNCIPE, NAPOLEÃO, A ASTÚCIA DA RAPOSA E AS ALIANÇAS.
Maquiavel ensinou
como conquistar o poder, como mantê-lo, e, no caso de perdê-lo, o porquê de
tê-lo perdido. Sobre o uso da força, ele preferia “a astúcia da raposa à
violência do leão” – mas não descartava o uso da segunda, diante do insucesso
da primeira. Talvez a mais famosa lição de Maquiavel seja: “ao tomar um Estado,
deve-se fazer de uma vez todas as crueldades, evitando-se, assim, ter de
fazê-las todos os dias”, o que o vulgo entende como “fazer o mal de uma vez e o
bem aos poucos”. (Napoleão anotou que essa era uma norma de suma, especial
excelência). O florentino sugere que se deve agir sempre com clemência, pois a
imagem do príncipe deve ser a de um homem generoso, e não cruel.
Ainda quanto à
imagem, Maquiavel entende que o príncipe deve evitar agir de modo a ser odiado
ou desprezado, mas Napoleão, que via o florentino “de cima”, como seria natural
ao arrogante general-imperador, anotou que não temia o menosprezo, pois “me
admirarão, mesmo contra a vontade”. Segue Maquiavel: o príncipe deve delegar
poderes, para que lhe sobrem os maiores de todos, a clemência e a concessão de
favores. (No rodapé, Napoleão vibra: “às mil maravilhas!”). Pensa Maquiavel,
ainda, que o príncipe deve tratar de fomentar com inteligência algumas
inimizades, mostrando seu poder ao superá-las. (Napoleão, desta vez, agradece
por ter, ele próprio, logrado sucesso com tal conselho). E que o príncipe deve
ter amigos ou inimigos declarados, atitude que considera mais sábia e admirável
do que a neutralidade.
Quanto às alianças,
o pensador é muito claro ao entender que o príncipe nunca deve se aliar a
alguém poderoso, a não ser quando se sentir ameaçado. No caso de vitória,
poderá ele ficar refém de seu poderoso aliado. Ao contrário, aliando-se a
alguém mais fraco do que si, o príncipe poderá deter o poder, mas torna-se mais
frágil diante do povo. Como forma de manter-se no comando, o príncipe deve
nomear sábios conselheiros, dando-lhes liberdade de ação e de dizer a verdade –
mas apenas, claro, quando interrogados, e somente sobre o que for perguntado e
nada além. (Napoleão anota que basta delegar esse poder a dois ou três, “e já é
demais!”).
IV – ROUSSEAU, MARX E ERIC HOBSBAWM.
IV – ROUSSEAU, MARX E ERIC HOBSBAWM.
O jovem Karl Marx |
As ideias de
Maquiavel em O Príncipe são às vezes exercidas por pura intuição política ou
seguindo alguma tradição local, familiar ou de ideologia. Contudo, a análise da
história e dos estudiosos do passado, como o pensador florentino ou Bonaparte,
passando por Rousseau e Marx, e chegando aos mais recentes, como Eric Hobsbawm
(que acaba de nos deixar, dia 1º de outubro), autor de diversos trabalhos
magníficos sobre o capital e as revoluções, somente tem a enriquecer o universo
do pensamento político. Conhecer a filosofia dos gênios pensadores e
estrategistas é aconselhável para quem ambiciona a conquista e a manutenção do
poder, seja este qual for.
Eric Hobsbawm |
Tão cedo, nada do
que Maquiavel escreveu será superado, se é que algum dia o será. O exercício
atabalhoado da estratégia e do poder pode ser visto em todos os cantos, e
especialmente na capital da República, e deve ser evitado pelos aspirantes a
essa arte da polis (cidade, em
grego), ensina Maquiavel. Feliz aquele que consegue conquistar e se manter no
poder pelos seus atos, suas ações, mais do que por ataques, mentiras,
conchavos, subornos e chicanas como as que nos têm sido desnudadas ao vivo e em
cores pela nossa corte maior.
sábado, 13 de outubro de 2012
I – 1970. “O Risco” e Frei Betto. Stravinsky e o “plano de fuga de Picasso”.
Betto, ainda de batina |
“Só Deus é quem sabe por inteiro o
risco do bordado” foi a dedicatória que meu pai escreveu no exemplar de seu
livro “O Risco do Bordado” que encaminhou ao Presídio Tiradentes, onde estava
preso, desde 1969, meu primo Frei Betto. Mas o livro foi apreendido pela
direção presidiária. Já fiz elucubrações, digressões sobre a razão de a
repressão ter vetado o livro e sua dedicatória.
Quem sabe teria sido uma indicação de que um pano bordado chegaria às mãos dos
criminosos (sim, intelectuais e oposição eram criminosos à época, caro leitor),
com uma rota de fuga codificada?
