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sábado, 13 de julho de 2019

THEATRO MUNICIPAL DE SÃO PAULO - I


PANORAMA DE UMA ARQUITETURA 
MUSICAL E POLÍTICA
A Av. Paulista das mansões dos poderosos magnatas
Nas últimas décadas do século 19, com o enriquecimento crescente das classes privilegiadas, o crescimento da metrópole e a importação de costumes e modismos europeus, São Paulo viu surgirem diversas casas de espetáculos. Algumas delas eram bastante pequenas,  dedicadas apenas a saraus musicais onde as elites dos chamados barões, forjadas na riqueza trazida pelo ciclo do café, poderiam fruir da melhor música. Foram construídos o Teatro Minerva (1873), onde funcionou o Teatro Apolo, na rua Dom José de Barros, mesmo local onde depois seria construído o Teatro Santana. Isso, além do Teatro Provisório Paulistano, na rua Boa Vista, depois desapropriado para a construção do viaduto que levou o mesmo nome.
O Polytheama
Foram erguidos o Ginásio Paulistano (1881) e, logo a seguir, o Teatro das Variedades Paulistanas, além do Coliseu Paulista, na rua Ipiranga. Prédios menores, às vezes construções simples com telhados de zinco, abriam suas portas para a fina flor paulistana, a exemplo do Polytheama, edificação precária na Av. São João e herdeira da tradição do São José, e o Teatro Eldorado, de 1900. Seguiram-se o Teatro Santana, na 24 de Maio, e finalmente o novo São José. No final do século, a cidade passou a ser ligada por uma ferrovia para passageiros à Capital Federal, Rio de Janeiro, provocando maior interação entre as duas metrópoles e profundas modificações na vida musical da sociedade. Companhias líricas e de teatro nacionais e internacionais passaram a incluir o São José em suas turnês, dotando-o de relevante papel no cenário artístico brasileiro.
Alexandre Levy
A partir dessa fase, SP teve um período de grande efervescência musical. Alexandre Levy (1864-1892), chegado da Europa, onde fora estudar, residiu em um casarão na rua Vergueiro (onde foi sede, por mim inaugurada em 1992 e permaneceu até 2012, da Escola Municipal de Música). Parte do terreno da frente do imóvel foi desapropriada para dar passagem à atual Av. 23 de maio. Levy fundou o Club Haydn, e Luigi Chiaffarelli (1856-1923), que foi professor de estrelas como Guiomar Novaes e Souza Lima, o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo (1904), “para evitar que a classe musical desaparecesse”.
Graças ao vereador e dramaturgo Gomes Cardim, um projeto de lei para a construção do Theatro Municipal foi aprovado em 1896, mas as obras só tiveram início em 1903. A edificação, suntuosíssima - “estandarte glorioso da cidade” -, constitui-se de 3.609 m² distribuídos por sete pavimentos, e consumiu oito anos de trabalho. Cristais da Boêmia, tapeçarias de Milão, mármore carrara, estátuas e móveis alemães, louças de banheiro inglesas, pianos Pleyel e a  decoração do frontispício do palco e plateia folheada a ouro, tudo para reproduzir o sedutor luxo europeu (a saudosa professora da Escola Municipal Rosa Corvino mostrou-me uma dessas preciosas folhas com homenagem ao pai dela, mestre de obras da construção).
O fosso atual
Por erros na funcionalidade do Theatro, músicos não soavam em uníssono com o coro da elite: o fosso, pequeno, não comportava uma orquestra de ópera inteira, e só seria reformado em 1941, na gestão do prefeito Eng.° Armando de Arruda Pereira. Consta nos registros municipais que durante a récita de inauguração boa parte da orquestra, por falta de espaço, passeava pela cidade ou se embriagava nos bares.
A suntuosidade do prédio do  Municipal
Em 1911, o eng.° Ramos de Azevedo, que hoje dá nome à praça onde foi erigido o prédio, depois do trabalho intenso desenvolvido com os irmãos arquitetos Domiziano e Claudio Rossi (também cenógrafo e profundo conhecedor das melhores casas de espetáculos da Europa) entrega à cidade - louros políticos ao prefeito Raimundo Duprat -, uma obra típica do ecletismo paulistano da época, camuflado espírito barroco moldado no clássico greco-romano e no seicento italiano. Há clara  semelhança com o Opéra de Paris e  olhos no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, inaugurado dois  anos antes.
Para a estreia em grande gala, marcada para 11 de setembro de 1911, o maestro Edoardo Vitale havia preparado, à frente de uma orquestra de 70 músicos, 56 coralistas e 16 bailarinos, a ópera Hamlet (1868), de Ambroise Thomas, para ser encenada com a companhia do célebre barítono italiano Titta Ruffo.  Foi então que surgiu o primeiro imbróglio artístico-político: pressões enormes obrigaram a inclusão, na abertura do espetáculo, da protofonia de Il Guarany, de Carlos Gomes, que, por atropelo, nem constou nos créditos do cartaz de divulgação. Autoridades e políticos acharam uma humilhação inaugurar aquela grande casa de ópera sem incluir o grande compositor brasileiro no programa, às favas se nada tivesse a ver com a ópera francesa a ser encenada.
A  multidão começa a se dirigir ao TM
Para agravar, a estreia foi adiada para o dia 12, já que por descuido os cenários simplesmente não chegaram a tempo. Essa primeira crise já anunciava a relação conflituosa – e às vezes incestuosa – entre a música do Theatro e a administração pública. Mas ninguém pôde negar o sucesso da concentração de vinte mil pessoas no Anhangabaú e um talvez inédito engarrafamento no entorno - toda a casta motorizada estava presente à inauguração. Segundo Mário de Andrade, que veio a ser diretor municipal de Cultura (1935), o Municipal era “um lugar onde as madames ficam chacoalhando suas joias e os maridos fumando charutos e falando frivolidades nos corredores”. (Continua)
[Texto extraído de um projeto apresentado à USP em 1998 para pesquisa trienal. O material não foi usado e é inédito].

