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sexta-feira, 1 de abril de 2022

CANÇÕES DE GUERRA, CANÇÕES DE PAZ, SILÊNCIO

 


São muitas as canções de guerra
, das que falam dela até, creia, as que lhes tecem loas. Sobre essas últimas, vem-me logo à cabeça Bandiera Rossa, cantada pelos radicais comunistas italianos: “Avante, povo, façamos greve / viva Stálin, viva Krushev”. A melodia lembra canções da Lombardia e a letra, de Carlo Tuzzi, tem o espírito da Rússia pré-revolução de 1917. Os radicais e anarquistas estavam impregnados por ideias que faziam soçobrar o mundo, certo comunismo redentor, que levaria os trabalhadores ao Paraíso.  Com direito a blasfêmias: “à meia noite, céu estrelado / o Santo Padre estará enforcado”.

(Óleo de Delacroix)

A Marseillaise, composta por Rouget de Lisle
(1792), após as lutas que culminaram com a queda da Bastilha (1789), era um grito de guerra, conclamando - assim como os radicais italianos viriam a fazer muito depois com Bandiera rossa - à guerra e à vitória. Canta a Marseillaise “Avante, filhos da Pátria / o dia de glória chegou” – não sem expor certa gana: “a bandeira ensanguentada está erguida (...) Que o sangue impuro banhe nossos campos (...) que teus inimigos, agonizantes, vejam teu triunfo e tua glória”. Canção revolucionária, foi banida durante o império de Napoleão, mas depois tornou-se - e até hoje é - o Hino Nacional francês, mas com apenas duas estrofes e dois refrões (a letra original é longuíssima). 


Do pacifista John Lennon
é uma linda música de Natal, Happy Xmas – the war is over (“Feliz Natal, a guerra acabou”): “Um Natal muito feliz / e um alegre ano novo / esperemos que seja um bom ano / sem medo algum”.  Entremeando a alegria do Natal - o chamado Christmas spirit -, mensagens de esperança por um futuro sem guerras, pleno de paz. A canção de Lennon foi escrita em 1971, sobre um slogan antiguerra de Phil Ochs, de 1968. Sonhava-se com a paz no Vietnã, uma guerra que já durava 16 anos e chegaria aos 20, carma do mundo jovem daqueles tempos, seu canto de amor. São de Lennon igualmente Imagine e Give peace a chance; também cantaram a paz Patti Smith (People have the power), Bruce Springsteen (Land of hope and dreams), Michael Jackson (Heal the world), Lenny Kravitz (We want Peace) e muitos outros. Com o fim da Guerra do Vietnã, já se vivia nos EUA uma nova era, a de Woodstock.


Caetano Veloso fez uma deliciosa salada
latino-americana em “Soy loco por ti, América”: “Espero o amanhã que cante / el nombre del hombre muerto / (...) Um poema ainda existe / com palmeiras, com trincheiras / canções de guerra, canções do mar / ay hasta te comover”. Tempos difíceis no Brasil! Não se sabe de que guerra o compositor falava, se era de alguma em particular, do regime político, luta entre palmeiras e trincheiras. O piauiense Torquato Neto, também tropicalista, usou essa dicotomia de Caetano em “Marginália II”, poema musicado por Gilberto Gil: “A bomba explode lá fora / e agora, o que vou temer? / Oh, yes, nós temos banana / até pra dar e vender”. Bastavam-nos bananas e, sim, longe da bomba - pero no mucho, diria um possível verso do Caetano, ou “longe daqui, aqui mesmo”, do dramaturgo Antonio Bivar.

Guerrilha em Moçambique

“Canto latino”, letra do cineasta Ruy Guerra
musicada por Milton Nascimento, tem um lado mais agressivo. Afinal, Ruy é Moçambicano, conheceu a guerrilha contra as terríveis ditaduras africanas: “Nasci com a minha morte / dela não vou abrir mão / (...) Quando a morte é vivida / e o corpo vira semente / de outra vida aguerrida / que morre mais lá na frente”. E segue, cáustico: “A primavera que espero / (...) Só brota em ponta de cano / em brilho de punhal puro / Brota em guerra e maravilha / na hora, dia e futuro / da espera virar...” (Aqui era para se cantar “guerrilha”, palavra omitida por óbvia prudência).