Uma dos desenhos de Picasso para Stravinsky |
(Aliás, coisa parecida aconteceu
com um quadro de Picasso que o grande Stravinsky teve apreendido pela alfândega
da União Soviética: poderia ser o plano de um contragolpe, quem sabe?). Ou
seria um aviso de que o “Bordado”, ou seja, a revolução militar, corria risco?
Betto cumpriu quatro anos e o STF da época reduziu a pena para dois. Ficou com
dois anos em “haver”, como diz a dona da mercearia.
II – 1964: o ano que durou 21. O golpe de 1964 e a prisão, que foi sem nunca ter sido.
Bem
antes disso, após o golpe de 1964, escritores, intelectuais, músicos e
políticos passaram anos de sobressaltos. Um certo dia, meu pai recebe um aviso
da portaria do prédio para que descesse. Parecia alguma coisa oficial. Antes de
sair, alertou minha mãe de que poderia ter chegado a vez dele de ser enquadrado
pela repressão.
Chegando na portaria, certamente suando frio, encontrou um
sujeito com um “polícia” escrito em caixa alta na testa. A conversa foi mais ou
menos assim: vim aqui para prendê-lo, mas o senhor se lembra de mim? Ante a
negativa, o agente foi falando que o havia conhecido ainda no Palácio do
Catete, onde meu pai trabalhava como secretário de imprensa de JK. E que um dia
havia pedido um emprego para a filha dele, que estava desesperada. Meu pai,
então, lembrou o agente, conseguiu uma vaga para ela no antigo Iapetec, encampado pelo INSS em 1960. Vim
dizê-lo, prosseguiu o sujeito, que em retribuição àquele gesto não vou
prendê-lo.
III – 1961. Fidel e Che no Rio. As cataratas de Guevara.
Fidel Castro e Ernesto "Che" Guevara |
Voltando mais ainda no tempo, no final da gestão JK chegaram
ao Brasil dois grandes pop-stars mundiais, que haviam derrubado o ditador
Fulgêncio Batista, em Cuba, em visita por um estreitamento da cooperação
comercial entre os dois países: Fidel Castro e Che Guevara. Como porta-voz da
presidência, restou a meu pai “fazer sala” para o incensado guerrilheiro de
Sierra Maestra, com sua boina e charuto. Era o Che.
As cataratas do Iguaçu |
Segundo meu pai, não havia frase em que ele, durante horas –
se não foram tantas, devem ter parecido assim – não se referisse à “democracia
y libertad”, usando essa expressão tanto quanto nós usamos “bom”, “sabe”, “pois
bem”, “éee...” e outras. Era caudaloso como as cataratas do Iguaçu.
E mais para trás
ainda, em 1960, a revolução de Fidel e Guevara saída quente do forno – e ainda
não declarada comunista -, chega ao Brasil o filósofo e escritor Jean Paul
Sartre, juntamente com a genial Simone de Beauvoir, para uma peregrinação
intelectual de dois meses no país. Meu pai recebeu um exemplar autografado pelo
genial francês do livro “Furacão sobre Cuba”, que acabara de ser lançado em
português.Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre e Guevara |
IV – 1961. Sartre, Simone e como atropelar um gênio em uma lição. O Príncipe Danilo e o lago dos cisnes.
Pois bem. Estávamos na avenida Copacabana, no Rio, nós
éramos quatro crianças no banco (literalmente) de trás da Kombi de meu pai, o
carro parado em frente à faixa de travessia de pedestres, sinal fechado. De
repente, meu pai avisou que iria assustar um gênio, e que nós gravássemos na
memória o tal susto.
Avenida Copacabana, anos 1960 |
Avançou para cima do ilustre casal, freando logo depois, e certamente ouviu algumas expressões daquelas bem
ao gosto dos franceses. Eu era bem criança, mas me lembro de ter segurado
naquela parte metálica da Kombi onde se guarda o estepe, para presenciar a
cena.
Palácio do Catete |
E mais, bem mais atrás, ainda, eu, com coisa de três, quatro
anos de idade, entrava no Henry Jr, carro do Palácio, pegando carona com meu
pai para cortar o cabelo em frente ao Palácio do Catete, onde ficava a
Presidência da República. O motorista era o “Seo” João Batista, que de
evangelista não tinha nada (e dentes só alguns poucos, como os de ouro que
sempre me chamaram a atenção). Aliás, Batista era um chofer que apavorava minha
mãe, pois tinha por hábito olhar para trás enquanto conversava e dirigia.
O "Lago dos Cisnes" do Palácio do Catete |
Depois do corte de cabelo, à “Príncipe Danilo” (horroroso,
aliás, mas hoje sucesso entre os jogadores de futebol e pagodeiros), me levavam
para o lago do Palácio para jogar miolo de pão aos cisnes - minha grande
recompensa pelo sacrifício (coisa que ainda detesto, mas faço por obrigação) de
ir ao barbeiro.
