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sábado, 31 de março de 2018

MÚSICOS: CONVIVENDO COM AS DIFERENÇAS

Músicos da Orquestra de Minnesopolis em discussão salarial

A convivência diária entre os integrantes de uma orquestra, apesar de frequentemente permeada de neuroses, é social e musicalmente muito sadia. Pouco importam as intrigas de fundo de seção, discussões sobre salários, quem senta na frente ou atrás, as escorregadas do regente, o vestido da violoncelista e outros assuntos que sempre surgem, de uma ponta à outra do grupo. Tudo é parte do cotidiano, e justificável porque durante horas músicos trabalham, como outros poucos profissionais, em silêncio. Mas a própria natureza acústica dos instrumentos, a origem, a sonoridade e a aparência física estimulam certa natural competição, entre os mais diversos deles.
Trompa de caça (corno da caccia)
As origens de cada um são diferentes, como vimos em artigo anterior. Discorri sobre as origens dos oboés, dos trombones e dos trompetes, em suas tarefas sociais. Mas a percussão teve origem nos tempos mais longínquos, e somente começou a ver o mundo das classes mais bem aquinhoadas por intermédio dos trovadores, entre outros, acompanhando grupos populares para deleite dos mais ricos. A trompa teve origem em um instrumento empregado na caça, com seu tubo enrolado em uma única longa volta, sendo levada no cavalo a 'tiracolo', para que o trompista pudesse executá-la com o sopro, ao tempo em que uma das mãos (não havia válvulas, como hoje) segurava o instrumento e a outra manobrava as rédeas do animal (Raynor, Henry: A Social History of Music).
Ravanastron
Entre os instrumentos de cordas que antecederam os nobres violinos de hoje, muito antes de aportarem na Europa Ocidental, havia antecedentes mouriscos, além de  ancestrais indianos e em culturas do Oriente Médio e Extremo Oriente. Naquelas plagas, cordas e arco ajudavam, entre outras coisas a meditar ao som das ragas, como fazia o ravanastron, tocado com arco, e o sitar (dedilhado) indianos, elevando a alma e obedecendo a sistemas musicais e princípios espirituais próprios.
Um rebab mourisco
O rebab, de onde a nossa rabeca, não aportou no Ocidente, como pensam muitos, pelas mãos poderosas do mercador veneziano Marco Polo (1252-1324), a quem se atribui a introdução na Europa da pasta, ou seja, o macarrão, espaguete e suas variações. E nem foi o instrumento entregue de mãos beijadas aos italianos, como muitas das boas invenções da vida foram. O primeiro destino foi a Península Ibérica, de onde, em sua longa ocupação pelos mouros (711-1492), foi enfim aproveitado pelos italianos, que no início do século 16 criaram instrumentos como o violino e sua família, e logo aperfeiçoando-o nos limites que o conhecemos hoje - pouquíssimo, além do material das cordas, foi alterado e tudo indica que assim permanecerá, sem maiores novidades. Uma arte de meio milênio que pouco ou nada mudará.
Felini em ação
Quem observou com argúcia as diferenças e particularidades entre os músicos foi o cineasta Federico Felini 'da Rimini', cidade de Francesca (por isso mesmo), a jovem imortalizada pela ópera homônima de Tchaikovsky, escrita sobre um dos cantos da Divina Comédia, de Dante. A visão do cineasta está no filme Ensaio de Orquestra, que recomendo (ver link abaixo), e nele fica evidente que cada músico considera seu instrumento o mais importante, de som mais lindo: o contrabaixo teria a voz dos deuses, a flauta o som mais puro, o piano seria o mais completo, o violoncelo, ah, o da voz humana, cada músico enaltecendo as qualidades e virtudes de sua escolha, frequentemente ironizando a dos colegas. Mas tudo isso, acredite, com amizade, coleguismo e, sempre, muito humor.
(Link para o filme: https://www.youtube.com/watch?v=wBX1NQYRwhU)

Uma trompa (shofar) vai ao Paraíso
O que é que o dedo do violista tem em comum com um raio? É que nenhum deles cai duas vezes em um mesmo lugar. E há a charada: jogado do 20º andar de um prédio, qual chegaria primeiro, o violista ou a viola? A resposta maldosa é ‘quem se importa?’ Democratizando, há a do trompista que, chegado à porta do Céu, aguardava seu julgamento. Junto a ele, estavam um agiota e um gigolô. Ao agiota, foi dito que praticou a usura, explorou, deixou famílias na pendura, sem carro e telefone. Inferno! Ao gigolô, que havia destruído famílias, levado boas meninas ao mau caminho, trazido doenças. Inferno! Na vez do trompista, sem pestanejar, o encarregado da triagem disse: passa, você vai para o Céu! O gigolô e o agiota, inconformados, foram tomar satisfação. Ouviram que, se um estragou vidas e famílias, o outro as deixou na miséria. Mas aquele feliz trompista, que já longe subia, fora agraciado com o Paraíso porque, muito antes de morrer, havia cem músicos rezando por ele.
E as diferenças entre o músico chamado erudito – expressão que não existe em outro lugar no mundo, e no Brasil não vou perder tempo em longas explicações sobre o porquê – e o chamado popular não fogem à regra, apesar de que há clássicos tão populares... (lembro logo três, a Carmina Burana, de Orff, o Bolero, de Ravel, e a 5ª Sinfonia de Beethoven!). Talvez o tipo de músico que vivia pelos cabarés da Lapa, o Beco das Garrafas de Copacabana, berço da bossa-nova ao vivo, não se preocupa em tocar de sandálias havaianas, se inglês meias brancas sem sapatos, como o baterista Charlie Watts, dos Rolling Stones, smoking cor de rosa ou furta-cor, camisa social ou de meia já rota, se americano. Transita pela boemia e gandaia com a mesma tranquilidade que, entrando pela porta dos fundos, convive com as castas mais abastadas – como os trovadores, de quem falei no início do artigo. O chamado “erudito”, ou melhor, clássico, padece das agruras da vida, assim como seu irmão das noites e shows. E divide com ele um bocado de preconceito e necessidades. Mas no palco, ah, na hora da estrela, abre-se em um rosário de felicidades!


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