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sexta-feira, 23 de julho de 2021

MÚSICA, RELIGIÃO E IDEOLOGIA

 

Museu da casa de Bach, em Eisenach

J
ohann Sebastian Bach (1685-1750), talvez o maior músico de todos os tempos, foi educado na mesma escola de Lutero, em Eisenach, dois séculos depois. Criou vasta obra instrumental, como as partitas e as suítes para violino, violoncelo ou cravo, sonatas, concertos para solistas e muitas peças orquestrais. Dedicou sua obra a Deus, e escreveu três oratórios, 7 corais vocais-instrumentais, duas enormes Paixões, 5 motetes, 190 cantatas, salmos e 371 corais a 4 vozes. Reservava boa parte do seu tempo de compositor e mestre de capela para glorificar o Senhor, mas sem nunca deixar de dedicar-se à sua cada vez mais rica obra instrumental. É certo que essa louvação compreendia tudo o que se podia fazer com a arte dos sons, mas com pureza e obsessão pelo gradus ad Parnassum, a busca pelo Paraíso, a perfeição.


M
úsica e Deus, ou, em sentido mais terreno, religião, qualquer que ela seja, podem caminhar (ou não) de mãos dadas, em comum elevação de fé e espírito. Porém, não é raro que certas Igrejas, especialmente as que meu pai chamaria de seitas menores, tendam a ideologizar e, como acontece frequentemente nos dias de hoje, politizar, instrumentalizando a música como ferramenta de governo ou, conforme veremos mais à frente, justificativa para censura discricionária.  

Vitral da entrada da EMM: Vergueiro

E
m 30 anos como diretor de escolas de música (como a do Teatro Municipal de São Paulo e o Conservatório de Tatuí) não tive problemas de maior monta ou conflitos de ordem musical-religiosa, exceto por uma ou outra vez algum aluno ingressante da EMM, em cujo nome só os pais falavam durante visita à minha sala. Explicavam que a filha (ou filho) não poderia frequentar a escola aos sábados por motivos religiosos, evocando para isso até milenares textos bíblicos como a criação do mundo e o Êxodo. A primeira coisa que eu fazia era perguntar como ficariam as presenças em aulas e ensaios, as notas de provas, e como justificá-las sem perder a isonomia com os colegas. Mais ainda, dizia, em sentido estrito: a escola, por lei de 1969, fora criada para formar músicos profissionais e não diletantes. E que eu poderia ajudá-los na busca de uma comunidade onde encontrar uma formação mais básica, livre das amarras profissionalizantes da EMM. Matriculado mas sem abrir mão de faltar, logo o aluno era eliminado. Ou desistia, sentindo-se um estranho no ninho.


G
eralmente era o pai quem forçava o estudo musical, e o aluno começava a perder o gosto pela coisa, se é que já havia sentido algum. Houve caso em que um aluno me disse que queria tocar “apenas” para servir a Deus, ante o que arregalei meus olhos e instiguei: como assim, “apenas” a Deus? Você não acha que Deus merece o que há de melhor, que em sua fé, para alcançá-lo em louvação, deve buscar o melhor de si, muito mais ainda do que os profissionais? Deus merece tão pouco? Por que não oferecer o melhor ao Senhor?

José Pinto e Josué: IV Torneiro Estadual de Cururu

E
m Tatuí, em dez anos nunca tive problemas dessa ordem, talvez por se tratar de cidade cristã em sua maioria mais do que absoluta, são diversas igrejas e matizes. Talvez porque a convivência entre fé e música venha desde as origens, do improviso do cururu (de “cururuz”, corruptela de cruz), nascido nas catequeses; talvez porque o Conservatório, tão arraigado na vida urbana – “Capital da Música” que é, por lei estadual –, faça parte do dia a dia e do comércio, e nas ruas jovens com seus instrumentos sinalizem essa verdadeira comunhão artístico-espiritual. Um número considerável de alunos e ex-alunos profissionais dividem ou dividiram os bancos escolares com aqueles das igrejas.

Jazz do Capão (foto: Rede Brasil Atual)

S
inal dos novos piores tempos, no dia 12 de julho o UOL publica matéria do Congresso em Foco com o título “Ao barrar verba para festival, Funarte diz que música só deve servir a Deus”. Com um parecer abaixo da crítica, a Fundação negou a verba pleiteada para um festival de Jazz na Chapada Diamantina (BA), fazendo ilações sobre ‘aplicação errada’ de recursos públicos. A nota, que se autodenomina “técnica”, informa que a música deve servir a Deus, não devendo contemplar, portanto, o Jazz do Capão. O relator do processo, um certo Ronaldo Gomes, cita a seu jeito o compositor e mestre de capela alemão Johann Sebastian Bach. Supostamente, “o objetivo e a finalidade maior de toda música não deveria ser nenhum outro além da glória de Deus e a renovação da alma”. Ninguém menos do que o velho Bach, ele mesmo autor de um universo de obras instrumentais, logo profanas, ao lado de sua vasta produção composta como empregado de capela (Kapellmeister) para fins litúrgicos!


Arthur Schopenhauer

P
ior de tudo, no mesmo documento o “parecerista” cita outra frase, desta vez evocando Schopenhauer: “A música exprime a mais alta filosofia em uma linguagem que a razão não compreende” – muito lindo, mas sem ter lido o pensador alemão ou mesmo sem saber que ele trata da filosofia do pessimismo? E ainda mais longe, ao âmago da questão, segundo a metafísica do ateu? Além da absurda censura a um festival por motivos nada técnicos, fez-se tábula rasa tanto do espírito de Bach quanto de sua própria cultura ao citar Schopenhauer. Criada em 1975 exatamente para o amparo às artes, e não sua censura, estiveram no comando da Funarte nomes de reconhecida expressão na cultura brasileira, como Ziraldo, Edino Krieger, Ferreira Gullar e Miguel Proença, todos de grande peso em suas áreas. Hoje, tem à frente um certo Sr. Tamoio Marcondes, procurador federal e peixe absolutamente fora d’água, o sexto a ocupar  cargo tão volátil na atual gestão.

Que o Senhor tenha piedade da música!

 

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