V – 1955. Chegando ao Rio. A mansão Lage e as molecagens de infância. A soprano italiana, o mensalão e o homem Autran Dourado.
Mansão Lage, hoje Parque Lage |
Por fim, mas ainda antes de tudo isso, aos dois anos de
idade, chego ao Rio de Janeiro com a família. Moramos por uns bons anos em um
prédio de três andares sem elevador – o nosso era no terceiro pavimento -, um
apartamento modesto, em frente ao hoje Parque Laje, que no passado foi
residência do milionário Henrique Lage, casado com uma cantora lírica
italiana, Gabriella Besanzoni, sua
“Callas”.
Rua Jardim Botânico, 295 ap 301. Predinho branco do meio. |
Gabriella Besanzoni como a Carmen, de Bizet |
(Ali, antes de virar parque, era apenas uma
enorme mansão abandonada em um alqueire de terra, onde eu e meus amigos
moleques íamos aprontar, depois de pular o muro e entrar em masmorras, na
monumental banheira da sede e nas cavernas, com direito a estalactites,
morcegos e riachos internos que o empresário havia construído, pequeno mimo
para sua diva). Voltando ao assunto, ali, naquele prédio alugado, morava o
homem que falava em nome da Presidência da República do país, dono de uma Kombi
e uns poucos ternos. Não ficou rico, nem um pouco.
Joaquim, Celso e Gilmar. Foto: blog do Nordeste |
Digo isso para que sirva à reflexão sobre os
dias de hoje, em especial para o que tem sido exposto roto, rasgado e
esfarrapado em praça pública pelo STF. Lembrando uma frase lapidar do ministro
Ayres Britto, “é como uma toalha suja que quanto mais se torce, mais encarde”.
Com loas ao voto do tatuiano Celso de Mello, de todos o mais contundente,
cortante, um verdadeiro libelo contra a corrupção bandida e endêmica que é
doença terminal do país, um desabafo costurado com palavras ácidas e afiadas
pelo ministro.
Pronto. Não escrevi
uma linha sequer sobre literatura, já que a imprensa do país tem esmiuçado a
obra de meu pai de forma tão ampla e ostensiva nos últimos dias -
diferentemente dos anos de perfil recolhido que lhe era característico. Mas
isso faz parte dos inúmeros vícios da cultura brasileira; o que me importou aqui
foi o homem e bastidores muito pouco conhecidos. A obra, aos que se interessam,
devem procurar lê-la. domingo, 7 de outubro de 2012
A MÚSICA NAS CAMPANHAS ELEITORAIS: EUA E BRASIL
I – Roosevelt, Truman e Kennedy com
seu Sinatra.
Truman e seu "apron" da Free Masonry. Biblioteca Nacional George Washington |
Nos EUA, os
primeiros registros vêm dos anos 1920, e os títulos, por si, já ensejavam
ligação com os discursos dos candidatos. Já em 1932, Roosevelt adotou como hino
de campanha “Happy Days are Here Again” (“Dias Felizes Chegaram Novamente”, em
tradução livre). A música fez grande sucesso em 1929, e inspirou um filme que
levou o mesmo título. Em 1948, Harry Truman, homem forte da “Freemasonry”
(Maçonaria Livre) norte-americana, em plena transição do fim da Segunda Grande
Guerra para a chamada “Guerra Fria”, personalizou sua trilha sonora com “I’m
just wild about Harry” (“Eu sou simplesmente louco por Harry”), gravada por
estrelas como Judy Garland e a nossa Carmen Miranda. Pura esperteza, a música
havia sido composta para outro Harry. Católico da tradicionalíssima Brookline
(EUA), John Kennedy, em sua campanha de 1960, adotou um tom esperançoso - a
música era “High Hopes” (“Grandes Esperanças”, trad. livre), popularizada um
ano antes na voz de Frank Sinatra.
II - Mc Govern e Simon & Garfunkel, Bush e Guthrie, Dukakis e Neil Diamond, e Clinton com Feetwood Mac.
Mc Govern |
Mc Govern, em
1972, pegou emprestada (claro que por causa do título), a belíssima canção
“Bridge over Troubled Water” (“Ponte sobre Águas Turbulentas”), de Paul Simon e
Art Garfunkel: “como uma ponte sobre águas turbulentas / eu vou me estender”,
diz a letra. Já George Bush, em 1988, com passado de rico fazendeiro e magnata
do petróleo texano, apossou-se de “This Land is your Land” (“Esta Terra é sua
Terra”), do velho astro country Woody Guthrie (1940). Guthrie fez uma letra de
cunho bem nacionalista: “ Esta terra é sua terra / esta terra é minha terra /
da Califórnia à ilha de Nova Iorque / da Floresta de Redwood às águas da
corrente do Golfo / esta terra foi feita para você e para mim”.