O "Domingo sangrento": Selma, Alabama

Cantando os males do mundo
, Barry McGuire, de voz rouca e rasgada, tinha um apelo mais plangente, um retrato inominável do momento, Eve of destruction (“Véspera da destruição”): “O mundo ocidental está explodindo / violência em chamas, corpos flutuando / (...) Você não compreende o que tento dizer? / Você não pode sentir o medo que sinto hoje? / Se o botão for pressionado / não haverá como fugir”. E divide o foco: “Pense em todo o ódio que há na China vermelha / então dê uma olhada para Selma, Alabama”. No estado de Alabama, o governador de extrema direita George Wallace defendia a segregação racial nos bastidores dos violentos conflitos, uma verdadeira guerra baseada no lema de sua posse: “segregação agora, segregação amanhã, segregação para sempre”. Mesmo com o Ato dos Direitos Civis aprovado pelo presidente Lyndon Johnson em 1964, é difícil fazer cumprir a lei. Fora do belo preâmbulo, discrimina-se, fere-se e mata-se negros até hoje.

Foto: The Guardian

Que canção serviria ao presente?
Cada guerra tem uma história, um rastro de sangue, de destruição. Tem personalidade própria desde seus obscuros motivos - o sangue de quem que as promove está impregnado pelo ódio. Sem canções, somente apelos, súplicas, a tristeza de ver crianças separadas de suas famílias, os olhos marejados e perdidos na destruição.


Temos hoje meios diferentes de protestar
, os artistas já não se manifestam como a voz do povo. Resta o silêncio, calarmo-nos por medo, voltarmo-nos para nosso próprio interior ou morrer – o que, filosoficamente, arrisco, não se vislumbra senão sob o mesmo símbolo: o silêncio. Cabe aqui a bela “Sons do silêncio”, de Paul Simon, e lembrar Beethoven, tomado pela surdez: “O som é prata, o silêncio é ouro”. Nem que seja por um minuto, um longo minuto por tantas vítimas.

                                                     


sábado, 7 de março de 2020

MULHER !


