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sexta-feira, 29 de março de 2013

A PAIXÃO SEGUNDO MATEUS


Não faz muito tempo, publiquei neste espaço um artigo chamado Bach e sua Catedral de Sons, no qual citei a grandiosa Paixão de Mateus, entre diversas outras obras do compositor alemão. Com os pensamentos de todos os homens e as orações de todos os cristãos voltados a esta última sexta-feira, a sexta da Paixão, nada mais oportuno do que relembrar esta obra bachiana mais detalhadamente, para assim dividirmos com o compositor sua visão de alguns dos momentos de maior sofrimento já registrados, que os religiosos transformam em luto, culto e oração anual, e os demais em reflexão.


A Flagelação, por Caravaggio
Em toda sua simbologia, a Paixão de Mateus mostra o caminho de Cristo rumo ao flagelo, à crucifixão e, martirizado, descendo rumo ao calvário, “de onde há de ressurgir para julgar os vivos e os mortos”, conforme os textos sagrados. Imbuído profundamente desse espírito, de incomum reverência submissa ao sofrimento do Senhor, Bach revelou ao mundo seu Passio Domini Nostri J. C. Secundum Evangelistam Matthaeum – do latim, Paixão de Nosso Deus Jesus Cristo Segundo o Evangelista Mateus, obra grandiosa que estreou na Igreja de Santo Tomás, em Leipzig, em 1727.

Órgão Litúrgico
Bach requer, nessa longa partitura composta em forma de oratório, coros duplo e triplo e orquestra dupla, com libreto (texto) de Christian Henrici. Esta Paixão (existe ainda uma outra, a de João) se baseia nos capítulos 26 e 27 do evangelho segundo Mateus, em tradução alemã de Martinho Lutero, textos narrados em forma de recitativo pelo Evangelista com acompanhamento de contínuo (instrumento de cordas de voz grave), por violoncelo ou violone (antecessor do contrabaixo) entremeados de impressionantes corais e árias.
Violone

Em 1736, para outra apresentação, Bach acrescentou dois órgãos à orquestra e, obsecado, ainda realizou mais duas revisões, em 1742 e 1743/1746, ora devido à ausência de órgão em local onde a obra seria apresentada, o que fazia o compositor trocar o instrumento por um cravo, ora por capricho perfeccionista – ou ambos.

Mateus, evangelista
Os textos bíblicos são recitados musicalmente pelo Evangelista, enquanto árias e ariosos comentam e ilustram as passagens, desde a unção de Cristo até o Monte das Oliveiras, do falso julgamento a Pedro e Judas. No recitativo nº 45, o evangelista narra o episódio em que Pilatos pergunta ao povo a quem eles querem que seja solto: Jesus ou Barrabás, mesmo ante o clamor pelo inocente feito pela mulher de Pilatos. Já no nº 48, é a vez de a soprano lamentar: “Ele fez o bem para todos nós. Aos cegos ele fez enxergar e aos paralíticos andar. Ele nos ensinou a palavra do Pai, afastou os demônios, consolou os aflitos. Recebeu e aceitou de volta os pecadores”.


Partitura com autógrafo
A riqueza de detalhes na partitura, a escolha das tonalidades e modulações (mudanças de tonalidades), todos os artifícios do melhor ourives da partitura foram empregados, em consonância com a preciosidade do texto e a enorme devoção de Bach: “Tudo o que fiz dedico a Deus”. E, submisso, como se prostrado diante da infinitude do Criador, assumiu-se, como nós, mais um, um a mais: “quem trabalhar quanto eu trabalhei obterá os mesmos resultados”.

Oboé da caccia
Ambos os coros empregam dois traversos (flautas transversais de madeira), dois oboés, 2 violinos, viola, viola da gamba (um dos precursores do violoncelo moderno) e um baixo contínuo (instrumento de cordas de voz grave), além de, às vezes, um oboé d’amore (um oboé, como o nome já diz, com som mais doce) e um oboé da ‘caccia’ (de caça, voz tenor). Essa orquestração, nos últimos tempos, tem sido muito ampliada pelos regentes nas apresentações, visando a maior impacto e um efeito magnífico.
O imponente coro de abertura é talvez uma das mais espetaculosas introduções musicais de todos os tempos, é uma verdadeira elevação dos espíritos ao Altíssimo (Veja e ouça abaixo: Venham vocês, filhas, ajudem-me a lamentar” com os English Baroque Soloists e o Monteverdi Choir, regência de J. Eliot Gardiner) 


Crucifixão: Gerard David
Os manuscritos requerem oito solistas, em que soprano e dois baixos cantam as partes de Pedro, Judas, a mulher de Pilatos e outros. Às palavras finais de Cristo, escritas em aramaico, Eli, eli, lama sabachthani (Deus, Deus, por que me abandonaste?), Bach reserva uma orquestração especial, que faz ressaltar na voz do solista a súplica, e ergue ainda mais a fé dos que aguardavam aqueles momentos finais do Salvador. São 78 (ou 68) movimentos (partes); porém, mesmo longa, a obra consegue envolver a plateia e os músicos de forma impressionante.

Lorna Cooke deVaron
Devo ter tocado esta Paixão algumas vezes, mas inesquecível foi a versão de uma grande especialista, Lorna Cooke deVaron, considerada uma das maiores regentes corais do século 20, responsável pela primeira audição de obras de compositores do porte de Bernstein, Britten, Copland, Schuller, Barber e outras tantas lendas. A apresentação, incluindo intervalo para um bufê, durou quatro horas, quatro longas, profundas e inesquecíveis horas. Ao terminá-la, a sensação era de estarmos irmanados em espírito aos colegas das orquestras, coros e público, em um quase silêncio, à beira da exaustão. Uma imersão na grandiosidade de uma obra-prima, com a orquestra da NEC tendo Mrs. deVaron à frente é um mergulho na própria mente e na espiritualidade humana, independentemente do credo religioso e mesmo de fé. 


Interessante  é a sensação, logo na abertura, de que aquele grande número de artistas no palco está a bordo de um enorme barco, perto de zarpar rumo a uma grande viagem, uma grande imersão, da angústia final à morte de Cristo: o maior drama dos cristãos, gerador de uma das mais arrebatadoras obras de arte jamais esculpidas pelas mãos de um homem. Talvez a que mais nos faça respirar em patamares um pouco mais próximos de Deus.

Nos minutos finais, Wir setzen uns mit Tränen nieder (Nós nos Sentamos entre Lágrimas), o coro I dialoga com o coro II, que repete, insistentemente: Ruhe sanfte, sanfte ruh ("Reste em Paz, em Paz Reste!"), ao que a seguir o coro I revela: "Vossa sepultura e vossa lápide deverão ser, para a consciência do sofrimento, um conforto e um local de repouso para a alma. Em grande júbilo, ali os olhos do Senhor adormecem". (Veja e ouça acima).

O Salvador havia morrido.








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