No mesmo ano, rival de Bush, Michael Dukakis simplesmente
apossou-se da bela “America” (ou “Chegando à América”), canção patriótica de
Neil Diamond, que ficou em terceiro lugar na lista da Billboard, atrás apenas
de Barbra Streisand e Elton John. Já Bill Clinton, saxofonista bissexto, em 1992
tirou do grupo de rock Fleetwood Mac o hit “Don’t Stop” (“Não Pare”, veja e ouça abaixo) - sem
alusões a acontecimentos constrangedores que aconteceriam dois anos depois no
Salão Oval da Casa Branca.
III – Getúlio, JK e Jânio, com sua “vassourinha”.
No Brasil, havia
os bordões musicais, como o de Getúlio, que criou o DIP – Departamento de
Imprensa e Propaganda -, órgão censor e um arremedo de marketing político do
passado. Foi o DIP que extraiu do Livro de Jó (29:16) o título de “Pai dos
Pobres” para o líder gaúcho. A chapa de Getúlio Vargas tinha um bordão de cinco
palavras e apenas duas notas: “Getúlio, Getúlio, Getúlio e João Pessoa!”, que
se tornou bastante conhecido nos comícios populistas do candidato e no meio de
comunicação que atingia os rincões mais distantes: o rádio de ondas curtas.
Vargas também recebeu a alcunha de “Pai dos Artistas”, por ter proposto, ainda
deputado, leis de cobrança de direitos
autorais e afins. Percebendo o poder que tinham cantadores e repentistas junto
ao povo, Getúlio criou a figura do “artista prático”, ou seja, aquele que, sem
formação, poderia obter uns trocos com sua arte, especialmente nas épocas de
eleição e de pregações políticas.
Na campanha de JK em 1950 (vídeo
acima), havia uma citação musical do Hino Nacional Brasileiro, fazendo par com
o ambicioso lema “50 anos em 5”, que levou o diamantinense à Presidência da
República. Em 1960, como mote de sua pregação contra a corrupção, Jânio
Quadros, que distribuía broches e outros mimos com seu símbolo, a vassoura - com que, apregoava, “varreria” a corrupção
do país -, veio com o sucesso do jingle criado especialmente para ele: “Varre,
varre, vassourinha” (veja e ouça abaixo).
IV – Lula, Tiririca e a campanha paulistana de 2012.
Em 1989, um
sindicalista apoiado maciçamente pela classe artística e a intelectualidade
brasileira ouviu cantarem a torto e a direito o famoso “Lula-lá / brilha uma
estrela / Lula-lá...”. Como se vê, o nível musical das campanhas, desde os anos
1950, nunca foi lá aquela coisa. Haja vista a peça do Tiririca, espelho de
nossa indigência cultural: “É que eu precisava tanto falar com ela / mas eu vô
falar pra tu / e tu dá uma forcinha pra eu tá?”. Um jingle de certo candidato,
na atual campanha para a Prefeitura de São Paulo, não é um lixo, porém mesmo
com ótima produção de estúdio deixa muito a desejar: “Defendendo o nosso povo /
nova história da cidade / (...) este você já conhece...”. Outro, sob a
estreitíssima visão de seus marqueteiros, pegou emprestado o refrão do sucesso
“Eu quero tchu / eu quero tcha”, arremedo de música da dupla João Lucas e
Marcelo. E acabou a criatividade.
V – A cultura musical na política brasileira, a música da terra seca e a do barro vermelho.
No Brasil, existe
uma cultura musical eleitoreira que ora traz alguma coi=sa, ora nos entope os
ouvidos mas cai no agrado do chamado populacho, a massa que Nelson Rodrigues se
atrevia a chamar “ignara”. Infelizmente, não passamos perto dos norte-americanos,
que pagam os compositores ou tomam músicas por empréstimo como forma de apoio
político por parte de artistas de destaque.
Cururu |
Curioso é que em
Tatuí, cidade de uma rica tradição que fala direto com o povo – música caipira,
cururu, moda de viola, seresta -, raiz que se entranha em toda a região, a
maioria absoluta dos jingles empregados nessa última campanha foram baiões,
xaxados, xotes... Nada contra, mas a Capital da Música precisa aproveitar mais
a riqueza do som que emana de seu barro vermelho, que toca fundo os corações
caipiras, do que o ritmo que vem da terra seca nordestina. Talvez na capital
paulista, pelo enorme contingente de migrantes, ainda faça sentido. Mas para
Tatuí fica, para uma próxima vez, minha sugestão.
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