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sexta-feira, 6 de novembro de 2015

ENEM 2015 E SIMONE DE BEAUVOIR

Simone
Uma polêmica além do surreal. Mesmo que ninguém soubesse quem foi Simone de Beauvoir, a questão teria sido simplíssima. Porém, os “diplomados” pelas redes sociais que tiram conclusões apressadas já pelos meios-títulos cunhados com má intenção, sempre caem na esparrela. Houve uma mocinha que escamoteou levianamente com o dedo a segunda parte da questão nº 5, deixando entrever na postagem apenas o início: “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Jogou na rede e escreveu no caderno da prova este descalabro: “nasci mulher, tenho vagina”. Simone pensava que tornar-se mulher era quando ela se assumia como tal em uma sociedade em que “o segundo sexo” (título do livro de onde saiu a frase) é subserviente. Ora, talvez navegando em pensamentos da moda como “o sexo ou opção de gênero acontece depois”, a garota desferiu um golpe mortal na lógica. A segunda parte da introdução, que ela encobriu, explica que tornar-se mulher significa encontrar seu lugar na sociedade machista. Nada a ver com sexualidade, ponto.

Usar jargão moderno para se referir a uma frase de 65 anos atrás foi para lá de cabotino. As respostas em múltipla escolha tiveram antes uma curta explicação, e essa quase que trazia embutida a resposta: “na década de 1960, a proposição de Simone de Beauvoir serviu para estruturar um movimento social”. Ponto. Mostro minha discordância quanto à clareza da pergunta, pois esta segunda parte, “na década de 1960”, é uma redação dos que elaboraram a prova, nunca afirmação de Beauvoir. O livro de Simone é de 1949, e a segunda frase do texto, que não é de autoria dela, refere-se a quase 18 anos depois. Para confundir mais ainda, em letras miúdas, a bibliografia do texto da questão: "BEAUVOIR, S. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980". Para atrapalhar ainda mais, a edição citada na bibliografia é de 1980. A tradução para o português foi no mesmo ano de lançamento, 1949, assim como naquele ano e mais de 30 idiomas, em 1950. Samba do candidato doido. 

Movimento feminista: protesto no Brasil, anos 1960
Se fossem respostas dissertativas, e não por múltipla escolha, dá para imaginar o nível das explicações. Pois vamos a elas. (A) “Ação do poder judiciário para criminalizar a violência sexual". Absurdo, não seria da alçada do judiciário inventar algo que a lei não define. (B) “Proposição ao Poder Legislativo para impedir a dupla jornada de trabalho”. Impedir? A “segunda jornada” se refere ao lar, depois do trabalho, e é uma questão de divisão de trabalhos domésticos, a mulher dando duro e o maridão descansando da lida. Não há como legislar sobre a intimidade do lar, indevassável pela Constituição. (C) “Organização de protestos públicos para garantir a igualdade de gênero”. Seria a resposta correta, fora a minha restrição aos citados anos 60, muito depois do livro Simone. Meu filho cravou por lógica. E ainda me falou nas questões femininas do pós-guerra. (D) “Oposição de grupos religiosos para impedir os casamentos homoafetivos”. Naquela época? É coisa de dos dias hoje, o assunto nem sonhava em ser cogitado. Tabu 100% (E) "Estabelecimento de políticas governamentais para promover ações afirmativas”. Soa como coisa oficial, da Secretaria da Política para as Mulheres ou discurso político.

A discussão, eivada de maldades e distorções, foi além do ridículo. A literatura brasileira não foi solapada pela francesa, pois a questiúncula (no diminutivo mesmo) era tão curta, entre 45, que mais lembrava as “leituras silenciosas” do colégio. Ninguém precisaria conhecer o pensamento da filósofa, sequer saber quem ela foi. A simples lógica induz à opção correta. Simone propunha ideias feministas, sim, e nunca pelas mãos do estado, haja vista que à mulher francesa foi “concedida” a bênção do direito de votar apenas quatro anos antes de seu livro. Não interessava - nem interessa ainda - ao estado machista abrir espaço às mulheres. Ademais, o jargão empregado nas respostas erradas, (D) e (E), é típico vocabulário recente brasileiro, sendo a (D) coisa da “bancada da Inquisição” do Legislativo e (E) vindo de instâncias do governo, de cima para baixo, e não de um movimento de conscientização popular, de baixo para cima. Conseguiram radicalizar uma coisa simples, e pilantras dos mais reacionários e ignorantes subiram ao palco armados. Segue-se um cenário de terror onde quem apavora são os atores principais, autoridades da justiça e do Legislativo, dois poderes constituídos.