sábado, 13 de janeiro de 2018

TRAPALHADAS POLÍTICAS NA MÚSICA BRASILEIRA – II

(Cont.) Certo dia estávamos em plena aula de Folclore, quando irrompeu pela porta o diretor-general. Como falávamos sobre certo tipo de flauta que indígenas de algumas tribos confeccionam com ossos humanos, o interventor não resistiu e começou a fazer comparações entre as primitivas flautas dos índios, homens que não escondia considerar inferiores, e aquelas transversais, feitas de ligas de prata com outros metais, utilizadas em nossas orquestras sinfônicas, manifestações artísticas “superiores”. Tentei, em vão, argumentar que não havia "arte superior" e "arte inferior", cada uma representa culturas e tradições diferentes.
Irritado, o general se retirou da sala, batendo a porta. Mas voltou, entreabriu-a e apontou o dedo em riste para mim: "...e você aí, cuidado, hein... cuidado para não virar flauta!" (referiu-se, com certeza, à matéria-prima humana utilizada na confecção daqueles instrumentos pelos nossos indígenas). Não muito tempo depois, início do desmoronamento do regime, o general Graça já estava felizmente reformado, exonera­do e sem graça, enquanto o outrora maldito prédio da UNE, na Praia do Flamengo, fora demolido para dar lugar a um indecente estacionamento, para bem sei lá de quê ou de quem.
Com poucas saudades dos velhos tempos em que militava, até mesmo a ex-atriz, ex-deputada e atriz novamente Bete Mendes, Secretária de Cultura do Estado de São Paulo na gestão Orestes Quércia, dava-se ao luxo de permitir certas práticas que em outros tempos ela mesma con­sideraria indecorosas, enquanto “revolucionária”: na espera para uma reunião, em seu gabinete, eu e os demais inte­grantes da Associação dos Músicos pudemos perceber um microfone cuidadosamente disposto sob o tampo da mesa, deixando-nos intrigados. Não se pode garantir a finalidade dos apetrechos. Talvez, por sermos músicos, alguém possa ter pensado que fôssemos cantar alguma peça a cappella, talvez alguma preciosidade musical a ser gravada sigilosamente. Mas se nada há a temer, nada há que se esconder.
O nome da Bete Mendes Bete Mendes cruzou meu caminho uma terceira vez (a primeira foi na peça Gota D’Água, de Chico Buarque e do saudoso Paulo Pontes, em 1975, no Rio de Janeiro na qual trabalhei: Bete fazia a inocente Alma, filha de Creonte e amor de Jasão). Por volta de 1990, já diretor da
Escola Municipal de Música de São Paulo, recebi a visita de uma senhora que tentava, a todo custo, ver seu filho como professor em uma das classes de Piano; o garoto seria dono, conforme a própria mãe repetia, de um talento invejável, a marca do gênio (francamente, não foram poucas as
vezes em que pais ou mães abusaram de adjetivação semelhante para qualificar as habilidades de seus filhos).
Ante minha negativa, como era de praxe (já pude receber a visita de um Secretário de Educação, com carro oficial, segurança e tudo!), a mãe de um pequeno gênio informou que conhecia a deputada Bete Mendes, se isso não ajudava. Diante de tamanha cara de pau eu menti que sim, mas que deveria ter o pedido por escrito. Poucos dias depois, recebi um documento, em papel timbrado da Câmara dos Deputados, que solicitava a inclusão do menino no quadro dos alunos da Escola. Guardo-o com carinho. Aquele ofício deu inúmeras voltas do primeiro ao último escalão da Prefeitura, junto com um memorando em que eu informava que "tem gente que ainda não entendeu nada"... Entre inúmeras dessas tentativas de jeitinho para favorecimento de conhecidos, tão peculiar no Brasil, cheguei a ser visitado por uma senhora interessada em espremer seu talentoso filho em uma vaga da escola, enquanto no estaciona­mento aguardava outra vez um autoridade, com direito a carro oficial e segu­ranças. Sem sucesso, é claro.
Digna de menção é uma verdadeira pérola de poesia. Uma velha senhora conhecida da então secretária do prefeito, insistia em empregar seu filho, Valnei (omito o sobrenome por cautela), como professor na Escola Municipal de Música (apesar de ele não saber quase nada e de nunca ter dado uma aula). Ante minhas escorregadelas pela tangente, enviou ao gabinete do alcaide um pequeno poema-oração, da lavra de seu talentoso filho e devidamente anexada ao processo, o qual passo a reproduzir literalmente logo abaixo (detalhe: apesar da “puxada”, o pedido de emprego não colou e nem o gabinete insistiu, era praxe apenas repassar o que chegava): “Maluf nosso que estás no auge / glorificado seja o teu nome / venha a nós o teu comando / seja eleita a tua pessoa / assim em São Paulo / como em Brasília / (...) e não nos deixeis morar embaixo da ponte / mas livrai-nos dos marajás / Amém”.
Reichstag, Berlim, de longa história
A ideia de disciplina trazida pelas orquestras deve, e muito, impressionar os profissionais da política: vários poderosos adorariam ver seus súditos curvados ante sua própria sensibilidade, incógnitos e, massa per­feita, organizados como no Reichstag? Melhor ainda, su­bordinados às oscilações de sua vaidade e seu próprio temperamento apaixonado e onipotente?

