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domingo, 9 de dezembro de 2018

‘O MUSE, O ALTO INGEGNO, OR M’AIUTATE’1

AS MUSAS DA MPB DO PASSADO - I
Começo esclarecendo que costumo chamar de MPB exatamente o que a sigla quer dizer por extenso (música popular brasileira), não apenas da bossa-nova em diante, como muitos. Neste artigo, o ano de cada música comentada da MPB será o do primeiro registro, primeira gravação ou da primeira partitura.
Catulo
É difícil precisar quando a nossa música popular começou a dar nomes às paixões femininas, suas musas, mas neste texto optei pela ordem cronológica, e encontrando tantos nomes fui obrigado a fazer escolhas. Há poucos registros do início do século 20, porém um marco talvez seja Yara, subtítulo Rasga o Coração, chótis (schottische) de Anacleto de Medeiros e do grande poeta popular Catulo da Paixão Cearense: “Se tu queres ver a imensidão do céu e mar / (...) rasga o coração, vem te debruçar”.
Ary Barroso
Saltemos para Maria, de 1933, sucesso de Ary Barroso e Luís Peixoto. Música de uma peça teatral, foi um tributo à atriz portuguesa Maria Sampaio, a estrela: “Maria, o teu nome principia / na palma da minha mão...” De então para 1935, Lalá, marcha de João de Barro e Alberto Ribeiro, cheia de graça. Trata-se de uma deliciosa aliteração com vogais sobre o nome-título, terminando com a mulher da escolha do cantor (não a do título), entre cinco moçoilas: “Lalá, Lelé, Lili, Loló, Lulu / amei Lalá, mas foi Lelé que me deixou /jururu”.
Vênus de Milo
1937 foi o ano da Rosa. A de Pixinguinha, cuja melodia estava guardada há 20 anos e a letra que veio depois soa inspirada na perfeição de Vênus, deusa da beleza e do amor na mitologia grega, renascida carioca: “Tu és divina e graciosa / estátua majestosa do amor / por Deus esculturada...”, sem poupar, como se vê, exageros poéticos.
Os Anjos do Inferno
Em 1941, Antônio Almeida e Constantino Silva brindaram nosso cancioneiro com o samba carnavalesco Helena, Helena, que fez sucesso na voz do grupo Os Anjos do Inferno - “passei o resto da noite a chamar / Helena, Helena, vem me consolar”. O ano seguinte, 1942, consagrou o imortal modelo - machista, dirão hoje -, de companheira de todas as horas. “Ai meu Deus / que Saudades da Amélia, aquilo sim é que era mulher / Amélia não tinha a menor vaidade / Amélia que era mulher de verdade” joia de Ataulfo Alves e do versátil Mário Lago, homenagem carinhosa à empregada da cantora  Aracy de Almeida (título dicionarizado pelo Aurélio referindo-se à mulher submissa!).
Fim da II Guerra no Times Square
1945, do fim da II Grande Guerra, desencadeou um boom mundial de paixões e bebês, as primeiras tão desejadas e os segundos tão evitados durante o conflito! O ano produziu entre nós inúmeras oferendas amorosas, entre elas duas obras-primas. Uma é de Caymmi: “Dora, rainha do frevo e do Maracatu / Dora, rainha cafusa de um Maracatu”. Dora teve de competir com Isaura, do mesmo ano, da lavra de Herivelto Martins e Roberto Roberti, cantando o cruel dilema entre ir trabalhar ou ficar com a amada: “Se eu cair em teus braços / não há despertador que me faça acordar...” O mesmo ano ainda nos brindou com Maria Betânia, do pernambucano Capiba, curiosamente homem do frevo e não do samba, canção que balançou as rádios no vozeirão de Nelson Gonçalves: “Tu és para mim / a senhora de engenho”, talvez uma forma de o autor rebaixar-se galantemente ao papel de escravo de sua musa, com uma melodia bordada com imensa tristeza.   
Caymmi
O genial Caymmi reaparece em 1947 com sua Marina, de poesia tão linda, um samba urbano mais à maneira do Rio pré-bossa-nova do que das praias baianas: “Marina, morena Marina / você se pintou / (...) Marina, você já é bonita com o que Deus lhe deu / (...) desculpe, Marina Morena, mas eu tô de mal...”. O aparente dissabor ao ver sua amada ‘produzida’ é ao mesmo tempo um elogio à beleza pura, a que pode falar com suas próprias cores, seu jeito meigo, seus traços bem desenhados. Em conversa com o poeta Paulo Mendes Campos, o baiano disse que se inspirou em uma birra de seu então filho pequeno, Dori, que lhe disse ‘tô de mal de você’.
1959: Niemeyer mostra Brasília a Sartre (de óculos)
Em 1949, Chiquita Bacana, de João de Barro e Alberto Ribeiro, fazia gracejos com... o existencialismo, dez anos antes de Jean-Paul Sartre conhecer o Brasil, em visita a Brasília com Niemeyer. Na paradisíaca Martinica do Caribe francês, com a sensual casca de banana que vestia Chiquita, a música estourou nas paradas com a ‘rainha do rádio’, Emilinha Borba. Aproveitando-se do momento parisiense que seduzia as hostes boêmias e intelectuais do Rio, os autores apelaram para a sensualidade feminina, fazendo uma espécie de ‘chiclete com banana’ com a filosofia da moda: “Não usa vestido, não usa calção / inverno pra ela é pleno verão / Existencialista (com toda razão!) / só faz o que manda / o seu coração”.
Por sugestão da ‘Estrela Dalva’ de Oliveira, em 1952 Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira compuseram um baião romântico intitulado Kalu, codinome de uma paixão oculta (não se sabe de qual dos dois): “Kalu, Kalu / tira o verde desses olhos de cima d’eu / (...) você tá ‘mangando’ di eu” (mangar, verbo surgido no séc. 18: caçoar). Era o jeito dengoso com que só o velho Lua sabia galantear. O ano seguinte também foi do Nordeste, com Sebastiana, de Jackson do Pandeiro (autor de Chiclete com Banana), mestre do forró e do xaxado: “Convidei a comadre Sebastiana / pra dançar e ‘xaxar’ na Paraíba / ela veio com uma dança diferente / (...) e gritava A, E, I, O, U, Y (cantado ‘ipsilone’).
Descobrir a beleza desse repertório dedicado à mulher - seja um caso platônico, flerte, amor à primeira vista, namorada, esposa ou amante - é fácil, basta ouvir. Difícil é escolher, entre tantas, e no fértil período que abordei, um meio século! (Cont.)

[1 ‘Ó musas, ó altos gênios, agora me ajudem’ – Dante: A Divina Comédia. Inferno, Canto II] 

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