Gloria Steinem: a ativista sedutora
Nos anos 1960, a que se refere a parte que não saiu do livro da Simone, e não ficou claro, mais precisamente nos tempos de ouro 1968 a meados dos anos 1970, grandes líderes feministas surgiram, em especial nos EUA, onde a mulher passou a ter o direito a voto já em 1920, seguindo a Inglaterra (1918), e entre elas dois nomes se sobressaem: Betty Friedan (1921-2006) e Gloria Steinem (1934). Essas sim, não pensadoras e intelectuais como Simone de Beauvoir, mas ativistas provocadoras de atitudes em favor da emancipação e dos direitos femininos. Steinem teve aliadas de peso, como a atriz Jane Fonda, e um aspecto sedutor para mulheres e homens: era linda na época. Usando essa condição, conseguiu disfarçada um contrato em bares da revista Playboy, em que viveu e relatou as condições humilhantes e ridículas, e o constante assédio a que as mulheres ali eram submetidas. Seguindo o modelo das americanas, a brasileira Rose Marie Muraro (1930-2014) despontou como líder, e militou nos anos 1970. A partir de 1980, passou a ser perseguida. Mas voltemos ao início, o Enem e Beauvoir, lembrando que o dia 3 de novembro, terça, é comemorado internacionalmente, como o "Dia da Instituição do Direito de Voto da Mulher"! 


Normal o fato de a quase totalidade das pessoas não conhecer o trabalho de Beauvoir: estamos no século da escuridão, e não no século das luzes (18, pré-revolução francesa), ou no 20 das proposições de Beauvoir, Marcuse e outros. Responder à questão implica apenas em um mínimo de bom-senso, mesmo com todas as falhas do texto da prova. Agora, “ideologizar o ENEM”, como querem os radicais das bancadas "da bala” e "da Inquisição”, Bolsonaro e Feliciano, como sendo uma interferência ideológica do governo, é uma demonstração de que o radicalismo e a ignorância imperam e correm sem freios.

Se a questão fez a menina, por má-fé ou sendo usada, tampar o restante do preâmbulo e fotografar o caderno de provas para fazer sobressair sua infeliz anotação “nasci mulher, tenho vagina”, só cabe lamentar. Também não descarto que ela possa ter sido usada. Talvez seja a busca pelos “15 minutos de fama” como preconizou Andy Warhol – e essa fama hoje via redes sociais pode ser até curtida anonimamente, mero prazer. Porém, uniu-se a outros ignorantes e oportunistas na leitura maliciosa do texto. Para apimentar o festival de besteira - saudades do FEBEAPÁ! -, vereadores de Campinas aprovaram, em 28/09, moção de repúdio contra Simone de Beauvoir na prova do ENEM! (Será que conseguiram oficiá-la no cemitério de Montparnasse?).

Revista Forum, 31 de outubro de 2015
Campos Filho (DEM) bradou: “a questão é demoníaca (...) como alguém pode ser homem de dia e mulher à noite?” Colégio e zero nele! Jaírson Canário (SD) saiu-se com essa pérola: “se Deus quisesse que não tivesse diferença entre homem e mulher, teria feito Adão com dois órgãos genitais” (sic). O analfabetismo e a cegueira grassam. Erros de português, de pronúncia, de vocabulário legal (exarar é emitir sentença ou decisão por escrito, e não opinar) macularam o alto status cultural campineiro pela patuscada de seus legisladores. Sem falar no promotor de justiça sorocabano Jorge Marum: “uma baranga francesa que não toma banho, não usa sutiã e não raspa as axilas”. Um promotor de justiça! Onde andam a PGE (Procuradoria Geral do Estado) e a Embaixada da França? Um representante do MP saiu de sua função para atingir uma estrangeira e seu país, onde é um ícone histórico!

Já a redação proposta no exame, “violência contra a mulher”, ou, em geral, "violência doméstica", não tem ideologia nem partido – é sobre crime e ponto. Ter tido o privilégio de ter e poder ler Sartre e Simone em casa e um pai que conheceu o casal em 1960 não me habilitariam melhor para responder à questão do que qualquer leigo preparado para ingressar em uma universidade. É puro conhecimento de história universal e um mínimo de inteligência.


Lembro-me de ter ouvido tantas vezes, em tantos anos de universidade, que, desde a fundação, a USP não se propõe a criar mão de obra para o “mercado de trabalho!”. Se isso acontece, é por decisão do aluno, conquistada por opção e mérito. As públicas devem focar nos formadores de opinião e futuros docentes, que, esses sim, deverão trabalhar com a “mão de obra” nos mais diversos segmentos. Aí entra o ENEM. Com o nível a que estamos chegando, será difícil levar o debate e a discussão de ideias, os questionamentos – daí o sentido mais amplo de uma universidade – em todas as áreas do conhecimento, isoladas ou entre elas: a criação do saber! Apenas lamento que a ignorância tenha atingido profundidade abissal e mostrado que o país está ferido de morte, e, cada vez pior, sem perspectivas de sobrevida inteligente. 

2 comentários:

  1. A impressão que dá é que sob o imperativo de "formar, antes de tudo, o cidadão crítico da sociedade" (sob o viés marxista, claro) as ciências humanas estão produzindo Quixotes tentando vencer um monstro que viveu na revolução industrial. Não se dão conta de que esse viés marxista fez sentido no século XIX e que combater moinhos de vento no século XXI faz o país retroceder e merecer o volume 4 do FEBEAPA.

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  2. Excelente texto, Henrique! Disse tudo e mais um pouco.

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