Mas a aparente disciplina das orquestras, apesar de impressionar os que assistem atentos a um bom con­certo, não costuma ser tão canônica quanto parece. Nos bastidores, a situação chega frequentemente ao cômico e não raro à baderna - o que não é exclusividade dos músicos de hoje: já no século XVII, os músicos de Nuremberg receberam ordem de ensaiar na própria Prefeitura, sob a vigilância de um subprefeito que entendesse de música, para que os instrumentistas não burlassem seu dever de funcionários públicos. (Continua)

sexta-feira, 15 de julho de 2016

A HORA E A VEZ DE NAOMI MUNAKATA

(Divulgação)
IN MEMORIAM

Conheci Naomi em 1985, quando ingressei como professor na Escola Municipal de Música, do Teatro Municipal de São Paulo. Naquela casa antiga, encontrei-me com colegas, alguns conhecidos, e outros menos, de quem sabia só de nome. Naomi era um deles. Passei a conhece-la melhor em 1989, quando, por indicação consensual dos professores à administração, tornei-me diretor da unidade. Daí, claro, meu contato com todos os professores passou a ser mais próximo, pois que diários, e Naomi tornou-se conversa constante e amiga. Era, a um só tempo, professora de teoria e aluna de harpa, uma combinação que eu não compreendia muito, mas que apenas aguçava minha ideia de que ela era uma pessoa ávida por aprender e se expandir.

Naomi nasceu em Hiroshima (pausa fora do assunto, pois nunca me conformei: hecatombe absurda a que se seguiu Nagasaki, dois dias depois da primeira bomba, quando o Eixo já se desmontara, deixando o Japão indefeso). Os pais de Naomi decidiram para lá ir assim que os efeitos da radiação daquele holocausto cessaram. E foi ali mesmo, anos depois, no meio daquele pedaço de chão que é um passado vergonhoso da história, que nasceu nossa amiga. Bons papos, eu a convidava, uma vez ou outra, para minha casa em Jabaquara, e, com um fusquinha simpático, levava seu wok (fritadeira) e os apetrechos para fazer uma de suas especialidades: um maravilhoso sukiyaky, que sabia elaborar com toque de maestrina.

