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sexta-feira, 26 de agosto de 2022

LITERATURA, ENGENHARIA E MEDICINA

 

Autran Dourado

“Se todo mundo lesse Machado de Assis, menos viadutos cairiam e menos pacientes morreriam nas mesas de cirurgia”, disse meu pai em 1971, referindo-se à queda do viaduto Paulo de Frontin, no Rio de Janeiro, e às condições do atendimento médico de então no serviço público no país. O desabamento de 120 metros de construção que matou 48 pessoas deu-se tanto pelo despreparo de engenheiros “amigos” contratados sem licitação quanto porque faltava controle dos pregões e compras nos tempos da ditadura. Quanto às mortes nas mãos de cirurgiões, só posso tecer minhas conjecturas, mas ante a arquitetura cirúrgica da obra de Machado só devo anuir com a frase do meu pai - ele que era como uma generosa esfinge a ser interpretada -, e trazê-la comigo até hoje.

Lincoln, em Gettysburg

Fez questão de matricular-me em um colégio jesuíta de grande reputação no Rio, apesar de ele mesmo ser ateu. Até financiou na planta um apartamento bem perto, para facilitar idas e vindas. O sistema de ensino era rigoroso, exaustivo, mas devo-lhe muito, muito além do que me apetece imaginar. Tive ainda um pouco de latim, e os professores de português, francês e inglês eram para lá de exigentes. Frequentemente, tínhamos de subir no tablado um a um, e, na frente de todos, recitar “Última flor do Lácio, inculta e bela”, algum trecho de Du Contrat Social ou o Gettysburg Address do Lincoln. E ler Montesquieu, Byron, Mark Twain, tudo no original. E Machado.


Certo início de semestre levei à mesa de almoço a lista de leituras para o período. Vi meu pai enrubescer, dilatar as narinas, limpar a boca com o guardanapo, levantar-se, bater a porta da rua e sair. Foi ao colégio, e de lá voltou. Tinha dito que filho dele não leria uma determinada obra, “aquilo”, e ponto final. Coisa muito mal escrita, para fazer dinheiro.


Num apartamento em que do escritório à sala e até as partes de cima dos armários embutidos e paredes dos corredores eram cheias de livros, de tanto convívio aquele tornou-se o meu ambiente, e eu gostava, tinha orgulho. Lembro-me de uma gravura de Cervantes, livro na mão, desenhos oníricos ao redor, em cujo frontispício se lia: “Embebedou-se tanto na leitura que passava as noites em claro”. Lembrava-me a figura paterna, que não raro cochilava, cabeça e livro tombados para baixo, o corpo esparramado sobre a cadeira de balanço de palhinha. Naqueles devaneios, figuras imaginárias, pelas mãos de Machado, Shakespeare, Flaubert e Joyce faziam-lhe diatribes e diabruras na imaginação, fermentando suas criações literárias. Mas o trabalho do pai era todo elaborado com método, método rigoroso, a construção de livros e personagens era uma elaboração de engenharia, história e cirurgia precisas – tudo a ver com a frase que reproduzi para abrir este artigo. Um trabalho de formiguinha, referiu-se a ele o crítico Humberto Werneck, autor de O Desatino da Rapaziada.


Hoje, o desatino é que a escrita no dia a dia escorrega pelos degraus da miserabilidade, especialmente porque a prática está basicamente restrita à Internet e às redes sociais. O errar nem humano mais é, parece que o querem santo; tem seu charme, e o próprio conceito de erro vai sendo abolido. Verbos conjugados sem o “r”, concordância, acentos, pontuação - e o gênero assexuado, ou hermafrodita, que permite expor menos conhecimento para errar menos, achando que é, como se dizia, pour épater la bourgeoisie, para chocar a burguesia. Porém, a burguesia não mais se abala, ela mesma aderiu em massa à péssima escrita e linguajar que chegam aos mais altos escalões da Nação – em boa parte, por causa de uma educação deficiente, e me refiro aos estudos colegiais, à cultura familiar com frequência sem exemplos a servirem de paradigma, e às redes sociais e seus dialetos.