Caetano e Chico na informalidade
“Quando vem a madrugada ele some / ele é quem quer / ele é o homem / eu sou apenas uma mulher”. Nesta lindíssima canção, “Esse cara” (1973), Caetano retrata a mulher submissa, mero objeto de um homem que faz na vida o que quer, enquanto ela apenas o aguarda. Ele se coloca exatamente no lugar dela, ao cantar, apesar de a irmã Bethânia também ter gravado uma linda versão. Essa transmutação de um homem cantando os sofreres de uma mulher não é incomum, Chico Buarque também a fez duas ou três vezes, a exemplo de “Com açúcar, com afeto” (“fiz seu doce predileto / pra você parar em casa”). É a autocrítica do homem por sua culpa pela condição da mulher daqueles tempos, ela que aceitava com resignação os caprichos e desígnios do companheiro.
Sendo homens a grande maioria dos compositores e as mulheres os modelos para suas criações, claro que no passado prevalecia o ponto de vista masculino, o lado mais forte, de quem conta  a história. Para o cabra-macho Virgulino Ferreira, o Lampião, sua companheira de cangaço tinha de ser submissa, mas oferecer-lhe paixão como bem cantou Volta Seca, homem do grupo do Rei do Cangaço, em gravação de 1957, dezenove anos depois da morte da amante do chefe: “Acorda, Maria Bonita / levanta, vem fazer café / que o dia já vem raiando / e a polícia já está de pé”. Em jornada dupla, ela participava do cangaço, preparava a boia e o café, arrumava a tenda, limpava e areava as panelas de fundos encarvoados pela lenha das refeições. E ainda namorava.
Assim como em Caetano e Volta Seca, com aguçado espírito crítico “Cotidiano”, de Chico Buarque, mostra o homem cantando o dia a dia da mulher companheira, que labuta na casa e vai esperá-lo pontualmente na entrada quando ele chega: “Todo dia ela faz tudo sempre igual / me sacode às seis horas da manhã”. No retorno do trabalho, doze horas depois, segue a rotina: “Seis da tarde, como era de se esperar / ela pega e me espera no portão”. Se na partida o beijo da mulher tinha o gosto da hortelã da pasta de dentes, na volta do batente o sabor que o recebia era o da paixão.  Genial é a “Feijoada Completa”, também do Chico, uma receita que desce aos detalhes, um roteiro para a companheira fazer o agrado aos compadrios do homem: “Mulher / você vai gostar / tô levando uns amigos pra ‘cunversar’”. Como o dinheiro anda curto, ele diz para botar água no feijão, mas pede cerveja ‘prum’ batalhão (que não pode faltar, claro!). “Bota a mesa no chão que o chão tá posto / e prepare a a linguiça pro tira-gosto”, tarefas a que ela deve se dedicar com especial deferência.
Em 1974, participei da temporada de “Mais quero asno que me carregue que cavalo que me derrube”, auto do português Gil Vicente (1456-1536) extraído da “Farsa de Inês Pereira” e adaptado aos tempos modernos por Carlos Alberto Soffredini. Estrelava a atriz Tereza Rachel, que cantava um fado com direito a sotaque lusitano, vestida a caráter. Eu e o violonista Gaetano Galifi a acompanhávamos: “Pois se espelhe aqui comigo / eu que não tenho marido / e sou por aí falada como desavergonhada”. Era um sofrimento a mulher estar solteira, e um desterro viver separada. E é cantando que ela dá um conselho: “Mulher tem que ter um homem / que lhe abrace e lhe dê nome / sem homem mulher é nada / e acaba desesperada”.
Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sarte em Pequim, 1955
Desde o fado do auto do Gil Vicente, de 500 anos atrás, passando pela “Maria Bonita” do cangaceiro Volta Seca, e pelo Caetano e Chico do século 20, a música tem sido uma boa maneira para analisarmos o caminho trilhado pela mulher rumo à tão cobiçada independência. Da Santa Jeanne D’arc à inglesa Mary Shelley e a francesa George Sand, ambas do séc. 18, chegando à contemporânea Simone de Beauvoir, a também inglesa Virginia Wolf (virada do século 20), a mexicana Frida Kahlo e dela até as americanas Gloria Steinem, Betty Friedan e Oprah Winfrey, sim, mulher, como tem sido longa e dolorida a sua luta!
Havia um anúncio de uma marca de cigarros em revistas americanas em que uma linda mulher, sempre muito bem vestida, aparecia em primeiro plano em pose elegante, fumando um daqueles slims. No fundo, em preto e branco ou sépia, uma cena mostrava o passado, mulher enchendo uma carroça com feno ou alguma ilustração que mostrasse a submissão de que ela teria, enfim, se libertado. Sempre trocando a ilustração do anúncio, o mote da série era “You’ve come a long way, baby”, algo como “Você vem de longe, garota”. Essa propaganda da Philip Morris para o Virginia Slims, voltada ao público feminino, teve início em 1968, fazia o marketing do vício e tinha a luta das mulheres como oportuna estratégia.
Clara Zetkin e Rosa Luxemburg em 1910
A todas as mulheres, aplaudimos a celebração deste seu dia, por terem feito tanto pelo mundo, rumando à posse do merecido espaço de justa igualdade, embora ainda longe de ser conquistada. Em um 8 de março, em 1884, Susan Anthony propôs à Câmara dos Representantes dos EUA uma emenda que garantisse às mulheres o direito ao voto. Simbolicamente, a data serviu para uma conquista de Clara Zetkin, militante feminista alemã, durante a Conferência Internacional das Mulheres Socialistas de NY de 1910. Em 8 de março de 1910, a francesa Raymonde de Laroche foi a primeira mulher a receber um brevê de piloto de avião, e na mesma data, em 1911, eclodiu o primeiro movimento pelo voto feminino.  Não é uma data qualquer, ela é símbolo de sofrimentos, lutas, história plena de significados. O dia 8 de março continua a ser dedicado a elas em grande parte dos países do mundo. You’ve come a long way, baby.