Saboreávamos a iguaria e, já mais tarde, à noite, meu segundo filho, Lucas, ainda quase bebê e difícil de fazer dormir, começava a ficar impaciente e irritado. Mas era batata: bastava Naomi pegar o menino, colocar no banco de trás do fusca velho de guerra, e dar umas voltinhas no quarteirão. Tiro e queda, lá vinha ele embalado e dormindo. (Em uma viagem, achei uma bonequinha de pano de feições orientais cuja face era bem parecida com a da amiga: chamei-a Naominha, e dei-a de presente ao meu filho).

Ela também dominava técnicas das tradições orientais com habilidade: certa vez, eu estava com a coluna literalmente travada, muita dor nas costas, e ela pediu-me que deitasse de bruços no chão de minha sala. Dito e feito, tirou os sapatos, passou a caminhar sobre minha coluna, vértebra por vértebra, usando seus calcanhares com precisão cirúrgica. Ao final, minutos depois, levantei-me, e onde estavam a dor e a coluna engripada? Mágica da Naomi: levantei-me aliviado e agradecido.

Eric Ericson
O destino de Naomi era mesmo o pódio, a regência coral. Com um ouvido impecável, aguda sensibilidade, começou a embrenhar-se nessa missão e devotar-se a ela com grande paixão. Tendo iniciado seus estudos musicais ao piano, aos tenros quatro anos de idade, mais tarde acabou, durante anos, privilegiada pelas lições de mestres como Eleazar de Carvalho, Hugh Ross e Sergio Magnani, entre outros. Obteve uma bolsa de estudos da Fundação Vitae para estudar com o ‘papa’ da regência coral Eric Ericson, na Suécia.

Porém, havia um pequeno problema: para viajar, Naomi, funcionária admitida, não possuía o privilégio dos servidores estatutários de poder afastar-se com prejuízo de vencimentos. Porém, com a ajuda de pessoas de bom trânsito nos meandros da Prefeitura – e entre elas cito minha ex-assistente e ex-diretora administrativa do Centro Cultural SP, Maraíza Nascimento -, por uma espécie de “ressonância” legal, lá foi Naomi, dispensada, para a Suécia, de onde voltou preparada para trilhar nova gloriosa carreira.

(Divulgação)
Tornou-se regente do Coral do Estado, que lapidou com mãos de artesã. Mais tarde, transformou-o em Coral do Estado e, em um salto, ergueu o Coro Sinfônico da OSESP, na belíssima Sala São Paulo, criando não um coral, mas um verdadeiro grupo vocal dedicado ao repertório sinfônico, que seria sua atribuição profissional, e o dirigia com todas as sutilezas e nuances que esse tipo de formação merece. Naomi tinha o dom da simplicidade dos gestos, uma suavidade com as mãos que dialogavam em sintonia com a voz, o controle sem a rigidez mecânica do tempo, algo com que eu, com certa liberdade, posso parafrasear o liberalista econômico francês Gournay, transportando-o para o contexto musical: laissez faire, laissez chanter (deixe fazer, deixe cantar). Nascia, assim, o grande coro talhado para o repertório sinfônico - modelar, exemplar, um paradigma para o Brasil. Lembrava-me do Coro de Tanglewood, um belíssimo grupo de grandes cantores que se apresentava com a excelente Boston Symphony Orchestra, em concertos e gravações.


Em 2014, Naomi tornou-se “regente honorária” – segundo o Houaiss, ‘honorário -  “que, após ter deixado de exercer função, cargo, emprego, conserva o título e as prerrogativas” - da Osesp, o que parecia uma honra especial, mas que desde já deixava transparecer o desfecho da ópera: no final de 2015, Naomi era demitida da Osesp, por motivos que não se sabe, que agora menos ainda cabe discutir. Recolheu-se, pois, como dizia o mestre Eleazar de Carvalho, quem é bom já nasce feito, não precisa de estripulias para se afirmar. Recentemente, em 2016, Naomi, quieta como se já aguardasse algo novo surgir, foi convidada e assumiu o posto de regente titular do Coral Paulistano do Teatro Municipal, fundado pelo grande Mário de Andrade. O que desejo para Naomi Munakata, agora, talvez não devesse ser dito, mas cantado  por todos os anjos: uma frase do famoso coro do terceiro ato da Ópera Nabucco, de Verdi, resumiria tudo: “segue, pensamento, sobre asas douradas” (va, pensiero, sull’ali dorate), pois seu voo é para sempre, ad lib, menina. 

NUNCA PARE DE VOAR, NAOMI!