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sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

COMO UMA ONDA

 

Adrenalina: fórmula química

N
ão faz muito tempo escrevi neste espaço um artigo - “Pensando a Copa” - sobre música, esporte, adrenalina e as interações deste hormônio com a performance (desempenho presencial), característica de ambas atividades. Discorri tanto do ponto de vista benéfico dessa droga natural produzida pelo corpo quanto a hora em que ela chega a derrubar o artista ou atleta, um nocaute mental. Falei dos efeitos de um quase popular “antídoto” para controle da adrenalina, entre músicos, os betabloqueadores – de prejuízos sensíveis à performance musical. Aliás, digamos que “mecaniza” a interpretação, submetendo uma pretensa segurança do músico em desfavor da criação artística. Cabe ao músico sucumbir diante do caminho mais fácil e confortável ou trabalhar por uma interpretação que realmente cative o espectador (toda arte performática sempre tem como objetivo ser ao vivo, é bom lembrar).  Mas hoje abro espaço para ainda outra tendência: os esportistas que buscam algum tipo de catarse (libertação) via adrenalina em fortíssimas doses.

Bungee jumping

S
ão os chamados esportistas radicais, ou de aventura, cujo prazer é exatamente a busca pelo máximo, o que se traduz em rápida pulsação cardíaca aliada a uma intensa pressão sanguínea. Filosoficamente, pode-se dizer que é brincar com o risco, que remete ao limiar da morte – ou seja, o indivíduo busca emoção sentindo, às vezes muito perto, a mórbida sombra da velha e temida “senhora”. Quase todos esses esportes - a maioria inventada nos EUA, daí os nomes em inglês – são cultivados lá e cá, tal como o arborismo, a asa delta, o balonismo, o bungee jumping, o kitesurf, o longboard, o mountain board, o parapente e o trekking, entre outros. É claro que, sob um raciocínio bem simplório e reducionista, uma volta de bicicleta, um passeio na calçada, um descer de escadas ou alimentar-se na rua oferecem algum perigo, enfim, em tudo há certa mínima dose de risco, involuntária, que seja. Quero falar dessa busca determinada e voluntária pelo perigo, e, mais uma vez, de certo obscuro jogo de cartas com a morte.  Claro que todos esses esportes radicais têm de ser monitorados, executados sob supervisão e praticados em ambiente preparado para resgate e socorro: enfim, tudo para oferecer maior segurança – dentro do perigo de que é consciente do esportista.  E o surfe é um desses esportes, especialmente se for levado às modalidades mais radicais, como as ondas de grande altura.

Nazaré, Portugal

A
praia de Nazaré, oeste de Portugal, além de aprazível local turístico, é famosa por suas altas ondas, sempre desafiadoras. Surfistas de todo o mundo procuram-na pela fama – hoje, enquanto escrevo, ondas chegaram a até 4m de altura, trazidas por dóceis vagas (no Rio de Janeiro já seriam chamadas de “calhaus”, ondas muito grandes). Abrem-se enormes túneis, fascinantes e desafiadores para os surfistas, que aguardam ansiosamente por aquela onda gigante especial, de 15 metros ou mais de altura, o equivalente a um prédio de 4 andares. (O recorde em Nazaré foi estabelecido 2022, quando um alemão, Sebastian Steudtner, surfou a 26,21m de altura, quase uma construção de perto de oito andares).



Lorelei

N
a tarde do dia 5 de janeiro deste ano de 2023, Márcio Freire, brasileiro de 47 anos aficionado por ondas gigantes, foi seduzido por uma dessas vagas enormes e, como sempre, atirou-se com a prancha para uma viagem pelo túnel do tempo que mais uma vez parecia abrir-se de forma alucinada à sua frente. A partir daí, pouco se pode imaginar além do que ele próprio diria, se pudesse. Guiava-o uma descarga volumosa de adrenalina, companheira inseparável nessas viagens, mestre na sedução dos surfistas radicais como a sereia Lorelei dos navegantes do rio Reno, cantando e lançando-os contra os rochedos após se submeterem aos seus chamados voluptuosos.

Da Vinci: o homem vitruviano

I
magine agora Márcio, aventureiro, na boca de um desses túneis de água salgada, ante mais um verdadeiro convite ao desconhecido.  Ele vê apenas um clarão à sua frente, mas o túnel é mais veloz e afasta a luz mais e mais a cada segundo, até que ele se vê no escuro, no breu. Sabendo que há uma arrebentação na areia para onde confluem poderosas ondas - outro perigo de Nazaré, junto a um esfomeado refluxo de corrente a puxar-lhe para trás e para baixo. Daquele turbilhão imenso surge um caleidoscópio tridimensional girando em todas as direções, um globo imaginário sob o desenho vitruviano de Da Vinci, agora com pés e mãos torcidos e trançados, até o apagar geral da ribalta, um globo girando perdido e sem piedade para os lados, para a frente e para trás, para cima e para baixo. Corte para outra cena: de fora, vê-se a Marinha portuguesa retirando um corpo multifraturado  e já sem vida por conta de uma parada cardiorrespiratória. A busca pelo limite despertada pela adrenalina levou Márcio, bom baiano, para junto de Iemanjá, rainha do mar.

É doce morrer no mar”, cantaria o também baiano Caymmi, “nas ondas verdes do mar”. Mas não houve poesia nas imensas ondas verdes onde ele foi se afogar, “fez sua cama de noivo / no colo de Iemanjá”. Segundo os colegas do Mad Dog Márcio - de “Cachorros loucos”, como o trio de amigos surfistas era conhecido na Bahia - o companheiro de ondas em Salvador e no Havaí está no lugar onde gostaria. Talvez mais na poesia do Nelson Motta (feita para música de Lulu Santos) do que na do Caymmi, ele poderia cantar: “Não adianta fugir / nem mentir / pra si mesmo agora / há tanta vida lá fora / aqui dentro sempre / como uma onda no mar”.

In memoriam.

Márcio Freitas (RMS)


 

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