É claro que tudo isso resulta em prováveis maus governantes e eleitores cada vez mais vulneráveis a essa chaga conhecida por ignorância, salvo quando há uma luz sobre um ou outro graças a alguma inteligência pessoal. Faltam boas escolas, bibliotecas, preparação de professores; salvam-se apenas os que buscam preparar-se “motu proprio”, espontaneamente. Já abordei aqui a experiência de Sobral, Ceará, onde um projeto-modelo levou 95% dos alunos à competência na leitura e interpretação de textos, 38% acima da média nacional! A preparação de professores tem quatro escopos principais: formação, avaliação, meritocracia e seleção. Sobral mostrou-se um exemplo a ser seguido, o estudo orbitando ao redor dos livros, sem proibir os alunos de usar recursos midiáticos e de informática.


Comparativamente à experiência de Sobral, com 212 mil habitantes, seguem-na a boa distância outros treze municípios também do Ceará, dez de Minas e apenas sete dos 645 de São Paulo, população total de mais de 40 milhões. Não é à toa que de Sobral saem tantos primeiros lugares em competições e concursos de português e matemática no Brasil.

Groucho e Arthur, seu filho

A leitura está no centro do ensino sobralense, junto com a compreensão e interpretação de textos; há cuidado especial com as exatas, como matemática, área em que a cidade também é modelar. Leitura e redação são primordiais não apenas para formar bons cidadãos: é por intermédio do raciocínio e da compreensão de textos que lógica e percepção encontram campo fértil para o desenvolvimento do indivíduo. Talvez fosse o caso de refletirmos sobre o que disse o comediante, ator e escritor norte-americano Groucho Marx: “Eu acho televisão muito educativa: toda vez que alguém liga o aparelho vou para o quarto ler um livro”.

