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sábado, 14 de julho de 2018

O PRODÍGIO E A PRECOCIDADE NA ARTE

PERIGOS QUE SEDUZEM 
CRIANÇAS E PAIS


Já pensei, falei e escrevi sobre Mozart (1756-1791) muitas vezes. E será difícil, sempre, pensar o futuro da música sem nos lembrarmos do prodígio de Salzburg, menino travesso como qualquer outro, embora quase sobrenaturalmente bem-dotado. Já vi ilações sobre a data de registro de nascimento feita ‘a posteriori’, forçando para baixo a idade do menino, mas isso, diria meu pai, é coisa de especula. Poderiam as mãos habilidosas de papai Leopold ter colaborado nas composições precoces de monumental talento? Talvez um pouco, é coisa que não saberemos. Nada há que levante dúvidas quanto à predestinação daquela criança. Não dá para bater de frente com o torrencial de informações sobre o pequeno Wolfgang, precoce como raros, se não o topo da lista.
O tricordiano Godofredo Rangel
[Meu pai, o escritor Autran Dourado, contava sobre os conselhos que, ainda adolescente, recebeu do autor mineiro Godofredo Rangel após ler um dos contos dele, a pedido: ainda bem que você não é precoce. Estude, leia, leia. Orientou-o a mergulhar nos grandes clássicos, bebendo na rica fonte dos mestres da literatura. Godofredo achava que o canto da sereia da precocidade poderia atrapalhar grandes talentos que deveriam se desenvolver per ardua, e não apenas per talentum. A trilha construída por meu pai foi lembrada por um crítico como a de uma ‘formiguinha da literatura’, da labuta diária – talvez aludindo à fabula atribuída a Esopo e narrada por La Fontaine, sobre esse animalzinho e a cigarra.]

É certo que, no caso de Mozart, cabem aquelas palavras atribuídas (embora não seja comprovadamente o real autor) a Abraham Lincoln: pode-se enganar a todos por algum tempo; é possível enganar alguns por todo o tempo, mas ninguém pode enganar a todos o tempo todo. Não enganou Mozart, perenizado como gênio inconteste, precocidade a toda prova.
O que se sabe é que o menino, aos tenros quatro anos, já tocava muito bem o cravo, memorizando peças com facilidade. Aos seis, escreveu pequenos minuetti e um allegro. Aos sete, já teria tido publicadas algumas pequenas peças e aos treze já enveredava por um dos mais complexos gêneros musicais, a ópera. Tendo ouvido um Miserere que era sempre cantado na Capela Sistina, o adolescente, chegando em casa, sentou-se ao cravo executou-o de memória, com perfeição.
Mozart: finalizando Don Giovanni
Ciente de sua genialidade mas nunca tomado pela soberba, Mozart não sucumbiu à clássica estupidez de muitos gênios. Um dia, foi procurado por um jovem compositor iniciante que lhe pediu orientação sobre como escrever uma sinfonia. Mozart, já consagrado na Europa, disse-lhe para escrever primeiro coisas simples como baladas. Surpreso, o aspirante o questionou, dizendo que ele, Mozart, havia composto sinfonias aos dez anos de idade. E ouviu como resposta que, diferentemente do curioso, não perguntara a outros como fazê-lo.
Linz, a antiga beleza arquitetônica
O compositor produzia prolixamente, encabularia até copistas de seu tempo (hoje há softwares que fazem cópias no lugar dessa classe de profissionais infelizmente em vias de extinção). Bom exemplo dessa fertilidade exuberante é que, já adulto, de retorno à Áustria, em 1783, Mozart escreveu ao pai dizendo que não tinha sinfonia alguma pronta na bagagem, mas que estava confirmada uma apresentação em Linz. Sem mais problemas, o concerto foi realizado na data prevista. O compositor havia chegado na cidade apenas quatro dias antes, em trinta de outubro, e foi após esse ínfimo prazo que viu executada com sucesso sua nova sinfonia, que levou o subtítulo Linz, de número 36.
Encenação de Don Giovanni,: Metropolitan Opera de NY
Na véspera da estreia da magnífica Don Giovanni, Mozart ainda trabalhava na abertura da peça, a ser ensaiada e executada no dia seguinte. A ópera obteve grande sucesso. As suas sinfonias de número 39 a 41, aliás entre as mais belas, três sinfonias inteiras, friso, já eram dotadas da boa arquitetura de um compositor maduro. E foram compostas em menos de dois meses. Se há estudiosos que apontam no conjunto de obras de Mozart nada menos do que cinquenta e duas sinfonias, achando um trecho do que seria uma aqui, talvez um movimento acolá, no frigir dos ovos restam-nos 41 completas, sendo a última a elaborada Jupiter, conhecida pelo número K. 551, na catalogação de Köchel, adotada no mundo inteiro. Mas 41 sinfonias são parte de um caudaloso repertório, na juventude de seus 35 anos , e já seriam suficientes para justificar uma longa vida de trabalho de qualquer bom compositor.
Para fazer um contraponto entre a precocidade e  a ourivesaria, pensemos em Brahms (1833-1897), que, na contramão de Mozart, teria sido um bom exemplo para Godofredo Rangel dar ao meu pai, a fim de que ele não se deixasse seduzir pelo que chamei, no início deste texto, de ‘canto da sereia’ do prodígio. Ainda passeando entre os gênios – o prodígio e o elaborado, da complexidade, da reflexão imensa -, lembro-me sempre de Brahms (1833-1897) e sua grandiosa Sinfonia nº1, que já foi chamada por alguns de 10ª de Beethoven, embora pessoalmente ache que essa obra pouco tem a ver com 9ª do outro. O primeiro movimento teve uma versão no início dos anos 1860, e o esmero e a tapeçaria de vozes, solos, harmonia, enfim, a complexidade da obra, levaram longos, longos anos para serem magistralmente concluídos à perfeição. Cada artista deve saber seu lugar, sua época e seu ritmo, que lhe mostrarão o caminho a seguir. Deve-se estimular crianças desde cedo, claro, mas com cautela para não ver embotar algum talento que não logre, por excesso, ascender ao topo tão cedo quanto parece atrair o canto da sereia. Há um infindável número de grandes artistas e mesmo gênios que amadureceram a seu tempo, sem terem sido prodígios.

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