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sábado, 2 de junho de 2018

REGER, VERBO INTRANSITIVO

A batuta

Mais vulneráveis aos olhos e línguas do público e dos músicos, é natural que exista um amplo folclore acerca de regentes, e quanto maior a exposição, melhor alvo ele se torna. A história da regência não é  muito curta, mas a trajetória de seus protagonistas costuma ser  bastante rápida.
Leonard Bernstein
No século 13, Elias Solomon, em Tracatus de Musica sugeria ao líder do coro apontar  o erro de alguém sem que se percebesse quem era o cantor de que falava, uma tímida psicologia regencial. No século 15 surgiu o ‘sol-fa’, e uma partitura enrolada era dirigida por quem se achava mais competente para marcar. Ornithopachus, no final daquele século, recomendou ao cantor-líder a suavidade das mãos. No século 18, o alemão John Böhr sugeriu o dedo indicador ou... um pedaço de madeira. Modernamente, as técnicas de direção, bem  como aqueles sinais e gestos, são absolutamente individuais, existindo apenas algumas poucas convenções comuns entre os grandes (amadores fazem maquinalmente o trivial). Divergem em muitas coisas, até quanto ao uso da batuta, a varinha condão. Enquanto Toscanini e Bernstein a manobravam com habilidade, Karajan e Kurt Masur optaram pela expressividade das mãos. 
Kurt Masur
Alguns candidatos ao posto, ao largarem seus instrumentos para alçar voos mais altos na carreira de regente, eram jocosamente chamados batteurs de mesures, ou ‘batedores de compassos’ (franceses adoram criar expressões para todas as finalidades). Algo como o que os músicos do filme Ensaio de Orquestra, do Felini, procuraram demonstrar: sai regente, entra um metrônomo gigante. Pode-se ver a história do regente do ponto de vista geométrico: começa com o líder de pé e os músicos sentados, depois, juntando-se a eles. Enfim, levanta-se novamente, deixando-os sentados, caminho que levou bom tempo até se consolidar de vez. Logo, o regente viu que não estava ‘elevado’ o suficiente: teve de pedir um estrado - o pódio! - para de cima melhor exercer seu poder. Na correlação de forças musical a ascensão do regente, e, ao revés, a queda do poder da orquestra ou coro foram inevitáveis. Ele era o dono da sabedoria (quando não, bastava-lhe ser protéjé de um governante ou mecenas poderoso).
Regente ensaiando no fosso
Com a ópera, o regente teve de descer ao fosso (apertada clausura invisível à plateia) sob o palco onde a cena se desenrola. O regente, a cabeça um pouco mais acima no nível do fosso, tinha de fazer gestos um pouco mais espalhafatosos para ser percebido pelo público. A consolidação da ‘geometria orquestral’ de hoje é recente, pois até 1905, na Gewandhaus de Leipzig, os músicos ainda tocavam de pé! As orquestras atuais, salvo alguns detalhes, parece terem sido congeladas em algum lugar do passado, perdendo a constante mutação anterior. Daqui para a frente, qualquer mudança maior, se acontecer, deve demorar muitos, longos anos.
A simpatia dos músicos é reservada aos poucos regentes 'eleitos',  unge apenas os prediletos. Franz Strauss (1822-1905), trompista e pai do Richard Strauss de Assim Falou Zaratustra (popularizada no filme 2001, Odisseia no Espaço), era conhecido por sua ojeriza à batuta. Certa vez, aproximou-se de um maestro convidado e disse-lhe que desde o momento em que ele entrara no palco, e antes mesmo de subir ao pódio, já pelos passos sabiam quem iria mandar: ele ou os músicos (naquele caso, foi o conjunto). Orquestra é como um potro bravio: no pisar do peão no estribo ele já se sabe quem vai levar quem.
Birgit Nilssen
Entre os motivos mais comuns de desavenças entre músicos e regentes estão os tempos - tempi, em italiano. Acostumados com certo andamento, instrumentistas volta e meia têm alguma rusga com o chefe. (O spalla do Municipal do Rio contou uma nota de jornal há muitos anos, teve séria discussão com o regente, e saiu do sério. O imbróglio só se encerrou com o grande Pareschi atirando seu precioso instrumento no chão, abandonando o ensaio). Nem as estrelas são poupadas. A lendária cantora sueca Birgit Nilssen teve uma saia-justa com o poderoso Herbert von Karajan. No ensaio, a solista disse ao maestro que aquele andamento estava muito lento. Karajan olhou-a e perguntou quem pagava quem, ele ou ela. E nem esperou resposta, continuou do jeito que queria.
No folclórico repertório de esquisitices da música, mesmo fatos reais às vezes adquirem status de anedota. Tal como um episódio da vida do compositor, violinista e líder de orquestra Jean Baptiste Lully (1632-1637), da corte de Luís XIV, talvez o ‘pai’ da regência com, digamos, uma batuta. Chegado a uma comédia, foi parceiro e amigo de Molière, autor de peças de teatro como O Burguês Fidalgo, e teve seus dias tragicômicos. A Lully também se credita a organização da direção dos arcos dos instrumentos, antes sem rumo e cada qual em uma direção. Depois dele, os movimentos tornaram-se belas ondas sinuosas, homogêneas como em um exercício de Tai-chi-chuan.
A 'bengalada' de Lully
Praxe da época, Lully comandava a orquestra de seu lugar de primeiro violinista, e se irritava com a dificuldade de segurar o andamento correto de alguma passagem: seus comandados atravessavam caoticamente o ritmo com mínimas, semínimas e colcheias que, rebeldes, teimavam em escapulir dos instrumentos. Parou de tocar, e como era coxo, usou seu cajado para bater o tempo no chão, cada vez com mais força. Pronto! Estava definitivamente inventado o regente com batuta. Mas um desses golpes de seu “bengalão” caiu errado e acertou-lhe o pé, ferindo-o seriamente. Talvez primeiro caso conhecido de ‘olho gordo’ de orquestra contra regente, a lesão no pé gangrenou, e por causa dela dizem que Lully morreu coisa de quinze dias depois.
[O título no início deste artigo é inspirado em Amar, Verbo Intransitivo, do Mário de Andrade. Finalizo com um abraço a todos os amigos regentes]



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