sábado, 7 de setembro de 2019

GETTYSBURG E OUTROS DISCURSOS


Tempos de colégio, rígida disciplina de estudos e leitura. Aprendíamos de tudo na decoreba: português (“Última flor do lácio, inculta e bela”, recitada sobre um praticável), latim básico; francês, Do Contrato Social de Rousseau (l’homme est né libre, mais partout il est met dans les fers”, ‘o homem nasce livre, mas por todo lado ele está acorrentado’); geografia, memorizando e desenhando em mapas mudos as capitais e rios dos países e estados.
Lord Byron
Um inglês pesado: Shelley, Byron, Wordsworth. Mais tarde, como músico, vim a dar real importância àquela bendita decoreba! Em plena ditadura, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, assinada pelo Brasil na ONU em 1948 e traduzida em mais de 500 idiomas, da qual os radicais de hoje só ouviram falar da metade do título: ‘direitos humanos só para bandidos’, afirmam os ignorantes da história. Um acordo monumental pleno de ideais, por uma vida melhor em um planeta severamente ameaçado.
O dircurso de Gettysburg
Memorizamos o Gettysburg Address, proferido em 18/11/1863 durante a guerra civil por Abraham Lincoln, in memoriam aos soldados mortos na batalha acontecida na cidade do mesmo nome. Optei aqui pelo último manuscrito do próprio Lincoln, entre mais de cinco versões do texto. Tradução que busca ser fiel dentro da minha compreensão, com as devidas anotações: “Quatro vicênios¹ e sete anos atrás nossos pais construíram, neste continente, uma nova nação, concebida em liberdade e dedicada à proposição de que todos os homens nascem iguais”². (1. Um score, ou vicênio, significa um período de vinte anos, Lincoln se referia a 87 anos antes daquela data. Usei ‘quatro vicênios’, ao invés de four score no singular. 2. Traduzi ‘todos os homens nascem iguais’, já que are created, ou, literamente,  ‘são criados’, entre nós confunde-se com 
criação, educação).
Prossegue: “Agora estamos envolvidos3 em uma grande guerra civil, testando se aquela4 nação ou qualquer outra, assim concebida e dedicada, pode resistir longamente” (3. Engaged, ao pé da letra, seria ‘engajados’, mas o sentido é de empenho, comprometimento – a palavra também pode significar ‘noivos’. Mas entre nós soaria político. 4. Por ‘aquela nação’ refere-se à que foi construída pelos antepassados: digo ‘esta nação’, a nossa. “Nós viemos para dedicar uma porção desta5 terra como lugar de descanso final para aqueles que deram suas vidas para que aquela6 nação sobrevivesse.  É ao mesmo tempo justo e apropriado que nós o façamos” (5. Para that, no caso, ‘aquela’, uso ‘desta’. 6. Aquela, a dos sonhos. Algumas repetições que em inglês soam naturais foram trocadas, a bem da clareza em português. E Lincoln, advogado nascido de família pobre e fervorosamente batista em uma cabana Kentucky, refere-se sempre ‘àquela’ terra, remetendo ao tempo do país erguido pelos seus antepassados e de seus ouvintes. O estilo tem certo tom de prayer, oração em súplica comum aos grandes oradores americanos que o seguiram – Rev. Luther King, Jr, e Rev. Jesse Jackson, por exemplo.
Cemitério Nacional do Soldado, hoje: Gettysburg, Phladelphia
Aos honrosos mortos na guerra, mais adiante, ele declara ser melhor “nós aqui dedicarmos devoção cada vez maior à causa pela qual eles entregaram seu último grande gesto7 de dedicação – a que aqui estamos fortemente determinados8 para que esses homens não tenham sido mortos em vão9”. (7. Last full measure, em português, ao pé da letra, ‘última medida inteira’, seria coisa sem  pé nem cabeça: a expressão com a palavra, aqui, tem sentido de ‘último ato com plena devoção’. 8. Highly resolved, ‘altamente determinados.: To resolve aqui tem sentido de forte empenho, não de resolver. E ‘altamente com forte determinação’ soaria redundante. 9. Diz: these dead (...) didn’t die in vain: ‘estes mortos não morreram em vão’ soaria muito estranho entre nós).
E finaliza: “que esta nação, ‘sob a proteção de Deus’10, tenha um renascimento11 de liberdade – e que o governo deste povo, pelo povo, para o povo, não desaparecerá da Terra12. (10. Lincoln diz “under God”, ‘sob Deus’. 11. A new birth of liberty, li como ‘um renascimento da liberdade’! ‘Um novo nascimento’, não soa bem entre nós. 12. Shall not perish from Earth: ‘não perecerá da Terra’? Melhor ‘não desaparecerá’).
Usei o ‘Gettysburg’ como exemplo da dificuldade de se traduzir um simples texto, que é compreender para contar. Literatura? Extremamente difícil; poesia? Missão impossível. O ideal seria ler no original, o que não é acessível a todos, embora seja exigência em cursos universitários, de pós e pesquisa. Vejo o Gettysburg de Lincoln ao lado de ‘Eu Tive um Sonho’ (1963), de Luther King, Jr, um desafio pela igualdade, e o de Jesse Jackson na Convenção Democrata de 1988 (vi na TV e me emocionei); Roosevelt, ‘Deveres da Cidadania Americana’ e Kennedy (1961), em seu ‘Discurso de Posse’ (‘Não perguntem o que a América fará por vocês, mas o que juntos poderemos fazer pela liberdade do homem’). Esses estão entre os mais importantes discursos da história dos EUA.
Na história, desde ‘A Terceira Filípica’, de Demóstenes (342 a.C.), o ‘Discurso de Alexandre, O Grande’, na Índia (326 a.C.), até ‘Nós lutaremos nas Praias’ (1940), de Churchill (imagem acima), ‘O Apelo de 18 de Junho’, por De Gaulle, pela BBC londrina, exortando os franceses  a não abandonarem a luta contra os nazistas, e tantos outros.
JK: discurso de posse
No Brasil, entre os discursos mis marcantes, o da posse de JK (1956), sob ameaças de golpe, composto a quatro mãos por Augusto Frederico Schmidt e meu pai, o escritor Autran Dourado, autor da frase de efeito: ‘Deus poupou-me o sentimento do medo’; o de Jango na Central do Brasil, grande desculpa para o golpe de 1964, e finalmente o do deputado Márcio Moreira Alves, um dos estopins do AI-5: “...cada pai, cada mãe (...) a presença dos seus filhos nesse desfile é o auxílio aos carrascos que os espancam e os metralham nas ruas”.
E quem serão os escribas e os oradores de hoje?